Helena Iono, Correspondente em Buenos Aires
Não é difícil compor o tabuleiro do xadrez, neste campo de guerra, de duplo poder, ou como muitos dizem, num território em disputa na América Latina. De um lado, governos e forças populares que defendem o que lhes pertence como nações soberanas e originárias, e do outro, os EUA e seus abutres financeiros, nos estertores de um capitalismo em decadência, tratando de impor golpes de Estado para submetê-los com as armas da apropriação violenta.
Dois fatos contundentes como a vitória eleitoral da Frente de Todos com Alberto Fernández e Cristina Kirchner na Argentina, e a libertação de Lula no Brasil, junto à convulsão anti-neoliberal no Chile e no Equador, acenderam a luz vermelha ao poder hegemônico sinalizando o fracasso do “lawfare”, das “Lavajatos”, do dito golpe suave (jurídico-midiático); e assim, detonaram, desmascarando a sua verdadeira cara violenta e sanguinária consagrando o golpe de Estado contra Evo Morales e o povo boliviano. A rapidez e a virulência com que responderam as forças golpistas na Bolívia, soam não somente como uma resposta à vitória eleitoral local de Evo, mas à ameaçadora coordenação das forças progressistas contra o FMI e o neoliberalismo em pauta na América Latina. Não é casual que o golpe de estado na Bolívia deu-se um dia após o discurso de Lula já livre na Vigília Lula Livre e no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, e em plena reunião do Grupo de Puebla em Buenos Aires.
Neste contexto, vale destacar o papel que o presidente eleito, Alberto Fernández, vem cumprindo como articulador do grupo de Puebla e das forças políticas que reagem ao neoliberalismo na região latino-americana. Visitou o Lula da Silva na prisão, e o Evo Morales (antes do golpe) na Bolívia. E como presidente eleito, foi ao México de López Obrador e acaba de ir ao Uruguai apoiando o candidato presidencial Daniel Martinez (Frente Ampla). Tudo indica que seguirá o exemplo de Néstor Kirchner, não só como negociador da dívida externa (priorizando os mais necessitados), mas como autor do renascimento de uma frente progressista de esquerda na América Latina, antes materializadas na Unasur e Celac. Dessa escola é também promotora a vice-presidenta Cristina Kirchner. E segundo Infobae, Alberto Fernández já pensa em descongelar as relações do governo Macri com a Venezuela: aceitará Nicolás Maduro como presidente, não reconhecerá Guaidó e retirará as credenciais da sua representante embaixadora, Elisa Trotta.
Os EUA revelam seu envolvimento no golpe cívico-policial-militar contra Evo Morales no reconhecimento mediato de Donald Trump, ao que Alberto Fernandez replicou: “os Estados Unidos retrocederam décadas. Voltaram às piores épocas dos anos 70, dando aval a intervenções militares contra governos populares eleitos democraticamente”. As articulações telefônicas de Alberto com os governos da Argentina, Paraguai e Peru para as concessões de pouso e sobrevoo do avião de Evo Moráles rumo ao exílio no México foram decisivas. Além dos EUA, a OEA, presidentes como Bolsonaro e Macri demonstram seu envolvimento ao não qualificar como golpe de estado o ocorrido na Bolívia. Macri e o Ministro das Relações Exteriores, Faurie, tiveram que engolir a resposta do Congresso Nacional argentino (Deputados e Senadores) que votou em maioria uma resolução da “Frente de Todos” de repúdio ao golpe de estado. Alberto Fernandez pede a intervenção da ONU e critica a presidenta auto-proclamada, Jeanine Añez, que deu permissão às Forças Armadas para reprimir os protestos sociais “sem responsabilidade penal”; enfim, livres para matar.
Na Argentina, que congrega os “hermanos” bolivianos como a maior comunidade de imigrantes, movimentos de solidariedade já ocuparam as ruas de Buenos Aires com duas multitudinárias manifestações. Uma delas, na maioria com o movimentos “Bairros de pé”, rumo à embaixada do Estado plurinacional da Bolívia, e outra, no dia da Soberania Nacional, dia 18, convocada por organizações de apoio aos imigrantes, CTEP, Centrais Sindicais (duas CTAs e CGT) e movimentos sociais na Praça de Maio. Em Jujuy, norte da Argentina, também marcharam 20 mil manifestantes de povos originários da região. Imigrantes bolivianos, com emoção e garra não poupam palavras e lágrimas para expressar sua dor e indignação: “Evo fez tudo por nós. Agora estão matando nosso povo! Tenho filhos soldados que são obrigados a matar nossos irmãos! Não pode ser!” Somou-se a este clima, um Encontro com Jornalistas e correspondentes, e “Intelectuais pela Humanidade” como Stella Calloni, junto a representantes bolivianos denunciando a repressão, expulsão e a censura à mídia internacional presente na cobertura do golpe na Bolívia. Video do DataUrgente A Argentina solidária e sobrevivente da ditadura dos anos 75, não para e se faz sentir.
Evo Moráles, desde o México, rompe o cerco midiático e já se comunicou duas vezes com a mídia independente na Argentina, relatando e denunciando o golpe de estado e a brutal repressão. Uma delas, através da rádio ElDestape: “O EUA é experto em dar golpes”, “A mídia foi parte do golpe de estado”. “Adverti que o relatório da OEA ia trazer um golpe”, “A OEA anda junto aos EUA dando golpes de Estado. A história julgará. Porém faremos tudo que nos corresponde. Demonstrar que esse informe serve somente para favorecer às classes dominantes. EUA é especialista em golpes de Estado. O primeiro a reconhecer essa Jeanine (a presidenta auto-proclamada) foi os EUA. É especialista em dar golpes de Estado no mundo; e quando não pode dar golpes de estado, faz intervenções. Radio El Destape . A outra entrevista foi através da TV C5N Vídeo da entrevista “Se a minha volta à Bolívia levar à pacificação, volto amanhã mesmo. Sinto muita tristeza que haja tantos mortos. Sinto muito que as Forças Armadas e a Polícia que eu tanto equipei, voltem estes instrumentos contra o povo. Comandantes, não se manchem com o sangue do povo!”.
O golpe de estado na Bolívia é um alerta ao próximo governo na Argentina
O golpe contra Evo Moráles na Bolívia, debilita e representa uma ameaça ao novo governo de Alberto Fernández e Cristina Kirchner. Conscientes disso, há debates e evidentes movimentações políticas da Frente de Todos para avançar nas metas propostas em campanha eleitoral e, prevenir-se contra os retrocessos possíveis. O povo argentino que os votou, tem urgência na chegada do dia 10 de dezembro para formalizar o fim da era Macri.
Mas, Alberto Fernández não perde tempo e criou um Conselho Federal Argentina Contra a Fome com dirigentes políticos de amplo leque de representação social, de organismos de direitos humanos, sindicatos a empresários para acionar já no dia posterior à sua posse uma bateria de medidas para acabar com a fome e o desamparo dos desempregados e das camadas mais pobres da população. Essa é a meta principal a que se propõe o novo governo.
Tendo sido oficialmente proclamado presidente da Argentina pela Assembleia, sob cânticos da Marcha Peronista, “Vamos voltar, vamos voltar!”, Alberto em umas das declarações prometeu levar ao Parlamento uma lei pelo “Aborto legal, seguro e gratuito”; convocou sessões extraordinárias no Congresso depois da sua posse, prorrogando as sessões ordinárias de dezembro até janeiro com o fim de aprovar medidas de urgência econômica e social. Como já sabemos, Macri deixa o país em bancarrota e o povo não pode esperar. Os temas centrais imediatos serão: O orçamento para 2020, o programa “Argentina contra a Fome”, a criação do Conselho Econômico e Social e o Conselho de Segurança.
Falando-se em questão de Segurança e Forças Armadas, Alberto Fernández já alertou para um enfoque imediato a ser dado nessa área. O golpe na Bolívia deixa uma lição de quão importante é mudar a concepção do exército como instrumento repressivo para sustentar os interesses do capital e construir rapidamente um exército com a consciência na defesa do projeto popular, dos recursos naturais e da soberania nacional. O recente chamado de Lula da Silva ao diálogo com os militares indica responder à mesma preocupação, já expressada nas várias entrevistas aos meios de comunicação durante a sua prisão. A Venezuela é o melhor exemplo de uma união cívico-militar baseada num exército nacionalista e revolucionário construído pelo presidente-coronel Hugo-Chávez e levada adiante por Nicolás Maduro, como fator de impedimento a que o golpe de Guaidó e da direita avance. A Argentina que viveu um dos mais duros golpes militares no passado, com 30 mil desaparecidos, está atenta.
O alerta das forças políticas na Argentina surge a partir da decisão que tomou Macri de não reconhecer como golpe de estado na Bolívia e nem condenar a derrubada de Evo Moráles. Macri contradiz o consenso do “Nunca mais” de 1983 (da época do ex-presidente Raúl Alfonsin em que se iniciaram vários processos contra os genocidas da ditadura) e acena um risco de retorno do fantasma da ditadura. Há grande preocupação dos organismos pelos direitos humanos, das madres e avós da Praça de Maio.
Alberto Fernández, solicitou ao ex-ministro da Defesa, e atual chefe da bancada da Unidade Cidadã na Câmara de Deputados, Agustín Rossi, para que o novo governo dê prioridade à questão militar; sobretudo levando em conta que, recentemente, antes de deixar o governo, Macri ascendeu os cargos de ex-carapintadas, que são militares de direita, de baixo escalão, que tentaram dar um golpe ao ex-presidente Raul Alfonsin.
Leia trecho do artigo de Nicolás Lanto publicada no blog ElDestapeWeb:
“A experiência boliviana indica, no entanto, que nem mesmo uma melhoria brutal nas condições de vida da sociedade o isenta de ser vítima de um golpe de estado. Igualmente, não se salva do golpe ao adotar as políticas sugeridas pelo Departamento de Estado ou pelo FMI. Não há vacina ou fórmula que sirva para evitar derrubadas. Mas o novo governo atuará em três pilares para fortalecer o estado de direito. Em primeiro lugar, consolidar a condução civil das Forças Armadas, reconstruindo o arcabouço legal que Macri desfez. Por caso: será reposto o decreto de Raúl Alfonsín que retirou as faculdades políticas do quartel-general militar sobre promoções e transferências e que foi revogado no início do último governo. O segundo eixo é redirecionar a Defesa para afastá-la da agenda projetada em Washington. Nem o presidente eleito nem o futuro ministro duvidam que os Estados Unidos tenham colaborado com cada um dos episódios de interrupção das instituições da região. Será um desafio fortalecer o vínculo nessa questão sem comprometer a negociação da dívida, mas é essencial enfrentá-la. O terceiro ponto: atribuir aos militares um papel claro e ativo no desenvolvimento do país, com base em um trabalho focado na defesa dos recursos naturais, desenvolvimento científico e produção” Leia artigo
Evo Morales, cujo crime foi governar por anos dignificando a vida da maioria do seu povo, camponeses, índios, trabalhadores e mineiros, e ter nacionalizado o lítio e as riquezas naturais do país, foi vítima de um golpe fatal. Teve que defender não somente sua vida, mas dos membros e familiares do seu governo, todos ameaçados com a corda no pescoço, para continuar sua batalha; salvar-se a vida para poder continuar lutando pelos vivos e mortos. Seria um passo atrás e dois adiante? Não puderam eliminar Evo Moráles como um Kadaffi ou um Sadan Hussein. Certamente a Rússia e a China hoje não são as que se abstiveram no Conselho de Segurança da ONU avalizando o ataque da Otan na Líbia; hoje, são os que defendem a Síria de Assad e a Venezuela de Maduro. Mas, ao mesmo tempo falta recuperar organismos políticos como a Unasur e Celac. O mundo deve pesar urgentemente, condenar este golpe brutal na Bolívia, recuperar os direitos humanos e democráticos do povo boliviano, garantir o retorno de Evo Morales e a legalidade constitucional com novas eleições em que o MAS, que já tem maioria parlamentar, ou seja, 2/3 na Câmara e Senado, serão vencedor. Os números já o disseram em 20 de outubro, e desta vez, os mortos votarão por dois. A aguerrida luta do povo boliviano indica que 11 anos de governo de Evo-Liñeras deixaram um legado profundo. A partida não está terminada.