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Flávia Villela
Rádio Sputnik
Um dos mais importantes canais de comércio da Argentina e de todo o Cone Sul poderá ser em breve gerido pelos EUA, graças um acordo assinado em março entre os governos argentino e estadunidense, permitindo ao Exército do Norte interferência na hidrovia Paraguai-Paraná.
De acordo com os termos do acordo, uma “
cooperação técnica” ocorrerá entre a Administração-Geral de Portos da Argentina (AGP) e o Corpo de Engenheiros do Exército dos EUA,
ramo encarregado da construção militar e das obras civis para a Defesa dos EUA.
Um
comunicado da AGP informa que o acordo está focado na
“troca de informações e gestão” e permitirá “a implementação de novas formações em aspectos de gestão de portos e hidrovias navegáveis, a manutenção da navegação e do equilíbrio ambiental, o desenvolvimento de infraestrutura etc.”.
Para explorar os efeitos e impactos desse acordo na Argentina e na região como um todo, a Sputnik Brasil ouviu especialistas no assunto.
O jornalista, cientista político e professor de relações internacionais
Bruno Rocha Lima afirmou, em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, que a concessão deveria ser motivo de impeachment do
presidente argentino, Javier Milei:
“É um crime de lesa pátria, é tornar inviável que a República Argentina seja soberana […] comprova que não há pensamento estratégico na elite argentina, e se tem, ele é subalternizado em relação ao entreguismo, aos capitais especulativos e ao narcotráfico”.
Ele salientou que o acesso ao estuário do Prata e à bacia do Rio Paraná é estratégica, pois significa acesso ao mar, por onde se escoa produção relevante da Argentina e do Paraguai, além de parcela importante da produção brasileira. “A Guerra do Paraguai foi por isso”, ressaltou Lima.
“As elites latino-americanas preferem ser capachos do Ocidente e garantir os seus ganhos absurdos do que dividir um pouco de poder e riqueza e garantir uma nação soberana”, criticou ele. “Remonta aos tempos da colônia, onde os brancos da colônia se pensavam como europeus do além-mar”, disse o jornalista.
Todo avanço de ciência, tecnologia instalada, tecnologia aplicada em ciência estão ficando em um segundo plano, segundo ele, no atual governo argentino, que atende ao capital especulativo, de exportadores de grãos e de minério. O próximo passo, vaticinou o analista, será a instalação de tropas dos EUA no país.
Também professor e pesquisador de relações internacionais, Ricardo Leães ressaltou ao podcast que, por se tratar de um memorando de entendimento, logo, a primeira etapa de um acordo, este ainda teria que ser assinado e ratificado pelo Congresso Nacional dos países envolvidos:
“Precisamos ter cautela em relação à viabilidade desse projeto efetivamente ter os desdobramentos que a gente pode imaginar”, comentou.
Mas ele concorda que a iniciativa é fruto da visão fortemente ideológica e “complexo de vira-lata” do governo de Milei, que já sinalizou ter interesse de se alinhar de maneira incondicional ao Ocidente e aos Estados Unidos. Nesse sentido, há chances de que o conteúdo do memorando seja “muito pernicioso para a Argentina, até mesmo em termos de soberania”:
“Os chineses, cada vez mais, têm conseguido contratos para obter a exploração de portos ao redor do mundo, aqui mesmo na América Latina, já tivemos alguns. É interesse dos Estados Unidos evitar que esse processo siga avançando”, ponderou ele. “Me parece que a intenção do Millei é se aproveitar dessa disputa entre EUA e China e utilizar essa relação envolvendo a hidrovia do rio Paraguai como mecanismo para se aproximar dos EUA”.
Caso o acordo vingue, o governo norte-americano teria acesso a dados, informações, e uma visão mais ampla do comércio nessa região, o que em determinado momento poderia inclusive causar prejuízo para seus adversários nas relações internacionais, analisou ele.
“Infelizmente, a gente sabe que a política internacional costuma não se dar nesses termos de parceria e de colaboração, mas, sim, em termos de dominação. E a gente sabe que os Estados Unidos, quando têm suas relações, raramente assumem uma postura colaborativa e muito mais uma postura hegemônica”, completou.
Na prática, explicam os entrevistados, os
EUA seriam cogestores do maior corredor de escoamento de exportação do
Cone Sul e quarto maior canal de exportação de cocaína da América Latina. Poderá demandar
patrulhamento nas águas do Rio Paraná, acesso aos trechos navegáveis e até influenciar na ausência de fiscalização.
O jornalista acrescentou que a gestão pelos EUA é uma medida securitária, hemisférica. “Isso não é admissível, é entregar a soberania dos nossos países para a potência agressora”.
Leães apontou que o acordo pode ter repercussões regionais e
ferir também a soberania dos demais países na região, embora os atuais governos do Uruguai e Paraguai também estejam alinhados com os Estados Unidos. “E o governo brasileiro está em um
cenário também de dificuldade interna, com uma série de problemas políticos e econômicos”, acrescentou.
Para Lima, o combate ao narcotráfico só é viável se houver a reestatização do sistema portuário da hidrovia do Paraná, que é todo privatizado e não tem fiscalização.
“Para navegar pelo Paraná vai ter que fazer um acordo tripartite com o Paraguai, a Argentina e os Estados Unidos? Aí, realmente, para que o Mercosul? Isso fere de morte a soberania dos países que usam o rio Paraná e têm o Mercosul como base de integração econômica sul-americana”, disse ele.
Ambos os professores comentaram que caso o acordo saia do papel, o Brasil deverá ter uma postura mais dura e crítica em relação a esse projeto.
“Mas temos que aguardar para ver como os fenômenos vão se desenrolar. Eventualmente, se essa decisão tiver a repercussão que a gente está imaginando, aí cabe ao Brasil ser bastante claro em relação à sua oposição a esse projeto para demover os argentinos dessa ideia”, argumentou Leães.
Na América Latina, as ações dos Estados Unidos contam historicamente com leniência por parte do senso comum, explicam os analistas.