Foto: Freepik / Fotomontagem Jornal da USP
Sandra Franco*
“Você suportaria ficar mais um pouquinho?”. Essa foi a pergunta de uma juíza de Santa Catarina, em audiência, no último dia 9 de maio, para uma menina de 11 anos, vítima de estupro, que pretendia fazer um aborto autorizado. A criança estava sendo mantida pela Justiça em um abrigo para evitar o procedimento. A menina descobriu estar com 22 semanas de gravidez ao ser encaminhada a um hospital de Florianópolis, onde teve negado aborto para interromper a gestação. No caso, a juíza Joana Ribeiro Zimmer afirmou que a menina foi encaminhada ao abrigo por conta de um pedido da Vara da Infância, com o objetivo de proteger a criança do agressor que a estuprou, mas que, agora, a finalidade era evitar o aborto.
Sob o aspecto legal, em razão de o feto ter sido concebido em razão de um estupro e se tratar da estação de uma menor de 14 anos, o aborto é legal. Por dois incisos no artigo 128 do Código Penal, a legislação não pune o médico que realiza o aborto: seja para salvar a vida da mulher no caso de uma gestação decorrente de estupro, desde que por solicitação e consentimento da mulher. Se a mulher for menor de idade, deficiente mental ou incapaz, por autorização de seu representante legal. No caso da garota de 11 anos, portanto, tínhamos as duas circunstâncias autorizadoras presentes: a menoridade e a violência sexual.
O Superior Tribunal Federal, em 2012, decidiu ampliar a permissão para o aborto também nos casos de anencefalia, através de uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), a nº 147.
Importante esclarecer também que estupro é crime previsto no artigo 213 do Código Penal. Um crime grave, hediondo e de grande repercussão social, acometendo a vítima a severas sequelas físicas e emocionais. No caso de a vítima ser pessoa menor de 14 anos ou portadora de enfermidades ou deficiências mentais, ou ainda que, por qualquer outro motivo, tenha sua capacidade de resistência diminuída, trata-se de estupro de vulnerável, crime previsto no artigo 217-A do Código Penal. A diferença entre o estupro e o estupro de vulnerável é que neste é irrelevante o consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente, pois a presunção de vulnerabilidade é absoluta, assim previsto na Súmula 593 emitida pelo STJ em 2017.
Parte da sociedade brasileira recrimina o procedimento, mesmo em caso de estupro. A chamada “bancada religiosa” do Legislativo tem uma grande força e faz um imenso lobby contra todos os avanços do tema, com justificativas em textos sagrados e na vontade de Deus — o que é compreensível e respeitável. De outro lado, esses mesmos legisladores precisam olhar o tema a partir de dados. Descriminalizar o aborto não é incentivá-lo.
Após muitos “achômetros”, com opiniões estampadas em mídias sociais, meio jornalístico, rodas de conversa, mais uma importante notícia chamou atenção para o assunto: uma decisão da Suprema Corte derrubou o entendimento de que a Constituição garante o direito das mulheres norte-americanas a fazerem interrupção da gravidez. Caberá a cada estado dos EUA a decisão se aborto deve ser proibido. Ao menos 11 governos democratas já afirmaram que manterão direito.
Nos casos em que o Brasil hoje permite o aborto legalmente, também se tem assistido a um possível retrocesso ou, melhor dizendo, à tentativa de se complicar o cumprimento do texto legal. O Ministério da Saúde tem estudado uma Cartilha que, na prática, traria mais dificuldades às mulheres que alegassem terem sido estupradas e, portanto, estarem legalmente possibilitadas de exercer o aborto. Já se tem uma esdrúxula portaria de 2020 que apresenta a orientação a hospitais no sentido de avisarem autoridade públicas sobre o estupro, o que não está na lei. Outra diretriz está em se aguardar a comprovação de que, de fato, a mulher foi vítima de um estupro. Na prática, a depender da velocidade da apuração, essa comprovação poderia nunca ocorrer ou se dar após o nascimento da criança.
A controvérsia quanto ao aborto reside no fato de que o direito à vida, assim como o direito à vida privada e à dignidade, não serem absolutos. Para alguns, o Direito Constitucional (e natural) à vida do feto precisa ser respeitado. Para outra corrente, a mulher faz jus ao direito à dignidade humana, ao direito de escolha.
Nesse sentido, não é defensável, mas poderia ser compreensível a postura da referida magistrada ao pensar no direito à vida do feto. De outro lado, sendo ela uma mulher, com obrigação de aplicar a letra da lei, apesar de suas convicções pessoais, houve uma repercussão intensa de mulheres, profissionais de saúde, religiosos, juristas, mídia, cada qual levantando uma bandeira: pela vida da jovem ou pela vida do feto – infelizmente dois direitos impossíveis de conciliar nesse cenário de estupro e gravidez indesejada de uma menor, muito menor, de idade.
Também é essencial considerar a mora em se tomar decisões. Se tivesse sido acolhida desde o início, protegida pelo Estado através do Sistema Único de Saúde, se seu direito ao aborto fosse observado sem questionamentos e sem a intervenção do Judiciário, ela não seria submetida a esse constrangimento de ver sua vida discutida em cada lar e de assistir a todos os julgamentos extraoficiais da sociedade sobre si.
Vale ressaltar que, em 2013, as mulheres passaram a ter a garantia de que o atendimento seria “imediato e obrigatório” para questões de aborto em todos os hospitais do SUS, com a aprovação da lei 12.845. Essa norma assegura atendimento médico a mulheres vítimas de violência sexual. A lei remete a uma profilaxia da gravidez – o que sequer corresponderia a um aborto tecnicamente, se for considerado o fenômeno da nidação como o início de uma vida.
Sob o aspecto da saúde e políticas públicas, não se poderá abandonar o conceito da prevenção e educação. Na maioria das vezes, a opção pelo aborto decorre da falta de planejamento da gravidez associada a fatores sociais como ignorância, planejamento familiar, escassez de recursos. Não informar à mulher seu direito ao aborto legal, em caso de violência sexual, seria um atentado a todas as normas que dispõe sobre o direito legal à informação e fere a autonomia do paciente.
Apesar de o tema já ser discutido de forma exaustiva no Congresso Nacional, pouco se avançou. Assim, o aborto no Brasil continua sendo matéria nos tribunais e, surpreendentemente, nos deparamos com o sistema de saúde pública, o judiciário e o legislativo despreparados para tratar o tema.
O ideal seria que os Três Poderes precisam enfrentar e discutir o tema aborto em conjunto com os profissionais da saúde e a sociedade organizada. É necessário que sejam estabelecidas regras cristalinas para que sejam reduzidos os casos de mortes e de lesões físicas e morais resultantes do aborto desassistido e clandestino.
Necessário também que, no Brasil, as discussões não se desviem do núcleo central da questão: o direito da mulher. Já passou o tempo de revisarmos as leis para o aborto. Quantas tragédias com meninas e mulheres precisarão acontecer para que as discussões avancem? Teremos que esperar mais um pouquinho?
*Sandra Franco é consultora jurídica especializada em Direito Médico e da Saúde, doutoranda em Saúde Pública, MBA-FGV em Gestão de Serviços em Saúde, diretora jurídica da Abcis, consultora jurídica da ABORLCCF, especialista em Telemedicina e Proteção de Dados, fundadora e ex-presidente da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB de São José dos Campos (SP) entre 2013 e 2018.