José Bessa Freire
“Não é o câncer. O nosso maior inimigo é a depressão, que vem de dentro de nós”.
(Jean-Claude Bernardet. O corpo crítico. 2021).
– Seu Nominando, pode descer…
A voz da funcionária ecoa na sala de espera do Américas Centro de Oncologia Integrado de Icaraí, em Niterói. Num gesto rotineiro, desejo boa sorte a Nominando, o paciente que me antecede nas sessões diárias de radioterapia. Ele desce para o térreo. Eu fico. Enquanto aguardo, cumpro a exigência sem a qual ninguém entra na sala de tratamento: bebo seis copos d’água e espero a bexiga encher até o tucupi.
Meia hora depois é a minha vez.
– Seu Ribamar, pode descer….
Faço o sinal para o Isaac, o paciente atrás de mim na fila, indicando que havia chegado a hora de a onça beber água. Durante o nosso papo naquele dia, ele havia pedido explicações sobre as origens de nossos nomes, nada bíblicos como o dele.
Nominando então lhe disse que seu avô, seu pai e seu filho conjugavam o verbo no gerúndio e assim se nominavam numa ação contínua. Já na minha família – falei – Ribamar, promessa feita por minha avó no Maranhão, só havia um. Apesar de interligar “rir’ e “amar”, este nome não vingou na família. Hoje, minha filha agradece a uns e outros, por haverem me impedido de registrá-la como Ribamarina. Do que ela se livrou.
Enquanto espero o elevador, pergunto à recepcionista:
– Fala a verdade, qual dos dois nomes é mais bonito: Ribamar ou Nominando?
– Tá difícil – ela riu e eu não sei nem porquê.
A transa pirúvica
Fiz 40 sessões. Ele, 32. Cinco vezes por semana, os pacientes trocavam figurinhas ali naquela sala de espera, que funcionava inconscientemente como um grupo terapêutico contra a depressão, agravada com as mortes pela Covid-19. Nesta espécie de ágora grega, as tensões diminuíam com a conversa, que girava em torno da situação de cada um e incluía comparação de biópsia, PSA, hemograma, cintilografia, densitometria, ultrassonografia. Um novo léxico integrava agora a nossa prosa cotidiana: perfil lipídico, triglicerídeo, colesterol, testosterona, glicemia, creatinina.
Foi preciso um câncer de próstata para a gente usar, com a mesma naturalidade de quem fala pão, água e café, alguns termos escalafobéticos difíceis de pronunciar. O grupo que se renovava permanentemente, uns saindo, outros entrando, conviveu na maior intimidade com a transaminase oxalacética e a transaminase pirúvica, embora (aqui pra nós), ali, naquele grupo, ninguém mais praticava ou sequer pensava em transa pirúvica, seja lá o que isso insinue. A transaminase era outra?
Havia um paciente fascinado pela bilirrubina, mais pela palavra do que por aquilo que ela designava. Enchia a boca, saboreando cada sílaba. Repetia, com o olho rútilo, a mesma pergunta do dia anterior:
– Como está a sua bilirrubina?
A dele era “a mais alta de todas” e chegava no nível de quase hiperbilirrubinemia – dizia com orgulho, como se tivesse conquistado um Óscar do cinema. Sugeri, de gozação, que devíamos criar um grupo no WhatsApp denominado Bilirrubina. Ele topou na hora. Ficou frustrado quando soube que o meu câncer de próstata era nível 7 na Escala Gleason, o dele era só 4. Queria ganhar sempre, mesmo se isso implicasse desvantagem na vida real. Questionava exame laboratorial criado de forma digital em instância eletrônica. Só confiava no resultado impresso.
Cuspindo fogo
Aliás, num acordo tácito, ninguém falava de política, mas dava para deduzir pelo papo. O bilirrubinado, por exemplo, defendia a liberação das armas, era a favor da cloroquina, praguejava contra a máscara e contra a vacina. Ele me censurou pelo “exagero” de usar duas “desnecessárias” máscaras: a shields e outra de pano. De qualquer forma, a máquina à nossa espera democratizava o tratamento do câncer.
Há todo um ritual para que a Trilogy aceite te receber em seus braços, digo, em sua cama. Faz-se necessário uma preparação prévia: jejum, bolhas de gases na barriga desfeitas com Luftal, intestino limpinho sem fezes, bexiga cheia no limite do suportável. Se um desses itens não estiver nos conformes, o paciente “reprovado” sai da máquina e veste outra vez a roupa, que havia sido trocada por uma camisola com abertura nas costas e fechamento com fitas. E volta para o fim da fila até ficar nos trinques.
Esse avental ou camisola é um capítulo à parte. Vestido assim, tirei foto e enviei para minhas oito irmãs, que elogiaram a graça, o garbo, a leveza e a elegância, tudo de boca pra fora, porque quando, empolgado, falei em publicar, gritaram em uníssono:
– “Nãããõ!”.
Hesitei: por que publicar, por que não publicar, por que publicar, por que não publicar? Publiquei-iôiô. Minhas irmãs morrem de vergonha por eu não ter vergonha de me expor ao ridículo e de não zelar por minha privacidade.
Vestido com essa camisola, o paciente adentra as entranhas do “dinossauro de pescoço longo, que cospe raios fulminantes”. Antes de ser engolido, já deitado na mesa de tratamento, ele tem seu posicionamento orientado pelos técnicos de radioterapia, com base na tomografia de planejamento feita anteriormente pela rádio oncologista. Para isso, marcam o corpo em diferentes pontos com tinta colorida que orientam assim a ação da Trilogy, de altíssima precisão.
Ouvir Jesus
Pronto. Os técnicos se retiram para a sala de controle, de onde monitoram tudo numa tela de televisão, seguindo as instruções do plano que direciona o feixe de radiação para a área exata do tratamento do tumor. Lá dentro, imóvel, a gente ouve os estalos, zumbidos e fuzilaria da máquina: Pá, pá, pei, pei. Não dói. Possíveis efeitos colaterais, como o sistema de micção em frangalhos, são minimizados com remédios.
Eu ouvi Jesus, foi ele quem me aconselhou a seguir esse tratamento, conforme noticiado pela Rádio Terapia PR Casseta, ondas médias, curtas e frequência modulada, que tem até um logo desenhado pelo Tuta, meu irmão. Essa emissora familiar, que circula via Zapp, foi criada para irradiar, com intervalos musicais, o boletim médico diário aos radiouvintes do clã e registrou as recomendações do médico oncologista Jesus Pinheiro, nascido no Ceará, agraciado com o título de cidadão amazonense.
Não era bem isso que eu ia tratar na coluna de hoje. Queria comentar aqui a Carta em defesa do Estado Democrático de Direito lida nesta quinta (11) nas capitais do país. Ou avaliar os R$ 926 mil de dinheiro público embolsado em dois meses, segundo o Estadão, pelo general Walter Braga Neto, candidato a vice-presidente (PL). Nem sei a razão pela qual optei por algo tão pessoal e de nenhum interesse público. Foi mais um desabafo: xô depressão! E um reconhecimento do trabalho de quem contribuiu para tornar esse caminho menos doloroso.
P.S. Agradeço à equipe de recepcionistas do Américas Centro de Oncologia Integrado: Danielle Mattos, Shana Barros, Fabiana Rosas. Às enfermeiras: Bianca Diniz e Sara Castro. Aos técnicos da Trilogy: Thiago Moreira, Gabriel Moreira, Rogério, Leo Russo. À equipe médica, especialmente à rádio oncologista Elisa de Oliveira Campana, assim como aos médicos Ronaldo Damião, Eduardo Paulino, Pedro Abreu, Mirna Bezerra Calazan e Claudio Calazan. Aos leitores, o pedido de desculpas por invasão de privacidade e pelo autocentramento. Afinal, se perdoa tudo hoje, Dia dos Pais, quando a quase-Ribamarina pode festejar a vida.