Há vários fatos e cenários a analisar nas últimas semanas na Argentina que superam nossa capacidade de narrativa, mas todos põem em xeque a “Justiça” que não funciona. Vão abaixo, por ordem cronológica.
O discurso presidencial na abertura das sessões de 2023
O presidente Alberto Fernandez em 2 horas de discurso na abertura anual das sessões do ano 2023 no Congresso, numa já inesperada cadeia nacional de TV pelo seu desuso, impactou, sem responder às expectativas de candidaturas eleitorais, mas sob aplausos unânimes da Frente de Todos, com gritos histéricos de opositores de JxC (Juntos por el Cambio). Balanceou a herança maldita deixada pelo governo Macri – dívida com o FMI, fuga de capitais e exclusão social –, a pandemia e a guerra atual; fez um detalhado informe econômico sobre as dificuldades, os logros alcançados e as perspectivas importantes da integração latino-americana, sobretudo com o advento de Lula e do Brasil na Celac.
O ápice das suas palavras, seja na abertura e sobretudo no fim do discurso, foi a defesa enfática da inocência da vice-presidenta, Cristina Kirchner. A condenação à perseguição e ao arbítrio dos juízes da Corte Suprema atual foi contundente. Disse: “Quero destacar neste instante de revalorização da democracia que há seis meses estivemos frente a um dos episódios mais desgraçados dos últimos 40 anos, como foi a tentativa de assassinato da nossa vice-presidenta Cristina Kirchner”. Pegou o boi pelos chifres: olhando diretamente aos juízes da Corte Suprema aí presentes (Rosatti e Rosenkrantz), exigiu que “a justiça aprofunde a investigação de fato, que julgue e condene os autores materiais e intelectuais dessa tentativa de homicídio”. O presidente deu um contundente apoio à Comissão de Julgamento Político no Congresso contra o mal desempenho de juízes da Corte Suprema.
Colocou-se em movimento a necessidade do respeito às funções institucionais do Executivo e Legislativo, eleitos democraticamente, contra a intromissão política do atual Judiciário (Corte Suprema) em decisões coniventes com interesses de corporações oligárquico-financeira-midiáticas, sustentadas por JxC-PRO na Argentina. Estranhamente, horas depois do discurso presidencial, ocorreram dois fatos simultâneos:
O primeiro, foi um apagão de luz produto de um incêndio que afetou torres de transmissão elétrica, atingindo quase 40% do país, arriscando a segurança da central nuclear Attucha-2. A desconfiança generalizada de que o “acidente” foi uma provocação, reforçou-se com uma entrevista do presidente Alberto ao C5N: “estou seguro de que isso foi uma sabotagem”. “Casualmente” a origem do fogo deu-se em terras de propriedade de um ex-funcionário macrista.
O segundo fato, um atentado a tiros contra o super-mercado do sogro do campeão, Leonel Messi, em Rosário, com aparente cunho mafioso. Isto, e o apagão elétrico, em pleno verão desconfortante, geraram um verdadeiro “apagão midiático” que escondeu o grito de guerra à “in-Justiça”, anunciado na abertura das sessões do Congresso. A partir desse momento, o apagão midiático contra qualquer anúncio de medida econômico-social do governo da FdT, não cessou. Desencadeou-se um cenário de violência diária, incontrolável, do narcotráfico em Rosário; um clima de violência instigada, insegurança e desconforto social, não só em toda a província de Santa Fé, mas no país, para desestabilizar o governo nacional.
Intervenção federal em Rosário
Alberto Fernandez, decidiu intervir, enviando reforço da policial federal, incluindo soldados do exército nacional (especificamente do Corpo de engenheiros) para colaborar com a segurança, e reconstrução de bairros de Rosário para combater o narcotráfico. Leia. A chegada dos soldados, é vista com bons olhos, mas com certa prevenção crítica no interior da FdT (Frente de Todos), para que o governo não caia refém de intervenções repressivas propugnadas pela extrema-direita, inócuas ao fim do narcotráfico.
O Ministro da Defesa, Jorge Taiana, argumenta que se trata de uma ação de urbanização dos bairros através do Exército, não só de segurança. Ao mesmo tempo, investigam o percurso financeiro da lavagem de dinheiro do narcotráfico, e conivências dos aparatos policiais e carcerários. Alguns dentro da Frente de Todos questionam a inoperância de tais medidas, enquanto o Estado não controlar os portos de Rosário, onde os privados comandam o comércio de cereais e drogas pelo rio Paraná. É uma questão estrutural que reconduz ao mesmo ponto de que a Justiça não funciona em todos os níveis da sociedade, enquanto o Estado nacional estiver ausente, sem acionar o monopólio do comércio exterior. Alberto Fernandez justifica a intervenção militar em Rosário assegurando que este é um “Exército democrático”, contrapondo-se à ex-ministra da Segurança, Patrícia Bullrich (JxC), que chegou a chamar o exército a intervir (pela direita) com fins estritamente repressivos. Uma das garantias de solidez democrática do governo seria ter estatizado Vicentin; o que não ocorreu.
É certo que algumas ações cívico-militares do passado, em governos peronistas, favoreceram construções de hospitais na pandemia, ou no socorro a inundados, desmistificando a imagem de soldado-gorila. No passado, na Operação Dorrego, e em La Plata, sob o governo de Cristina, a ação cívico-militar foi exemplar. Não há que esquecer que muitos soldados lutaram pela soberania das ilhas Malvinas. Hugo Chávez reeducou o exército na defesa patriótica e civil, baseado num governo de Estado popular e anti-oligárquico.
O governador da Província de Buenos Aires, Kicillof, também enfoca o Partido Judicial
Províncias como a de Buenos Aires – a mais populosa do país, governada por Axel Kicillof (FdT), para a qual se dispõe a se reeleger – tem se desenvolvido graças a um projeto político peronista de economias inclusivas, com mais Estado e participação social. “Não chegamos para durar, tampouco para administrar escassez. Não chegamos para esconder os problemas da província embaixo do tapete. Chegamos para transformar. Chegamos para dar à Província o projeto de bem-estar, identidade, de desenvolvimento, de integração que tanto se necessita. Chegamos para trazer justiça social, crescimento econômico com inclusão. Chegamos para recuperar o protagonismo da Província de Buenos Aires.” … “votamos pela democracia plena, não pela proscrição”. (A. Kicillof)
A condenação ao atentado, e à perseguição política do lawfare e inabilitação à Cristina Kirchner é segundo Kicilloff, lema central para a Frente de Todos. Reiterou que lutará como anunciado pelo presidente contra a injusta co-participação dos Fundos do estado federal para a segurança, onde o governo Macri, favoreceu o prefeito da cidade de Buenos Aires. Veja seu discurso completo, também ocultado por todos os incêndios e tiroteios midiáticos.
No 8M, dia Internacional da Mulher, mulheres contra a impunidade e a “Justiça”que não funciona
O movimento das mulheres do “Nenhuma a menos”, e todas as trabalhadoras congregadas nos sindicatos e movimentos sociais, neste 8 de março, saíram em várias praças do país e da capital. Os lemas centrais foram, além dos direitos trabalhistas das mulheres, a impunidade e lentidão nos julgamentos de caso de femicídio. Desde o Congresso da Nação ao edifício do Tribunal, as lutadoras vão com os cartazes “Com esta Justiça não há direitos, nem democracia!”, “A dívida é com as trabalhadoras”. Com o alvo central deste ano contra a “Justiça” que não funciona, e a luta contra a proscrição de Cristina Kirchner, milhares de mulheres organizadas protestaram e fizeram a vigília diante do edifício central do Tribunal na capital.
O TOF-2 condenou a vice-presidenta, Cristina Kirchner a 6 anos e inabilitação perpétua.
Sobre esta causa Vialidad (absolutamente sem provas) já publicamos em agosto de 2022. O ditame final do processo, realizou-se ontem por ação de juízes e procuradores amigos de Macri, afins ao poder econômico concentrado, do Estado paralelo e da máfia midiática. Como dito por Cristina Kirchner, a principal, já provada estadista peronista e maior líder de massas, depois de Peron e Evita: “Mais que um tribunal de lawfare é um “verdadeiro pelotão de fuzilamento!”. Os fundamentos escritos pelos inquisidores constituem 1616 páginas, sem provas, nem sustentabilidade jurídica, segundo os advogados de defesa. O objetivo único dessa “Justiça” é político: é a proscrição para impedir a candidatura presidencial para 2023 de Cristina Kirchner, que junto a Nestor Kirchner, em 3 governos, tirou o país do atraso com verdadeiros projetos de Estado e inclusão social. Essa sentença ocorre após a tentativa de magnicídio à vice-presidenta, em 1 de setembro, onde os mandantes políticos estão impunes.
Inicia-se o caminho para a apelação da defesa de CFK frente à chamada Câmara de Cassação e depois a Corte Suprema. Inicia-se um processo de grandes mobilizações populares contra a proscrição. A primeira delas já anunciada para sábado no estádio de Avellaneda, província de Buenos Aires, por todas as forças militantes e sindicais da Frente de Todos contra a proscrição de Cristina Kirchner. Além de discutir em comissões metas políticas, culturais e econômicos das lutas hoje e amanhã, o lema do encontro é: “Lute e Volte”; o mesmo que mobilizou milhões contra a proscrição, perseguição e exílio de Peron.
Será pauta essencial do governo e da FdT, não somente definir candidatos e programas presidenciais, mas, desde já acentuar o poder comunicacional com a cidadania, para mostrar que a questão da “Justiça” é decisiva e tem muito a ver com o dia a dia das famílias, com o salário, o preço dos alimentos, da energia e dos aluguéis.
Serão temas para um próximo artigo: o encontro da FdT em Avellaneda, e o discurso magistral de Cristina Kirchner hoje (o primeiro após o ditame judicial), na Universidade de Viedma, na província de Rio Negro, onde recebeu o título de honoris causa. “Hegemonía ou consenso? Ruptura do pacto democrático numa economía bimonetaria: inflação e FMI, crise de dívida e fragmentação política” (CFK).
O próximo 24 de março, dia da Memória, Verdade e Justiça, promete ser um dia luta, e mobilização nacional gigantesca que certamente terá como eixo central combater a proscrição do peronismo anunciada com condenação e inabilitação de Cristina Kirchner.
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