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quinta-feira, 28 março, 2024

A guerra que ninguém vê

Por Marina Colerato/Le Monde Diplomatique

Sob comando de Edorgan, a Turquia inicia uma nova ofensiva militar contra os curdos na Síria e no Iraque. Operação Claw Look fica às sombras dos acontecimentos na Europa e os curdos não encontram solidariedade internacional.

Enquanto a atenção segue totalmente voltada para o conflito Rússia e Ucrânia, a Turquia iniciou, no último dia 17 de abril, uma ofensiva militar contras os curdos, no sul do Curdistão, nas cidades de Zap e Avaşîn. Localizadas na fronteira da Síria com a Turquia, essas regiões estão amplamente sob o controle do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), fundado em 1978 como forma de organizar a histórica luta curda por um Curdistão independente. Atualmente, o partido é considerado terrorista pela Turquia, bem como por alguns de seus países aliados, como Estados Unidos, no que tem sido cada vez mais entendido como uma estratégia política internacional para enfraquecer o movimento de autodeterminação curdo.

O atual conflito se desdobra nesse cenário de luta secular e acontece alguns meses após o Newroz, o ano novo Curdo, cujas celebrações no dia 21 de março levaram milhares de pessoas às ruas e serviram também como manifestação política em apoio ao movimento de libertação curdo e ao próprio PKK. A chamada operação Claw Lock encontra resistência nas forças de defesa das regiões da Administração Autônoma do Norte e Leste da Síria (ANF), formadas em 2014 sob liderança do Partido dos Trabalhadores do Curdistão. Recep Tayyip Erdoğan (Partido da Justiça e Desenvolvimento – AKP), atual presidente da Turquia, e seus militares turcos têm apoio de mercenários do Estado Islâmico que buscam aumentar seu controle na região. Ambos os lados já fizeram estimativas de baixa, que diferem entre si e não podem ser confirmadas por fontes independentes. Na análise publicada no site da ANF, Civaka Azad, do Centro Curdo de Relações Públicas, afirmou que o conflito deve se desenvolver ao longo dos próximos meses.

Após o início da operação diversas outras regiões curdas já foram atacadas pelas forças turcas por ar e por terra como Afrin, Til Temir, Metîna, Zirgan e recentemente, a cidade de Kobanê, em Rojava, importante espaço de resistência ao Estado Islâmico e do movimento de libertação curdo. O ataque à região estava sendo orquestrado desde o final do ano passado. À época, a Turquia não recebeu autorização dos outros países integrantes da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) para concretizar os planos, o que não a impediu de iniciar ataques por drones em outras regiões no norte da Síria.

Dessa vez, não houve sinal vermelho por parte dos países membros, que permanecem mudos acerca da guerra em curso – até o momento, apenas a embaixada dos Estados Unidos na Síria emitiu um comunicado no Twitter solicitando que “as partes desescalem” o conflito. Apesar dos diversos crimes de guerra já cometidos pela Turquia ao longo dos últimos dias, inclusive a utilização de armas químicas, o país segue a ofensiva contra os curdos sem retaliações por parte das lideranças políticas globais. Há interesses políticos e econômicos em jogo: a Alemanha, por exemplo, é uma grande fornecedora de tecnologia bélica para o Estado turco e tem uma política de retaliação aos militantes alemães que demonstram apoio ao movimento curdo.

Os atuais ataques ao sul podem ser lidos dentro de um contexto amplo de ataques realizados pelo Estado turco em diversas partes do Curdistão, incluindo aqueles acontecendo em Şengal (Sinjar), na fronteira entre Iraque e Síria – onde um muro para isolar Rojava está sendo construído e a presença militar iraquiana já vinha sendo reforçada, aumentando as tensões entre o governo e a população local. No último dia 19, o exército iraquiano atacou as posições do YBS e YJS, grupos de autodefesa no Iraque ligados ao PPK. Os ataques do governo Iraquiano podem ser vistos como uma ofensiva crescente para expulsar os curdos, sobretudo as forças de autodefesa da região.

Os interesses turcos e iraquianos se alinham aos do Partido Democrático do Curdistão (KDP), sob liderança da família Barzani, recentemente exposta em esquemas de corrupção nos EUA. Desde o fim da Guerra do Golfo, o KDP divide a gestão do Governo Curdistão Iraquiano (KGR) com o Partido da União Patriótica (PUK). Além dos encontros frequentes entre as lideranças do KDP e o governo turco, os primeiros helicópteros da ofensiva militar turca contra o Curdistão saíram de uma região do Iraque controlada pelo KDP. Até o momento, o PUK permanece contrário à atual ofensiva militar ao Curdistão, tanto no Iraque quanto na Síria, e já emitiu uma série de comunicados condenando a tripla ofensiva militar da Turquia, Iraque e KDP.

A mobilização social contra a ofensiva turca foi rápida em acontecer. Desde o início da operação Claw Lock, milhares de pessoas em Sengal e Mexmur, no Iraque, e Kobanê e Qamlisho, em Rojava, foram às ruas para se mobilizar contra os ataques enquanto centenas de pessoas se reuniram para os funerais dos militantes das forças de autodefesa. Na Europa, manifestações aconteceram em dezenas de cidades, entre elas Berlim, Viena, Frankfurt e Paris. O silêncio da mídia internacional sobre o conflito, que já deixou centenas de mortes, era também o que Erdoğan esperava, e precisava, ao lançar a operação Claw Look às sombras dos acontecimentos na Europa.

(Creative Commons)

Motivação turca e o projeto neo-otomano

Além de uma clara retaliação às conquistas curdas, sobretudo o estabelecimento da Administração Autônoma do Norte e Leste da Síria sob liderança do PKK e seu amplo apoio popular, o regime do AKP também tem interesses neo-otamos de retomada de territórios perdidos com a queda do Império, no início do século XX. Com a aproximação do fim do Tratado de Lausanne, responsável por definir as fronteiras modernas da Turquia, as tensões locais são amplificadas, a exemplo da ocupação de Afrin – assentada sobre poços de petróleo – e da faixa entre Serêkaniyê e Girê Spî no norte da Síria.

A Turquia também mantém numerosas estações militares no sul do Curdistão e quer ampliar sua influência no Iraque para retomar outros territórios ricos em petróleo e que considera seus por direito, como Kirkuk e Mosul. Outras questões políticas aparecem como motivadoras, como a crise econômica na Turquia e o papel da guerra em fortalecer um sentimento de união nacionalista turca (assentado no histórico racismo anti-curdo), distraindo a população do fracasso econômico atual.

As tensões entre turcos e curdos duram décadas. Logo após a assinatura do Tratado de Lausanne, que enterrou a possibilidade da criação oficial de um Estado Curdo, uma política de “turquificação” proibiu idiomas de minorias étnicas, as palavras “curdo” e “Curdistão” foram abolidas e os curdos passaram a ser chamados de “turcos das montanhas”. Nos anos 90, o genocídio se intensifica com a criação do Centro de Inteligência Policial e Contra o Terrorismo que, junto com o grupo islâmico ligado ao Estado Hezbollah Curdo (sem ligação com o grupo libanês de mesmo nome), assassinou membros do PKK e civis em plena luz do dia.

(Creative Commons)

Os curdos nunca aceitaram a perseguição turca de forma pacífica e vários levantes curdos aconteceram ao longo dos anos e das políticas de limpeza étnica, deixando dezenas de milhares de pessoas mortas, feridas ou deslocadas. Um dos fundadores do PKK e principal liderança curda contra o genocídio, Abdullah Öcalan foi condenado à morte e capturado em 1999. A sentença foi alterada para prisão perpétua (em isolamento) após a Turquia abolir a pena de morte em uma tentativa de ingressar na União Europeia. A prisão de Öcalan não foi suficiente para conter o movimento curdo e, por outro lado, não cessou a ofensiva turca. Sob a presidência de Erdogan, o país começou a implementar “leis antiterroristas” com definição tão ampla de terrorismo que até lançar uma pedra, caso você fosse curdo, poderia ser considerada uma infração terrorista. A lei antiterrorista também serve para reprimir apoiadores da revolução curda, sobretudo do PKK e aliados.

Porém a Turquia também tem se preocupado com o avanço curdo dentro da política institucional turca. Em 2009, o Partido da Sociedade Democrática (DTP), comprometido com o Confederalismo Democrático, projeto político do PKK, obteve grande êxito nas eleições. O que levou o Estado turco a prender representantes do partido e depois proibi-lo. De qualquer forma, outro partido, o Partido Paz de Democracia (BDP) foi criado na sequência, sucedendo tanto manifestações de massa como assassinatos. Em 2015, o PKK responde aos incessantes e pesados ataques dos turcos nas regiões onde o partido tem suas bases com expectativa de minar o crescente sucesso eleitoral do Partido Democrático dos Povos (HDP), que substituiu o DTP em 2014. Levantes curdos na Turquia contra Erdogan e a favor do PKK foram reprimidos com artilharia pesada, tanques e helicópteros. Com as eleições se aproximando e a popularidade do HDP em ascensão, Erdogan e aliados tentam um novo banimento ao partido curdo.

Para que a atual ofensiva turca seja bem-sucedida, é preciso derrotar as forças de guerrilha do PKK, que mesmo em clara desvantagem de recursos se considerarmos que a Turquia é o segundo maior exército da Otan, têm sido capazes de conter o Estado Islâmico bem como resistir às ofensivas do KDP e da Turquia nas regiões autônomas. A aposta é que vencendo os guerrilheiros e guerrilheiras curdos em Zap e Avaşîn, seja possível avançar em outras regiões administradas pelo autogoverno, não só na Síria, mas também em Şengal e Mexmur. Mas se a Turquia está obstinada em seu projeto neo-otomano também estão os curdos em manter seu projeto de autodeterminação.

Marina Colerato é jornalista dedicada a cobrir pautas de justiça social e ambiental. Atualmente está como diretora presidente no Instituto Modefica e é mestranda em ciências sociais pela PUC-SP onde pesquisa ecofeminismo, justiça climática e neoliberalismo. Você pode encontrá-la no twitterinstagram e na sua newsletter Lado B.

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