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sexta-feira, 26 julho, 2024

A fritura da ministra: Guerra às drogas na crise de Nísia Trindade.

Foto Marcelo Camargo/Agência Brasil

Tatiana Dias/Editora Geral do Intercept Brasil

Ilustrada com uma foto da ministra Nísia Trindade preocupada, com as mãos em frente ao rosto, uma reportagem da revista Veja no último final de semana estampou: “irregularidade” relacionada à Trindade estaria “elevando a temperatura” no Ministério da Saúde.

A ex-presidente da Fiocruz entrou na berlinda dos ministros de Lula depois da publicação de uma reportagem da Folha sobre a cobiça do PP pelo Ministério da Saúde. Segundo o texto, em que nenhuma fonte fala abertamente, o presidente da Câmara, Arthur Lira, estaria negociando um apadrinhado no lugar de Trindade. A Saúde perigaria ir para o Centrão.

A Veja tentou engrossar o caldo resgatando um problema antigo. Ligou Nísia Trindade a um processo administrativo que obrigou a Fiocruz a devolver R$ 11 milhões ao Ministério da Justiça por não cumprir os requisitos de uma pesquisa encomendada e paga pela pasta. A Controladoria-Geral da União constatou irregularidade, segundo a reportagem. O valor nunca foi devolvido. “O caso provavelmente passaria despercebido se não fosse um detalhe: entre as autoridades apontadas como responsáveis pelas irregularidades está Nísia Trindade”, diz a Veja.

No Intercept, porém, o caso nunca passou despercebido. E explicamos: por trás de mais essa tentativa de fritura da ministra está a guerra às drogas. A “irregularidade” é uma disputa metodológica – e ideológica.

Em 2019, contamos como o 3º Levantamento Nacional Domiciliar sobre o Uso de Drogas, uma pesquisa nacional contratada em 2014 e concluída em 2016, foi censurada pela Secretaria Nacional de Política de Drogas. Em 2017, o então ministro Osmar Terra, um dos maiores defensores da guerra às drogas e da internação compulsória de dependentes, criticou: “Não sei onde a Fiocruz faz suas pesquisas, mas eles insistem em dizer que não há uma epidemia de drogas no Brasil”.

O levantamento apontava, por exemplo, que apenas 0,9% da população havia usado crack alguma vez, 0,3% no último ano e apenas 0,1% nos últimos 30 dias. No mesmo período, maconha, a droga ilícita mais consumida, havia sido usada por 1,5%. Pesquisadores ouvidos por nós foram unânimes em dizer que, embora preocupantes, os índices estavam longe de representar o que o governo, sobretudo Osmar Terra, chamava de “epidemia”.

No estudo, a Fiocruz usou a mesma metodologia da Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar, do IBGE, para ouvir 16.273 pessoas em 351 cidades. A amostra era o dobro do levantamento anterior, feito em 2005 pelo Centro Brasileiro de Informações Sobre Drogas Psicotrópicas. A pesquisa da Fiocruz mostrou, pela primeira vez, os padrões de consumo dos municípios rurais e da faixa de fronteira do país. E investigou o uso de 10 tipos ou categorias de drogas ilícitas, além de tabaco e cigarro.

Mas o levantamento foi embargado. O governo disse que a metodologia “não atendeu aos requisitos do edital”, por não permitir “a comparação dos resultados com o primeiro e o segundo levantamentos”.

Depois da nossa reportagem, o caso foi parar até no Jornal Nacional. Terra disse que “a Fiocruz tem o viés de defender a liberação das drogas”, deixando claro que discordou dos resultados do levantamento. A Fiocruz defendeu com veemência a sua metodologia. Na época, publicamos a pesquisa censurada na íntegra.

Em 2021, o Ministério da Justiça contratou sem edital outro grupo para fazer um novo levantamento. A um custo de R$ 12 milhões e com uma descrição questionável do trabalho – com várias etapas custando o mesmo valor, até os centavos – a pesquisa foi encomendada à Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas, vinculada à Unifesp.

O grupo é liderado pelo psiquiatra Ronaldo Laranjeira, conhecido defensor da internação compulsória, das comunidades terapêuticas e da existência de uma epidemia de drogas. Também é dono de uma clínica para “casos complexos em dependência química”. Nós contamos essa história no Intercept.

Agora, não surpreende que a ministra Nísia Trindade, a primeira mulher a ocupar o cargo, fosse a próxima na linha de tentativa de frituras turbinadas por especulação. Mas usar uma suposta “irregularidade” como essa é uma enorme distorção que conta só parte da história.

Trata-se de uma guerra de evidências que vai subsidiar a política de drogas no país e movimenta indústrias milionárias com muitos contratos públicos e ligação com políticos. Não por acaso, a indústria de clínicas antidrogas explodiu nos últimos anos, especialmente após a sanção da Política Nacional de Drogas (criada por, veja só, Osmar Terra) em 2019. Foram meio bilhão de reais despejados em comunidades terapêuticas. Haja “epidemia” para justificar.

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