O “Regatão da Saudade”, por mim resenhado em 1995, habita o tempo e mantém vivo o passado “que não passou”. Com os olhos ardidos simbolicamente pela fumaça manauara, releio o livro e fico só abicorando o autor nascido em Manaus, numa casa pobre da rua Nhamundá, Praça XIV, com os olhos fechados como um filhotinho de cachorro. Não via nada. Será que é cego? Pensaram até em operá-lo. Mas dona Inácia, sua mãe, seguiu receita de uma velhinha sábia e pingou-lhe leite materno sobre os olhos.
O menino gravou martelos retinindo nos postes de ferro, navios apitando no porto, os poucos carros buzinando nas festas de Natal, os berros da plateia do Cine Guarany, as brincadeiras de crianças nas ruas – cantigas de roda, camoniboi, 31 alerta, o cão do Luso, as conversas dos vizinhos ao entardecer em cadeiras nas calçadas. O regatão, que navega na canoa do tempo, desembarca hoje essas saudades misturadas às nossas embaralhadas lembranças individuais.
Difícil imaginar como nossas netas e netos habitarão esse tempo sinistro e dele lembrarão. No conhecido poema “Aos que virão depois de nós”, Bertold Brecht lamenta os tempos sombrios em que vivemos, “quando falar de flores é quase um crime, pois significa silenciar sobre tanta injustiça”. Para o poeta, “aquele que ainda ri é porque ainda não recebeu a terrível notícia”.