A crítica apresentada pelo nosso leitor é uma boa oportunidade para ampliar o debate. Esse humilde blogueiro responde às críticas de Janos Leite e detalha melhor as ideias da postagem em questão.
por Wilson Ferreira/Jornal GGN
Uma reposta do Cinegnose ao leitor Janos Leite
Publicamos uma pertinente crítica à postagem “Lula joga um balde de água fria na guerra da comunicação” deste “Cinegnose”, feita pelo nosso leitor Janos Biro Marques Leite. Na postagem em questão fazíamos uma crítica às declarações de Lula sobre a questão da Comunicação nas estratégias políticas da esquerda, por supostamente conter dois erros fundamentais: (a) a impossibilidade de uma política digital progressista nas redes sociais por elas serem um meio dominado pela baixaria e manipulação; (b) o que ocorreu nas eleições de 2018 teria sido uma novidade, cara e bancada ilegalmente. A partir de uma discussão dentro da ciência da Comunicação, apresentávamos a tese de que é possível uma ação progressista com os algoritmos e que a estratégia da direita nas redes sociais nada mais é do que a colocação em prática de uma descoberta de 70 anos atrás: a força da influência social. A crítica apresentada pelo nosso leitor é uma boa oportunidade para ampliar o debate. Esse humilde blogueiro responde às críticas de Janos e detalha melhor as ideias da postagem em questão.
1. A crítica de Janos Biro Marques Leite
“Como se não fosse possível domar os algoritmos e fazê-los trabalharem a favor de outros valores ou ideologias. (“Lula joga um balde de água fria na guerra da comunicação”, 14/12/2019) – clique aqui.
Onde estão as evidências de que esses algoritmos podem ser “domados” mais rápido e de modo mais efetivo do que o contrário? A meu ver, o artigo peca pela parcialidade, considerando a análise de Lazarsfeld como se fosse a última palavra no assunto, ignorando que ela também pode ser criticada, muito embora Lula e o PT provavelmente não pensaram tão a fundo nisso (mas tão pouco podem ser considerados como bons representantes da esquerda).
O artigo pressupõe que o “mensageiro” é neutro, afinal? Apesar do seu posicionamento progressista, Lazarsfeld foi mais liberal do que socialista, tanto que colaborou com corporações. Eu odeio quando marxistas dizem isso, mas nesse caso, eu vejo concordar: faltou uma análise de classes no artigo.
Os exemplos que o artigo traz de “bom uso” das mídias sociais seriam a campanha presidencial de Barack Obama em 2008 e o PTinder?
“Cinegnose vem há anos insistindo na ideia de que a esquerda deve lutar no mesmo campo simbólico da sociedade na qual a direita ganha por WO: o campo da produção simbólica digital” (“Lula joga um balde de água fria na guerra da comunicação”, 14/12/2019).
Com qual esquerda o Cinegnose está dialogando? Porque sua posição me parece mais socialdemocrata e liberal do que socialista. Por um lado, não vi nenhuma evidência de que uma engenharia da “opinião pública” usando os novos meios digitais (viralizar e atingir formadores de opínião) pode garantir vitória nas urnas para a esquerda. Mas mais importante que isso, é que no atual contexto político mesmo uma vitória assim seria vazia e insuficiente. O capitalismo não pode ser vencido nas urnas, a esquerda real está fora do jogo eleitoral e meramente administrativo. Os governos de “esquerda” que são elegíveis precisam fazer conciliação de classes, o que não é mais uma opção.
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Não há mais tempo para transições pacíficas e processos de “redemocratização”. Eles se mostraram frágeis demais para deter o avanço das condições materiais do capitalismo. Basta criar algumas crises para desmontar todas as supostas conquistas progressistas. Os meios de controle social avançam junto com as possibilidades “democráticas” das mídias sociais. Esse discurso de “disputar o campo simbólico” acaba dando vantagem à ideologia liberal.
Embora Paul Lazarsfeld seja muito importante na comunicação, o ramo mais crítico da sociologia da comunicação tem várias críticas a ele, e daí vem grande parte do conflito entre essas as áreas. Lazarsfeld defendeu a sociologia empírica, um método estatístico para apreender a “opinião pública” que, na ideia dele, poderia ser usada para construir uma política mais democrática. Adam Curtis cita alguns dos problemas dessa abordagem nos seus documentários. Essa ideia tem sido a base da ilusão social-democrata: ela supervaloriza os formadores de opinião, uma espécie de casta iluminada, com a qual precisamos negociar para construir uma sociedade mais justa. Sim, isso funciona para avançar algumas pautas progressistas. Mas sua utilidade para efetivamente derrubar o capitalismo é muito mais limitada. Se você só quer ideias mais legais circulando, e mais conciliadores de classes, ok. Mas isso está se tornando insustentável.
O modelo de Lazarsfeld é extremamente corruptível. O artigo trata Obama como exemplo de sucesso, mas uma análise realmente socialista não é tão otimista assim. Para muitos teóricos da esquerda, foi justamente a crença nesse modelo de “democracia midiática” que levou à ascensão da extrema-direita nos EUA, justamente porque esse sistema é extremamente frágil.
O artigo também parece fazer pouco caso das teorias que defendem que houve sim um avanço nas técnicas de manipulação e controle na última década. Não é só potencialização do que sempre existiu, são fenômenos novos mesmo. Isso ainda está em discussão, não pode ser dispensado tão fácil.
Paul Lazarsfeld |
Lazarsfeld por vezes também determinou os rumos da pesquisa com suas preferências, contradizendo a estatística e usando conjuntos de dados que não tinham como ser replicados nem generalizados. Isso é explicado em “A History of Communication Study: A Biological Approach”, de Everett Rogers. Seus dados mostravam os efeitos cognitivos produzidos pelo rádio, mas ele preferiu ignorá-los e insistir na hipótese dos efeitos mínimos. Continuar usando essa mesma hipótese em tempos de mídias digitais não é uma ideia tão boa assim. Há evidências de que os efeitos são muito maiores agora. E isso coloca em xeque toda base do argumento do artigo. A pesquisa empírica de Lazarsfeld não tem toda essa utilidade que ele sugere, nem para a esquerda lulista, e muito menos para a esquerda revolucionária e realmente anti-capitalista.
O “suposto poder das mídias em doutrinar, manipular ou inculcar conteúdos pela mera exposição e repetição de conteúdos para os receptores dos meios de comunicação” pode não ser tão suposto assim, isso também está em disputa, não é consenso. Lógico que a ideia de que formadores de opinião sancionam percepções não é totalmente errada. Mas isso não é suficiente pra dispensar tudo que está implicado na posição do Lula. O discurso da “disputa simbólica” também precisa de criticidade. Tem muito mais em jogo do que Lula versus Lazarsfeld.
Por exemplo, tratar a mineração de big data como simples potencialização do processo “individualista” na comunicação é um exagero. A massificação é criticável, mas a viralização também é! Não é como se só tivéssemos essas duas opções. Achar que você pode contrapor discursos de ódio com uma viralização do bem é uma hipótese que precisa ser muito mais estudada, antes de chegarmos a uma conclusão. Além disso, as críticas não se restringem à efetividade do processo, mas também à ética dos métodos. Não é só uma questão de moralismo contra o uso de virais que atentam contra os princípios éticos da esquerda. A discussão ética é séria e os argumentos não podem ser dispensados tão fácil, nem são todos enviesados como o artigo fez parecer. Como se os virais fossem uma arma efetiva que a esquerda não quer usar por um tradicionalismo sem sentido. Não é bem assim. A análise política das mídias digitais vai muito mais longe do que isso, ela não necessariamente conclui que precisamos apenas de um método empírico melhor.
Nesse ponto, eu acho que o artigo foi um pouco injusto com ideia de “chamar o povo às ruas”, como se fosse uma simples ideia atrasada e que não tem como funcionar mais. Isso é um reducionismo, o sentido político do “coletivo” é mais profundo do que isso, e as críticas às metodologias individualistas não podem ser desprezadas.
Não acho que o fator da influência social na comunicação esteja sendo tão ignorando assim pela esquerda. Ele simplesmente não é tão relevante para o que a esquerda realmente tem como projeto político. Por exemplo, não sabemos se os métodos para alcançar influenciadores “do bem” realmente podem avançar tão rápido quanto os métodos para desviá-los. Isso está em debate, a hipótese de Lazarsfeld e seus seguidores ainda pode ser refutada. E embora seja possível vitórias pontuais (avançar certas pautas progressistas) com a viralização, o jogo permanece fraudado quando se tenta usar o mesmo meio para mudanças mais radicais que, no entanto, são cada vez mais urgentes e necessárias. Uma disputa simbólica mais acirrada tem pouco resultado num contexto de intensificação do confronto material de classes, como no caso de genocídio de povos nativos por exemplo.
Em resumo, dizer que o problema da esquerda é que ela “prega apenas para convertidos” é uma meia-verdade. Isso não pode ser usado como desculpa para evitar uma crítica mais radical à sociedade. O enviesamento cognitivo produzido pela cibercultura ainda é uma hipótese válida. A “guerra semiótica” de vírus contra vírus não é uma solução tão simples assim. Há muitos outros fatores. Segundo as teorias mais “pessimistas”, a probabilidade de realmente “reconquistar as redes sociais” é mínima. Mas essas teorias não podem ser dispensadas tão rápido, precisamos levar elas em conta a discuti-las também.
Nesse sentido, não é totalmente absurdo pensar em alternativas para a “midialização” ou a “digitalização” (que também são fenômenos da globalização). Suas condições materiais e sociais afinal são criticáveis também. A manutenção do ciberespaço como “novo espaço público” depende de uma estrutura extremamente complexa, custosa, danosa ao meio ambiente, e frágil, muito frágil em sua base. Além do que o discurso que enaltece essa mudança, segundo alguns críticos, também faz parte da ideologia liberal californiana. Entusiastas da “revolução digital” na comunicação podem estar empolgados com pequenas vitórias, sem atentarem para o contexto político mais amplo: a capacidade de mudança política real pode estar definhando na medida em que mergulhamos nessa realidade virtual, como indica Adam Curtis. Existem ainda argumentos para defender que talvez não dê realmente pra competir no mesmo terreno, mesmo que a fala do Lula tenha passado muito longe deles.
O problema não é necessariamente que a esquerda “negligenciou” os influenciadores. A ascensão de um “Estado teocrático cristão-militar fundamentalista” não pode ser explicada somente pela gestão de influenciadores. Outros fatores políticos ainda precisam ser levados em conta.
2. Resposta do Cinegnose
Caro leitor Janos…
A tese de que seria possível “domar os algoritmos” parte da constatação da transformação da natureza da WWW a partir de do ano 2000, marcado pelo crash da Nasdaq e das empresas “ponto com”. A passagem da “Web 1.0” para Web 2.0.
O momento em que a Internet abandonou o projeto de se tornar uma gigantesca biblioteca universal e uma rede colaborativa de inteligência coletiva. Abandonou simplesmente porque as empresas desistiram de patrocinar esse projeto, por finalmente verem que não haveria retorno financeiro.
Desde então, começaram a bancar a “Web 2.0”: uma nova rede que daria aos “cidadãos digitais” a oportunidade de não mais partilhar conhecimento, mas sim toda a mediocridade da vida privada cotidiana que poderia ser transformada em tendências, memes, hábitos, repentinamente turbinados por influenciadores digitais.
Já que está partindo do referencial do materialismo histórico marxista, a história da Internet é o clássico exemplo das contradições entre as forças produtivas e as relações sociais de produção.
Pesquisadores como o historiador inglês Richard Barbrook lançava em 1999 o manifesto “Cibercomunismo: Como os Americanos Estão Superando o Capitalismo no Ciberespaço” onde defendia que a Internet estaria produzindo a superação do capitalismo: “Um espectro assombra a Internet: o espectro do comunismo. Refletindo a extravagância da nova mídia, esse espectro assume duas formas distintas: apropriação teórica do comunismo stalinista e a prática cotidiana do cibercomunismo” (Disponível em http://www.imaginaryfutures.net/2007/04/17/cyber-communism-how-the-americans-are-superseding-capitalism-in-cyberspace/).
Ou a crítica do engenheiro do Vale do Silício Jaron Lanier de que a Web 2.0 abandonou o projeto inicial da inteligência coletiva e da biblioteca universal para a redução das expectativas sobre a inteligência humana aos algoritmos e aplicativos que criam bolhas de usuários. Que docilmente entregam seus dados pessoais para a prospecção mercadológica e política feita pelas grandes empresas – clique aqui.