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quinta-feira, 5 dezembro, 2024

A DESUMANIDADE DO CAPITALISMO

Prabhat Patnaik [*]

Há mais de dois anos o mundo enfrenta uma pandemia que não se via desde há um século e que, segundo a OMS, já ceifou 15 milhões de vidas e não está próxima do fim. Trata-se de uma crise sem precedentes para toda a humanidade, a qual requer um esforço maciço por parte de todos os governos, especialmente daqueles do terceiro mundo onde os povos são particularmente vulneráveis não só devido à doença mas também à miséria que a acompanha.

É preciso expandir instalações hospitalares, manter um número adequado de camas hospitalares, criar instalações de testes, disponibilizar vacinas, montar instalações de vacinação e assim por diante. Além disso, os governos têm de proporcionar alívio à população através de transferências e socorrer pequenos produtores que podem afundar. Tudo isto exige um aumento das despesas por parte dos governos. Mas precisamente devido à pandemia, a produção sofre e com ela as receitas do governo às taxas tributárias existentes. A menos que elevem as taxas de impostos sobre a riqueza, têm de ampliar os seus défices orçamentais em proporção ao PIB. Em suma, têm de adotar políticas que vão diretamente contra os ditames do neoliberalismo, que violam todas as restrições impostas pela chamada “responsabilidade fiscal” e que abandonam toda a preocupação com a “austeridade” orçamental. Mas vejamos o que realmente aconteceu.

Precisamente devido ao abrandamento ou à estagnação da economia mundial, as exportações dos países do terceiro mundo sofrem. Sem dúvida, as suas importações também sofrem devido ao abrandamento das suas próprias taxas de crescimento do PIB. Mas mesmo assumindo que as exportações e importações são afetadas na mesma medida de modo a que o défice ou excedente comercial desça a par do PIB, permanece o facto de que os compromissos herdados da dívida externa têm de ser cumpridos e a sua magnitude em relação ao PIB deve aumentar. Estas dívidas precisam ser roladas (rolled over) e o seu serviço tem de ser devidamente diferido. Por outras palavras, mesmo se os fluxos comerciais em relação ao PIB permanecerem os mesmos para todos os países após a pandemia, tal como antes, enquanto o próprio PIB estagna, os stocks da dívida externa ascendem em relação ao PIB devido a esta estagnação. O fardo da dívida, portanto, torna-se maior e requer uma acomodação especial a ser oferecida aos países do terceiro mundo.

O caminho mais óbvio de o fazer é ter uma moratória da dívida durante um certo número de anos. Dentro do capitalismo mundial contemporâneo, a instituição que tem de ser encarregada de implementar tal moratória da dívida é o FMI, o qual também deveria estar a encorajar os países a abandonarem a “austeridade” e a gastarem na saúde e bem-estar do povo durante a crise. De fato, a atual diretora administrativa do FMI, Kristalina Georgieva, tem dito frequentemente a alguns países membros para abandonarem a “austeridade” nesta época de crise, pelo que se pode ter a impressão de que o FMI viu finalmente a magnitude da ameaça que a pandemia representa para a humanidade como um todo. Por exemplo, ela recentemente exortou a Europa a não “pôr em perigo a sua recuperação econômica com a força sufocante da austeridade”.

Mas a realidade, revela-se, tem sido bastante diferente. A Oxfam analisou recentemente 15 acordos de empréstimo assinados pelo FMI com países do terceiro mundo no segundo ano da pandemia, e 13 destes insistem explicitamente na “austeridade”. Tais medidas de “austeridade” incluem impostos sobre alimentos e combustíveis e cortes nas despesas por parte dos governos que inevitavelmente afetam serviços básicos como educação e cuidados de saúde. No caso de seis países adicionais com os quais têm negociado, o FMI também está a insistir em que medidas semelhantes sejam por eles adotadas.

Esta insistência na “austeridade” não pode ser descartada como uma exceção. No início de 12 de Outubro de 2020, a Oxfam relatou que desde Março de 2020, quando foi declarada a pandemia, o FMI havia negociado 91 empréstimos com 81 países. Destes, em cerca de 76, nomeadamente em 84% dos acordos de empréstimo, havia uma insistência na “austeridade” que não só tornaria a vida mais difícil para as pessoas pobres apanhadas nas garras da pandemia como também resultaria numa compressão das despesas de saúde. Portanto, a insistência do FMI na “austeridade” continua tão forte como sempre, mesmo no momento em que os povos do mundo menos podem suportar o seu fardo. Não surpreendentemente, a Oxfam sublinhou o contraste entre os conselhos de Kristalina Georgieva à Europa para não ser constrangida pela “austeridade” e o programa real que a instituição por ela dirigida insiste: que no terceiro mundo é preciso cumprir a “austeridade”. Nesta base, a Oxfam acusou o FMI de utilizar “dois pesos e duas medidas” (“double standards”), uma para os países avançados e outra diferente para os países do terceiro mundo. A utilização de duplos padrões é sempre repugnante; mas a sua utilização no momento de uma pandemia que está a afetar toda a espécie humana é particularmente abominável.

No entanto, o que a análise da Oxfam falha é o fato de os evidentes duplos padrões no comportamento do FMI são imanentes à natureza do próprio capitalismo. Na verdade, uma sociedade de classes implica necessariamente duplos padrões: um trabalhador não pode entrar num banco e pedir crédito, mas é claro que uma pessoa rica pode candidatar-se e obter crédito. Dito de outra forma, o montante de capital que se pode obter de fontes “externas” depende da quantidade de capital “próprio” que se tem, razão pela qual a propriedade sobre o capital é uma condição essencial para ser um capitalista. Se fosse este o caso, qualquer pessoa poderia tornar-se capitalista, de modo que haveria uma perfeita mobilidade social ao invés de um hiato equivalente a uma divisão de classes.

De fato, defensores intelectuais do capitalismo como Joseph Schumpeter, que atribuíram a origem do lucro não à propriedade dos meios de produção mas ao fato de que aqueles que se tornaram capitalistas teriam um talento especial, a que ele chamou capacidade de inovação, realmente afirmaram que qualquer pessoa com tal capacidade de inovação, nomeadamente qualquer pessoa com uma ideia que pudesse ser utilizada para criar um novo processo de produção ou um novo produto, poderia obter um empréstimo dos bancos e criar um negócio. Mas tais tentativas de apagar divisões de classe na sociedade são claramente falsas; nenhum trabalhador agrícola, por mais inovadora que seja a sua ideia, pode criar um negócio (embora, claro, a ideia possa ser roubada por um homem rico para iniciar um negócio).

Exatamente da mesma maneira, num mundo de imperialismo onde os países estão divididos em duas categorias distintas – países metropolitanos e países periféricos – os bancos metropolitanos seriam muito mais relutantes em conceder empréstimos aos países periféricos do que aos países metropolitanos. Haverá necessariamente “duplos padrões” em matéria de concessão de empréstimos. O FMI, como guardião do capital financeiro internacional que é dominado pelas instituições financeiras metropolitanas, tem de manter estes “dois pesos e duas medidas” ao sancionar empréstimos e ao impor condições para o reembolso. O criticismo do tipo Oxfam à “duplicidade de critérios” por parte do FMI baseia-se, portanto, na conceção errada de que o FMI é uma instituição bem intencionada e humana que deve zelar pelos interesses da humanidade, ao invés de uma instituição capitalista que deve zelar pelos interesses do capital financeiro internacional.

O comportamento do FMI é portanto um reflexo da própria natureza do capitalismo, da sua desumanidade essencial. Não me refiro à “desumanidade” apenas no sentido de que coloca os lucros à frente das pessoas, mas também no sentido daí decorrente, nomeadamente de que não vê toda a vida humana como sendo de igual valor, que necessariamente aplica “dois pesos e duas medidas” em todas as esferas da vida. Por exemplo, quando se levanta a exigência de que as indústrias poluentes devem ser transferidas da metrópole para a periferia, o pressuposto óbvio por detrás desta exigência é que a vida humana na periferia não é tão valiosa como a vida humana na metrópole.

A repulsa a um sistema social que está baseado nesta discriminação fundamental, ou “duplos padrões” se quiser, torna-se evidente especialmente em períodos como o atual, em meio a uma pandemia. Quando tanto a humanidade como o discernimento exigem que nos preocupemos com toda a vida humana, não importa onde esteja localizada, um sistema social que discrimina entre eles, que considera que algumas vidas têm valor, e outras não, destaca-se pela sua desumanidade e irracionalidade.

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