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quinta-feira, 28 março, 2024

A crise brasileira é uma crise catastrófica de soberania

Por Daniel Kosinski/Monitor Mercantil

“Soberania” é a qualidade própria do poder que se faz supremo, acima de todos os demais, num determinado território. Entre 1930 e 1980, salvo momentos excepcionais como os governos Dutra e Café Filho, tivemos como regra governos que, guardadas as imensas diferenças e até antagonismos entre eles, zelaram pela soberania do Estado brasileiro, construíram diversos instrumentos institucionais para ampliá-la e a exerceram tendo em vista um grande objetivo: o desenvolvimento nacional, entendido como solução para o nosso atraso e pobreza e, também, como a conquista da nossa autonomia.

Nesse sentido, tivemos os maiores expoentes dessa mentalidade e forma de governar em Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e Ernesto Geisel. Aos seus governos, principalmente aos do primeiro, o Brasil “moderno”, com todas as suas muitas imperfeições, deve a sua construção.

É verdade, porém, que tal construção foi extremamente atribulada. E entre as suas condições, uma delas, talvez inevitável dadas as nossas condições iniciais de subdesenvolvimento, mostrou-se posteriormente fatal para a continuidade daquele projeto: o pesadíssimo endividamento externo, contraído principalmente na década de 1970, e que fez do Brasil, então, o país mais endividado do mundo (e as dívidas, vale lembrarmos, são o mais antigo, eficaz e pernicioso instrumento de controle e dominação de seres humanos por outros seres humanos).

O colapso social e a fragmentação política serão mera questão de tempo

Foi a partir dessa imensa dívida contraída em dólares – não apenas uma moeda estrangeira, mas a moeda da potência mundialmente hegemônica cujo objetivo estratégico confesso, de longa data, é impedir o surgimento de uma potência rival no seu “hemisfério ocidental” – que, na década de 1980, o nosso projeto de construção nacional foi interrompido.

Não cabe nesse curto espaço discutir em detalhes como isso foi conseguido. Basta dizermos que, desde então, o Estado brasileiro foi perdendo, progressivamente, a capacidade de comandar e financiar os rumos da nossa sociedade.

Com isso, nos anos 1980, tivemos a “década perdida” (seria apenas a primeira de muitas). Com Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso e o Consenso de Washington, os comandantes políticos do dólar, o nosso instrumento de endividamento e submissão, nos impuseram reformas neoliberais profundas que transferiram ao “mercado” – entenda-se, o financeiro – o controle dos principais parâmetros de administração fazendária de um país: o preço da sua moeda (a sua taxa de juros) e a sua relação com as demais moedas (a sua taxa de câmbio).

Daí seguiu-se um endividamento interno explosivo e novas restrições à soberania como a Lei de Responsabilidade Fiscal, a partir da qual o Estado brasileiro se atribuiu a obrigação – ainda que poucas vezes rigorosamente cumprida – de gastar menos do que arrecada como se um assalariado comum fosse.

Falsa ou verdadeira, atribui-se a Mayer Amschel Rothschild, o banqueiro alemão dos séculos XVIII e XIX precursor da “dinastia” financeira homônima e certa vez considerado pela revista Forbes o “pai fundador das finanças internacionais”, a sentença de que “me permita controlar o dinheiro de um país e não me importa quem faça as suas leis”.

Tampouco nos importa aqui a autoria da frase, mas sim a realidade que ela afirma. Pois com a “abertura” financeira ao mundo promovida nos anos 1990, o Estado brasileiro, fundamentalmente, renunciou à sua soberania em favor das finanças internacionais, cada vez mais desreguladas.

Haja vista a presença em seus governos de figuras como Henrique Meirelles, Antônio Palocci e Joaquim Levy, Lula e Dilma – a despeito de toda a retórica de um país em franco progresso e de uma melhora relativa, exógena e conjuntural nas condições financeiras do país e das suas parcelas mais pobres – nada fizeram (ou conseguiram, ou tentaram fazer) de estrutural para transformar essa situação de submissão.

O breve e terrível segundo mandato de Dilma, com a sua capitulação constrangedora aos ditames do “mercado”, o atesta. A devastação que tal fato provocou no emprego, nas finanças e na moral de muitos milhões de brasileiros foi uma peça chave na posterior legitimação da sua deposição e haverá de cobrar das “esquerdas”, ainda por muitos anos, a sua conta.

Chegamos, afinal, a Temer e Bolsonaro, dois governos cujo sentido político não parece ser outro que não o de sacramentar, de forma irreversível e sem deixar margem a tentativas futuras de correção, a transferência da tal soberania do Estado brasileiro para os “mercados”.

Afinal, o que se pode depreender com razoabilidade de afirmações como as feitas por Paulo Guedes de que pretende acabar com a “social-democracia” (isto é, os resquícios de estado de bem-estar social que ainda temos) no Brasil? Ou de que abrirá irrestritamente o comércio e as finanças brasileiras ao exterior, incluindo até mesmo o que há de mais volumoso e garantido em termos de demanda efetiva para as empresas nacionais, que são as compras governamentais? Ou ainda a sua proposta, por ora esquecida, de permitir aos correntistas brasileiros a abertura de contas-correntes denominadas em dólares?

Paulo Guedes não quer deixar margem a dúvidas. Seu objetivo é um só: dissolver o Brasil como Estado soberano, eliminar toda e qualquer capacidade (e vontade) do Estado brasileiro para interferir (que dirá comandar) no que acontece em termos de produção, comércio, finanças e emprego – ou seja, em desenvolvimento – no nosso território. Afinal, na sua visão utópica e extremista do mundo, os estados nacionais e a política são inconvenientes que impedem a realização do bem supremo: o “livre mercado” irrestrito e de abrangência mundial.

Se Paulo Guedes conseguir tudo o que pretende e propõe, esse país que entendemos pelo nome de “Brasil” perderá suas bases mais básicas – com o perdão da redundância – de existência material. Daí para o colapso social e a fragmentação política (já em flagrante curso, conforme observado diariamente aqui mesmo, na cidade do Rio de Janeiro) será mera questão de tempo. Talvez, de pouco tempo.

Em suma, pelas falas e propostas de Paulo Guedes, o nosso país está sendo oferecido, sem restrições ou maiores constrangimentos, aos “mercados” internacionais para que venham aqui tomar o que lhes interesse. Aos brasileiros, sobrarão as sobras; a quem, por sorte (ou “mérito”, conforme insistem alguns), conseguir alguma posição associada a esses estrangeiros.

Alguns ganharão muito; muitos ganharão pouco; outros muitos não ganharão nada. Portanto, que não tenhamos dúvidas: o que está em curso não é uma “abertura”, mas uma anexação. É a nossa transformação, talvez definitiva, num entreposto do capitalismo (acima de tudo, financeiro) internacional.

O “mercado” financeiro “brasileiro” – como se isso existisse – eufórico, já comemora esse fato e as imensas possibilidades de lucro privado que ele permitirá aos seus associados. Afinal, em meio a um país em frangalhos e diante de um povo radicalmente empobrecido, massacrado e subjugado por aplicativos modernos, o Ibovespa vem batendo sucessivos recordes, demonstrando a total desconexão – ou mais apropriado seria dizer, a indiferença ou mesmo desprezo – desses agentes com os destinos do país.

Para concluirmos, nosso país está sendo oferecido em sacrifício em prol de uma grande e irrealizável utopia. Mas bastarão alguns avanços nesse plano para que não restem à sociedade brasileira instrumentos para reverter esse estado de coisas que há 40 anos, quase sem interrupções, a assola. Somos hoje cidadãos de um país cujo Estado comanda e organiza cada vez menos o que acontece aqui dentro. Todavia, o “superministro” da Economia ainda acha que é pouco, pois em troca de dólares, sempre se mostra disposto a oferecer mais.

Estão se encerrando as nossas possibilidades de recuperar a legitimidade, a vontade e a capacidade do Estado brasileiro de voltar a agir, soberanamente, em favor da nossa construção nacional. Quem (sobre)viver, verá os resultados dessa louca empreitada.

*Daniel Kosinski

Cientista político, é membro do Instituto da Brasilidade.

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