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quinta-feira, 26 dezembro, 2024

A volta dos passaportes abandonados

por Jean-Claude Paye [*]

É de rir ou de chorar:   desde o 11 de Setembro de 2001 não há atentado terrorista em que os supostos culpados não se deixem identificar deixando no seu rastro os respectivos documentos de identidade.
Para o autor, esta aparente estupidez repetitiva dos terroristas deve ser interpretada como um artifício retórico utilizado pelo poder a fim de paralisar os cidadãos.   Como a narrativa oficial é a mais absurda possível, não é possivel contestá-la.

No quadro do inquérito sobre os massacres de Paris, um passaporte sírio foi encontrado perto de um dos kamikazes do Stade de France. Depois de o presidente ter designado “o Estado islâmico” (EI) como responsável dos atentados, este reconheceu estar na base destas acções. Para o executivo francês que havia declarado pretender intervir na Síria contra o EI, na realidade contra a República Árabe Síria e seu presidente constitucional Bachar el-Assad que “deve partir”, trata-se de um indício importante que deve justificar uma acção militar. O discurso duplo – apoiar uma organização designada como inimiga e chamar de terroristas aqueles que anteriormente eram chamados de “combatentes da liberdade” – não é característico apenas do governo francês. Produzir seu inimigo tornou-se um eixo da estratégia ocidental, confirmando-nos que na estrutura imperial não há separação entre interior e exterior, entre o direito e a violência pura, entre o cidadão e o inimigo.

Na Bélgica, o pregador muçulmano Jean-Louis Denis é perseguido “por ter incitado jovens a partirem para fazer a jihad armada na Síria”, pois ele é suspeito de ter tido contactos com Sharia4Belgiu, um agrupamento qualificado de “terrorista”, o que é negado pelo acusado. O seu advogado destacou a ideia dúplice da acusação neste caso, alegando perante o tribunal correccional de Bruxelas: “Enviaram-se garotos para os braços do Estado islâmico na Síria e foram os vossos serviços que o fizeram” [1] . O advogado apoiou as suas acusações destacando o papel neste caso de um agente infiltrado da polícia federal.

O retorno do significante 

Quanto aos massacres de Paris, aparentemente uma das primeiras preocupações dos terroristas foi serem identificados o mais rapidamente possível. Contudo, este paradoxo apenas nos surpreende. Um documento de identidade, encontrado miraculosamente e designando o autor dos atentados que acabavam de ser cometidos, tornou-se um clássico. Trata-se de um acontecimento repetitivo, uma obrigação de repetição que designa sempre um culpável pertencente a um “movimento jihadista”.

Na versão oficial do 11 de Setembro, o FBI afirmou ter encontrado o passaporte intacto de um dos kamizazes na proximidade de uma das duas torres completamente pulverizadas por explosões, provocando uma temperatura capaz de fundir o aço das estruturas metálicas de um edifício – mas preservando intacto um documento de papel. A queda do quarto avião, que se espatifou em campo aberto em Shanksville, permitiu igualmente à polícia federal encontrar o passaporte de um dos presumidos terroristas. Este documento parcialmente queimado permitiu ainda assim identificar a pessoa, graças à presença do seu nome, do seu prenome e da sua foto. Esta possibilidade é tanto mais perturbadora porque da queda do avião não restava senão uma cratera devida ao impacto, nem sequer um fragmento da fuselagem ou do motor, restava apenas este passaporte parcialmente queimado.

O inverosímil como medida do verdadeiro 

No caso Charlie Hebdo, os investigadores encontraram o bilhete de identidade do mais velho dos irmãos Kouachi no veículo abandonado no nordeste de Paris. A partir deste documento, a polícia percebeu que se tratava de indivíduos conhecidos dos serviços anti-terroristas, “pioneiros do jihadismo francês”. A “perseguição” pôde então começar. Como é que assassinos, cometendo um atentado com sangue frio e um auto-controle de profissionais qualificados, podem cometer tal erro? Não andar com os documentos faz parte do ABC de qualquer ladrãozeco.

Desde o 11 de Setembro, o inverosímil faz parte do nosso quotidiano. Ele tornou-se o fundamento da verdade. A Razão é banida. Não se trata de acreditar no que é dito, mas sim de aderir àquilo que diz a voz que fala, seja qual for o contra-senso do enunciado. Quanto mais isto for evidente, mais cega deve ser a crença no que é afirmado. O inverosímil torna-se assim a medida e a garantia do verdadeiro.

O discurso quanto aos casos Merah ou Nemouche o confirma. Merah, cercado por dezenas de polícias, teria conseguido, enganando a vigilância das forças especiais, sair da sua residência e a seguir retornar a ela a fim de se fazer matar por um atirador de elite (“sniper”) que teria alvejado em “legítima defesa” com “armas não letais”. Ele teria saído da sua casa para telefonar de uma cabine pública, a fim de “dissimular sua identidade”, aquando do reconhecimento da sua culpabilidade junto a uma jornalista da France 24 [2] .

Quanto a Nemmouche, o autor da matança no Museu judeu de Bruxelas, ele não teria se desembaraçado das suas armas pois o que importava para ele era a sua revenda. Para isso, ele teria escolhido o modo de transporte internacional mais vigiado, transportando-as num autocarro que fazia a ligação Amsterdam, Bruxelas, Marselho. Um “controle alfandegário inesperado” teria permitido confundi-lo e prendê-lo.

A liquidação da “unidade nacional” 

Em todos os casos, o carácter incrível do que é apresentado nos torna incapazes de reagir. Tal como o olhar de Gorgona, ele nos petrifica. Mostra-nos que alguma coisa não funciona no discurso. Exibe-nos uma falha que não tem como efeito nos enganar, mas sim fragmentar-nos. O relatório do desenrolar dos atentados é uma exibição que se impõe ao espectador. Ele foge a qualquer representação e tem um efeito paralisador. Este não resulta tanto do carácter dramático dos factos e sim da impossibilidade de decifrar o real. O espectador não pode assim encontrar uma aparência de unidade senão por um acréscimo de credulidade ao que é enunciado. Opera-se então uma fusão com quem o diz. Convém portanto não se distanciar do que é dito e mostrado, renunciar a fazer perguntas ou a recuperar a palavra. A unidade nacional, a fusão entre os vigilantes e os vigiados, pode então ser instalada.

A exibição das falhas no discurso do poder acerca de todos estes atentados tem como efeito a instalação de uma psicose e a supressão de todo mecanismo de defesa, não só em relação a propostas ou actos determinados como também relação a não importa que acção ou declaração do poder. Exemplo: em relação a leis como aquela sobre a informação que retira a vida privada das liberdades fundamentais.

Um ato de guerra contra as populações 

Votada em Junho de 2015, a lei sobre a informação, projecto com mais de um ano, foi-nos apresentada como uma resposta aos atentados do Charlie Hebdo. A lei autoriza nomeadamente a instalação de “caixas negras” junto aos fornecedores de acesso à Internet, que permitem capturar em tempo real os metadados dos utilizadores. Ela permite igualmente a colocação de microfones, de dispositivos de localização, de instalação de câmaras e de softwares espiões. São submetidos a estas técnicas especiais de investigação não os agentes de uma potência estrangeira mas sim a população francesa. Esta última é assim tratada como inimiga de um Poder executivo, que tem o poder de decisão e o “controle” destes dispositivos secretos. Sob a cobertura da luta contra o terrorismo, esta lei legaliza medidas já em vigor, pondo à disposição do executivo um dispositivo permanente, clandestino e quase ilimitado de vigilância dos cidadãos. A ausência de qualquer eficácia na prevenção de atentados mostra-nos que não eram os terroristas e sim os habitantes da França o alvo desta lei. Ao mudar a natureza dos serviços de informação, da contra-espionagem para a vigilância dos cidadãos, esta lei é um acto de guerra contra a população francesa. Os massacres que acabam de acontecer em Paris são parte real dessa guerra.

15/Novembro/2015

[1] Julien Balboni, « Procès de Jean-Louis Denis: ”Le parquet fédéral a envoyé des jeunes en Syrie” » , DH.be, le 12 novembre 2015.
[2] Ler: Jean-claude Paye et Tülay Umay, « L’affaire Merah (4/4): Le changement en se taisant : la parole confisquée », Réseau Voltaire , le 30 octobre 2012,

Ver também: 

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