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terça-feira, 3 dezembro, 2024

Argentina sob Milei e a reorganização da oposição peronista

Foto: Adrián Pérez

Alba Gonzáles – Direto de Buenos Aires

Milei, presidente da república, disse abertamente algo gravíssimo: “gostaria de colocar o último prego no caixão do kirchnerismo com a Cristina dentro”. 

Cristina lhe respondeu por rede X: “então, agora você quer também me matar? Mesmo que me matem e de mim não sobrem cinzas, o teu governo é um fracasso e você, como presidente, é uma vergonha”.  

O pronunciamento de Milei gerou um repúdio generalizado da oposição no Legislativo, de vários dirigentes políticos, sindicais do peronismo e fora dele em solidariedade a Cristina Kirchner; alguns, como o senador Carlos Linares (UP), chamam o Congresso a acionar um julgamento político ao presidente. Falas presidenciais como essa, atuam como instigação à violência social. Há denúncias de antecedentes como o clima midiático gerado por redes libertárias ou manifestações de jovens da LLA (Liberdade Avança) induziu ao atentado à ex-vice-presidenta Cristina em 2023. Isso, considerando que a “Justiça” pouco tem feito para ir às raízes e condenar os responsáveis do crime, num país onde o poder Judiciário tem dado respaldo ao Executivo sem atuar com independência e cumprir normas constitucionais. Muito diferente do Brasil onde o STF anula as condenações da Lava Jato.

As mobilizações estudantis têm sido exemplar. Por todo o país, centenas de ocupações de Faculdades públicas por estudantes e professores exercendo aulas e assembleias ao ar livre. Um elemento de resistência pacífica e esperança para falar com a sociedade e impedir retrocessos fatais. Apesar, das tentativas de provocação e infiltração de militantes de direita do LLA em assembleias estudantis em Quilmes, possuídos de gás lacrimogênio, justificados pelos discursos da ministra de segurança Patricia Bullrich; mesmo assim, os jovens das universidades públicas não se intimidaram e realizaram cerca de 100 aulas na terça-feira, 22 de outubro, ao ar livre na Praça de Maio, contra o veto presidencial que cortou o financiamento estatal. Nesse dia, Milei (ignorando-os, ou provocando) saiu ao balcão da Casa Rosada com alguns membros do governo para comemorar seu aniversário, dirigindo o seu olhar perdido rumo ao céu. Os estudantes interromperam a paz das aulas abertas e passaram a protestar-lhe aos gritos: “Universidade é dos trabalhadores! E quem não gosta, se fode, se fode!

Atitudes presidenciais como essa, foram alvo do pronunciamento do ator, diretor e produtor, Norman Briski, durante a entrega do prêmio “Martin Fierro de cinemas e artes” (que repercutiu por suas críticas, entre outras, ao massacre em Gaza) que falou sobre a ficção: “a ficção é uma fotografia da realidade. Nos estão afanando a ficção. A ficção está na Rosada!”. Por suas palavras, o ator recebeu denuncia judicial, repudiada por várias forças democráticas.

Além do recente veto do Milei à lei de financiamento das Universidades Públicas, continuam medidas para deter o protesto de reitores e professores (estes, com salários já rebaixados de 45%). O governo, persegue e ordena uma auditoria sobre as Universidades através de um organismo legalmente não adapto (SIGEN). Os reitores denunciam judicialmente tal medida. Enquanto isso, os sindicatos dos trabalhadores estatais entram em greve, e se somam à greve geral nacional da 4ª. Feira, dos trabalhadores dos trens, metrô, taxis, aviões e alfândega. Haverá, simultaneamente, greve dos professores e funcionários das universidades apoiados pelas duas CTAs da área educativa. Na 5ª. Feira será o dia da paralisação dos ônibus contra cortes de subsídios e aumento de bilhetes impagáveis para a população. Soma-se na 6ª feira o apagão sincronizado de moradores contra o aumento das tarifas de luz.

Foto:  site da ambito.com

Foto:Valeria Cotaimich

Outro fato relevante foi uma massiva manifestação de 50 mil pessoas, gente humilde, organizada pelo governador Axel Kicillof (UP) da província de Buenos Aires em comemoração ao 17 de outubro de 1945, quando o povo ocupou as ruas para trazer Peron de volta da prisão. Com a participação de vários prefeitos, dirigentes políticos peronistas e centrais sindicais (CGT/CTA), em seu discurso centrou no ataque às políticas de Milei, de retrocesso econômico e dos direitos sociais; expôs os esforços e metas da sua gestão em todas as áreas da província mais populosa da Argentina; calou no sentimento popular, ao recordar que no governo de Cristina, que continuou o de Néstor, o povo argentino foi mais feliz. Defendeu-a contra todos os ataques judiciais, incluindo o atentado sofrido em 2023. Portanto, reconheceu frente ao povo, a função de liderança de Cristina, sem comprometer-se com candidaturas internas frente às próximas eleições do PJ (Partido Justicialista), pregando pela unidade do peronismo. Encerrou com todo apoio à luta dos estudantes na defesa da Universidade Pública.

Cristina Kirchner, com uma trajetória executiva presidencial e reconhecida líder de massas, é a principal e competente candidata à presidência do Partido Justicialista (PJ), numa eleição interna em princípio programada para 17 de novembro. Há uma controvérsia interna sobre candidaturas que não aclara as diferenças programáticas e tem dado campo a que setores conservadores ou de centro direita interfiram em romper a unidade do maior partido peronista histórico de massas. 

As razões do debate interno exposto pelos que rodeiam a direção, não são evidenciadas pelos dois quadros centrais (unidos durante todas as presidências kirchneristas) Cristina e Axel Kicillof.  Provavelmente, a demora numa avaliação coletiva, a falta de um balanço estratégico-programático profundo sobre a derrota da UP e do peronismo frente à vitória eleitoral de Milei incide na dimensão que toma dita eleição interna pela presidência do PJ. O embate termina em personificações e rupturas entre dirigentes ideologicamente compatíveis, redundando em desunião do PJ, daninha frente a um Milei que avança a 100k/h. Alguns apoiadores da centralidade de Cristina veem como válida a insistência de Axel Kicillof, que não é candidato, e se concentra na governação de Buenos Aires, insistindo na unidade do PJ. O momento requer uma oposição política unida e combativa, em sintonia com o novo movimento estudantil, dos professores, médicos e aposentados que estão nas ruas.

Estela de Carlotto, a dirigente da “Avós da Praça de Maio”, no ato de comemoração dos 47 anos da organização, acompanhada de Tati Almeida, mãe lutadora dos “lenços brancos”, estimulou o encontro entre Cristina Kirchner e Axel Kicillof. O analista político Luis Bruchtein, escreveu no seu artigo sobre o significado e efeitos de tal ato, ao que denominou “ponte”, no debate interno do PJ. 

Há que dar destaque às idas de Cristina aos bairros, às universidades como na Nacional de Artes e de Kicillof ao Congresso Provincial da Educação Sexual Integral (ESI) rechaçada por Milei na sua campanha eleitoral como uma “agenda pos-marxista”.  Exemplo de diálogo com as massas nos bairros tem dado também o deputado da UP, Leandro Santoro, do Movimento Nacional Alfonsinista. A atual ruptura da UCR (União Cívica Radical) onde 12 deputados rompem com o seu bloco parlamentar por traição e adesão a Milei, reforçam posições centristas que podem reforçar a oposição parlamentar peronista-alfonsinista. Mas, nenhuma oposição legislativa sem diálogo e organização com as bases, ou centros de trabalho ou estudo, tem chance de enfrentar o poder hegemônico midiático e político vigente, sobretudo na era das redes sociais de Elon Muski, fakenews, X e twitters presidenciais.

Essas são algumas das complicações do processo na Argentina, onde após 10 meses de governo, o consumo de alimentos diminuiu em 22% e o “industricídio” atingiu 13%, enquanto o projeto neoliberal libertário arrasa com privatizações de estatais, suspensão de obras públicas, fechamento de estações de trem, de entes estatais como AFIP (Receita Federal) com mudança de nome, tudo com e demissão de pessoal, crise em pequenas e médias empresas, cortes de verbas na educação, cultura, saúde, transportes; salários e aposentadorias de fome; instigação ao ódio e à violência. Com um governo apoiador do genocídio em Gaza e alheio à formação histórica do BRICS, há elementos de sobra para pessimismo e depressão política da qual tem que sair, rapidamente, unido o peronismo-kirchnerismo.

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