José Bessa Freire
Quero sua risada mais gostosa / Esse seu jeito de achar /
Que a vida pode ser maravilhosa (Ivan Lins. Vitoriosa. 1986).
Onde está o indigenista Bruno Araújo Pereira, 41 anos, paraibano de nascimento, amazônida por adoção? A cena é paradisíaca. Cercado por árvores no meio da floresta, ele está entoando um canto em katukina, língua dos Kanamari:
– Wahanararai wahanararai, marinawah kinadik marinawah kinadik; tabarinih hidya hidyanih, hidja hidjanih
A câmera capta sua imagem de perfil, sentado no chão sobre um tapete de folhas, cadenciando a música com o pé esquerdo. Parece estar só. Não está. Gira seu rosto à direita e, agora de frente, abre um sorriso alegre interagindo com os índios com quem ele canta e que, fora do enquadramento, não aparecem no vídeo. Escutamos suas vozes acompanhando o contracanto coletivo, afinado pela cumplicidade construída na partilha das experiências de luta.
O que cantam eles no vídeo exibido por André Trigueiro num canal de TV, que viralizou e foi cantado por rabinos na sinagoga de São Paulo e vai se espalhar por templos e igrejas de outras comunidades Brasil afora? É que o sagrado atravessa todas as religiões. As palavras falam literalmente sobre o modo como a arara alimenta seus filhotes, um hino em defesa da floresta e dos povos originários. A risada gostosa de Bruno exibe seu jeito de mostrar que a vida pode ser maravilhosa, mas foi interrompida tão cedo, o que torna a cena desgarradora, provocando sentimento ambíguo de luzes e sombras, esperança e desespero. O outro lado, aquele que mata e não canta, não é digno de ver e entender.
– Quando vi o vídeo do Bruno chorei muito – escreveu o cantor e compositor André Abujamra, autor de um remix do canto, que expressou assim o sentimento de todos nós: chorar e orar. Já vi trocentas vezes as imagens, hipnotizado pela alegria de menino brincalhão, que deve ter encantado a sua Beatriz e os dois filhos de 2 e 3 anos, um deles herdeiro do riso do pai, ambos fotografados em um barco no rio de água barrenta, em cujo toldo está escrito: “Este rio é minha rua”.
A mata sagrada
Onde está o jornalista britânico Dominic Mark Phillips, 57 anos, nascido no condado de Merseyside, mas baiano como sua Alessandra e amazônida como o amigo Bruno? Apaixonados pela sacralidade da mata exuberante, os dois vêm navegando juntos desde 2018 pelos rios da Amazônia, especialmente o Javari, a última morada de ambos. Agora, uma semana antes do adeus, Dom acaba de postar no Instagram um vídeo dentro de um barco, com uma: uma singela declaração de amor bem abrasileirada, que diz tudo sobre ele e seu parceiro de vida e de morte.
– Amazônia, sua linda!
O amor pela região unia os dois e os vinculava aos povos originários, que lá vivem há milênios e ensinaram a eles “Como Salvar a Amazônia”, título do livro que Dom estava escrevendo, com a experiência adquirida em viagens pelo Brasil durante 15 anos, os últimos cinco pela região amazônica, em companhia de Bruno. Suas reportagens em jornais europeus e dos Estados Unidos documentaram o avanço do desmatamento, a predação do garimpo, a invasão dos territórios indígenas durante o governo do Coiso.
O jornalista era amado pelos povos indígenas, assim como Bruno, conforme declarações de líderes da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (UNIVAJA). O Coiso, porém, avocou como seu o sentimento dos que destroem a floresta e poluem os rios, ao dizer que Dom era “malvisto” pela população local. Enquanto ainda se desconhecia o paradeiros dos dois, em entrevista à coisificada jornalista Leda Nagle, ele tripudiou sobre os cadáveres:
– “Se estiverem mortos, os corpos podem estar dentro da água e pouca coisa para sobrar. Tem piranha lá no rio Javari”.
Lei da selva
O Coiso culpou-os por embarcarem “em uma aventura não recomendável, onde tudo pode acontecer. É muito temerário andar naquela região sem estar […] com armamento. Pelo que parece eles não estavam”, assim como Jesus, mas Jesus só “não comprou pistola porque não tinha” naquela época – disse ele em conversa com gente de sua laia. Um sacrilégio achar que um pacifista repleto de amor dispararia sobre os seus algozes para evitar ser crucificado.
Essa – dizem – é a lei da selva, anterior à lei dos homens e que predominou no período histórico antes de surgirem religião, escrita, constituições, tribunais, quando os crimes ficavam impunes. Mas talvez o termo mais apropriado seja denominá-la de “lei da bandidagem”, porque na selva as araras alimentam seus filhotes, nenhuma animal tortura outro animal ou promove guerras, nem envenena os rios e muito menos destrói a floresta, que é seu habitat. Mata-se para comer, não para se divertir.
Diante da ausência dos poderes públicos na Amazônia, impera não a “selvageria”, mas o aval dado por discursos de barbárie, que dão aval a garimpeiros ilegais, envenenadores de rios, narcotraficantes, milicianos, contrabandistas, evidenciando que o Estado, neste atual desgoverno, não se interessa em controlar a região.
As calúnias contra Dom e Bruno já começam a circular, da mesma forma que a difamação de Chico Mendes feita pelo ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, responsável pela “boiada” contra a floresta. Em entrevista a Bernardo Mello Franco, Salles afirmou que “o pessoal do agro, que conhece a região, diz que ele (Chico Mendes) era grileiro”.
O Coiso “tem sangue nas mãos e não tem coragem de dizer que está muito satisfeito com o que aconteceu” – declarou o avô dos filhos de Bruno, Kleber Gesteira Matos, ex-coordenador da Educação Escolar Indígena no MEC e um dos maiores especialistas na área.
Despedida amorosa
Não houve mandante do crime – assegura a Polícia Federal, o que é contestado em nota pela UNIVAJ, que entregou seis ofícios entre fevereiro e maio deste ano a vários órgãos: Ministério Público Federal, Polícia Federal Força Nacional de Segurança Pública e Funai. Os documentos relatam o crescente clima de tensão no vale do Javari. Nenhuma providência foi tomada, diante do aval do promotor e incentivador dos assassinatos, que todos sabem quem é.
Na quarta-feira (15), véspera de Corpus Christi, Kleber participou de um ato organizado nos jardins do campus pelos professores da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pioneira na implantação da pedagogia indígena no cenário nacional. Falou sobre o seu genro, sua simpatia e generosidade e destacou o carinho e o cuidado que tinha com os dois filhos pequenos, batizados com nome indígenas herdados de dois amigos Kanamari.
As esposas de Dom e Bruno reagiram de forma digna e altiva, evidenciando o papel central que tiveram nessa história. A baiana Alessandra Sampaio, embora aguardando as confirmações definitivas da tragédia, agradeceu os indígenas que se envolveram na busca e declarou:
– Agora podemos levá-los para casa e nos despedir com amor. Hoje se inicia nossa jornada em busca de justiça. Só teremos paz quando as medidas necessárias forem tomadas para que tragédias como esta não se repitam jamais. Presto minha absoluta solidariedade com a Beatriz e toda a família do Bruno.”
A antropóloga Beatriz de Almeida Matos, professora da Universidade do Pará, compartilhava com Bruno a paixão pelos povos do vale do Javari, cujos rituais foram tema de sua tese de doutorado no Museu Nacional da UFRJ. “Agora, que os espíritos do Bruno e do Dom estão passeando na floresta e espalhados na gente, nossa força é muito maior” – ela declarou.
– Onde estão Dom e Bruno? A pergunta feita no mundo inteiro agora tem resposta: eles estão no coração da floresta e do rio, no coração dos povos indígenas, no coração de todos nós. Amazônia, sua linda, as araras continuam alimentando seus filhotes. Wahanararai wahanararai.
P.S. – Que o meu querido amigo Kleber Matos, a Maria Ines, a filha Beatriz e os dois kanamarizinhos, seus netos, que levarão pela vida afora os valores cultivados pelo pai, fiquem com a gargalhada mais gostosa e vitoriosa: sim, apesar de tudo, a vida pode ser maravilhosa. As vidas de Dom e Bruno são uma prova disso. A luta continua.
Obs. – Agradecemos aos autores das fotos pescadas nas redes sociais.