Os principais jornais da Argentina foram cúmplices das barbáries cometidas pela ditadura e construíram seus impérios graças às benesses dos generais.
Altamiro Borges, em seu blog
Um dia após a vitória do direitista Mauricio Macri nas eleições da Argentina, em 23 de outubro, o jornal “La Nación” publicou um editorial asqueroso pedindo perdão para os carrascos da sangrenta ditadura militar (1976-1983). Intitulado “Chega de vingança”, ele celebrou “o fim do kirchnerismo” e criticou a política de direitos humanos que levou à cadeia mais de 600 militares responsáveis pelas torturas e mortes de 30 mil argentinos. De imediato, os jornalistas fizeram um protesto na redação do diário, empunhando cartazes com os dizeres “eu repudio o editorial”. Um gesto combativo, mas que sinaliza as enormes dificuldades que o jornalismo argentino deverá viver no próximo período.
Os principais jornais do país, em especial o Clarín e o La Nación, apoiaram o golpe militar e foram cúmplices das barbáries cometidas pela ditadura. Eles inclusive construíram seus impérios midiáticos graças às benesses dos generais corruptos no poder. Durante o governo neoliberal de Carlos Menem, que se jactava de manter “relações carnais” com os EUA – os argentinos sentiram as dores deste servilismo –, a imprensa argentina deu todo apoio às políticas neoliberais de desmonte do Estado, da nação e do trabalho. A partir das vitórias de Néstor e Cristina Kirchner, com programas mais progressistas, a mídia passou a desempenhar o papel do principal partido da direita na Argentina, apostando na desestabilização política e no caos econômico.
Na campanha eleitoral deste ano, ela tirou totalmente a maquiagem que ainda restava de imparcialidade e neutralidade. Ela se tornou o principal palanque do direitista Mauricio Macri, que prometeu rever a política de direitos humanos da gestão anterior, intensificar as privatizações e adotar um rigoroso plano de austeridade econômica, entre outras graves regressões. Ao mesmo tempo em que só apontava defeitos na gestão da presidenta Cristina Kirchner, ela não escondia seu otimismo com a possibilidade do retorno das elites ao governo central. O Grupo Clarín, que controla jornais e emissoras de rádio e TV, não vacilou em entrevistar apenas os partidários do “mafioso” – inclusive artistas “globais” a soldo da direita argentina.
A postura partidarizada surpreendeu até a jornalista Sylvia Colombo, da insuspeita Folha de S.Paulo. Em artigo publicado neste domingo (29), ela questionou a linha editorial da chamada “imprensa independente” – santa inocência ou triste subserviência? “É compreensível que empresas como o Grupo Clarín, o ‘La Nación’ e o Grupo Perfil celebrem o fim de um ciclo que de fato foi muito difícil para a imprensa livre. O governo de Cristina Kirchner criou legislações para debilitar as empresas, apertou anunciantes para que não publicassem anúncios em suas páginas e combateu por meio de discursos em cadeia nacional suas versões. Um modelo de relação com a imprensa que realmente deve ser descartado para sempre. Mas nada disso é desculpa para abrir mão do jornalismo”.
A colunista da Folha até parece acreditar – ou finge acreditar – no jornalismo “independente e livre”. Mas como já ensinou Cláudio Abramo, que trabalhou neste mesmo veículo, a única liberdade de imprensa nas redações da mídia privada é a dos donos dos veículos. A tendência do jornalismo na Argentina é das mais sombrias. Os barões da mídia, que apoiaram a ditadura militar no passado e que fizeram campanha para o “mafioso” Mauricio Macri no presente, farão de tudo para pavimentar o retorno do neoliberalismo ao país vizinho. Os jornalistas que ergueram os cartazes “eu repúdio o editorial” precisarão de muita unidade e coragem para enfrentar a ditadura do pensamento único nas redações.
Em tempo: Entre os gestos de partidarismo e seletividade da mídia argentina nas vésperas do segundo turno das eleições presidenciais, a jornalista Sylvia Colombo lembra a postura diante do “mafioso” da direita. Vale reproduzir alguns trechos do seu comentário crítico, que serviriam também para analisar o falso moralismo udenista da imprensa brasileira:
“Nenhum dos veículos independentes argentinos [sic] se animou a expor ou detalhar as denúncias de corrupção na cidade de Buenos Aires, da qual Macri é prefeito. Nem mesmo de mostrar em que pé estão acusações e investigações que o envolvem. E a lista tampouco é pequena. Estão aí as escutas ilegais que Macri é acusado de ter armado contra a irmã e o cunhado, causa pela qual teve uma primeira absolvição negada e ainda responde a processo… Também quase não se falou nas denúncias de que seu amigo e assessor Nicolás Caputo seria beneficiado por contratos de obras para a capital argentina. Ou do fato de ter permitido a derrubada de casas e prédios históricos para a construção de torres e edifícios em locais que o zoneamento não permite… Ou, ainda, sobre o possível vínculo de sua mulher com oficinas têxteis clandestinas… Enfim, a ninguém pareceu pertinente sequer lembrar que o presidente eleito, apesar de significar uma virada de página histórica na Argentina, também tem seus esqueletos no armário”.