Ricardo Mezavila,*
E lá se foram mil dias, desde que a vereadora Marielle Franco fez sua última participação como militante, ativista das causas populares, raciais, de gênero, no evento Jovens Negras Movendo Estruturas, na Casa das Pretas, espaço coletivo de mulheres negras na Lapa, no centro do Rio.
“Ela havia tido um dia complicado na Câmara, comentou sobre algum veto do prefeito. Chegou mais de uma hora atrasada ao debate por causa disso e pediu desculpas”, lembra a escritora Ana Paula Lisboa, presente na reunião. Marcello Crivella havia vetado um projeto que obrigaria a Prefeitura do Rio de Janeiro a divulgar o fluxo de caixa da cidade.
O evento fazia parte de uma ação chamada 21 dias de Ativismo Contra o Racismo, em curso no Rio. Ao iniciar o debate Marielle disse: “O mandato de uma mulher negra, favelada, periférica, precisa estar pautado junto aos movimentos sociais, junto à sociedade civil organizada, junto a quem está fazendo para nos fortalecer naquele lugar onde a gente objetivamente não se reconhece, não se encontra, não se vê. A negação é o que eles apresentam como nosso perfil”
Continuou: “Ter a nossa casa (a Casa das Pretas), ter o nosso lugar, ter o nosso período, ter o nosso lugar de resistência, daí fazer esse evento no bojo das atividades do 21 dias de Ativismo. A gente sabe que a gente tá ativa, tá militando, tá resistindo o tempo todo. Mas com alguns períodos onde a gente se fortalece na luta.”
Marielle sempre citava a escritora ativista dos direitos civis, a caribenha-americana Audre Lorde: “Não sou livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas.” Em um dos seus discursos, ao receber uma flor, ela disse: “É sempre bom lembrar que as rosas da resistência nascem no asfalto”.
A mãe de Marielle, Marinete da Silva, havia confidenciado às pessoas próximas, que temia pelo o que podia acontecer com sua filha, porque era muito combatente e ‘briguenta’. O deputado do PSOL, mesmo partido de Marielle, Chico Alencar, admitia que a colega incomodava pequenas e grandes máfias.
Andando mil dias para trás, encontraremos no G1, site de notícias do Globo, a informação sobre o ‘crescimento das milícias na região metropolitana do Rio’. Segundo o site, 2 milhões de pessoas são coagidas a usar o transporte, botijão de gás, segurança, entre outros itens oferecidos por essas quadrilhas que foram formada inicialmente por policiais, bombeiros, agentes penitenciários, mas que hoje se aliam até aos traficantes.
O G1 não informou que as milícias tinham braço na ALERJ e que o miliciano e ex-PM Adriano da Nóbrega, foi condecorado, em 2005, com a Medalha Tiradentes por Flávio Bolsonaro, que na época era deputado estadual.
Adriano da Nóbrega era chefe da milícia de Porto das Pedras e integrante do grupo de extermínio Escritório do Crime. Suspeito de envolvimento na morte de Marielle e do motorista Anderson Gomes, parceiro de Fabrício Queiroz no esquema de desvio de dinheiro de servidores do gabinete de Flávio Bolsonaro, foi morto como ‘queima de arquivo’ em fevereiro, no interior da Bahia.
A Medalha Tiradentes, é a maior condecoração concedida pela ALERJ para pessoas que prestaram relevantes serviços à causa pública no Estado do Rio de Janeiro. Sobre a condecoração disse o Presidente Bolsonaro logo após a execução de Adriano: “Eu é quem pedi para meu filho condecorar. Para que não haja dúvida. Ele era um herói. Eu determinei. Pode trazer para cima de mim essa aí!
De volta ao 14 de março de 2018, Marielle falava sobre como construiu sua identidade na Universidade: “Quando eu chego na PUC em 2002, a minha perspectiva era a da mulher favelada, do pertencimento de quem passou pela Maré, desse lugar do ‘mareense’, do favelado, de uma potência, de uma disputa daquele corpo que vou ocupar. Sim, porque eu sou a favelada e aquele lugar do ensino de qualidade também era meu. Mas eu não tinha autoidentificação nem o lugar da mulher negra favelada. Essa é uma construção que vai se formando.”
Antes de sair do evento na Casa das Pretas, Marielle pensou em ir tomar uma cerveja com as companheiras mas, vencida pelo cansaço, desistiu do programa, embarcando no carro dirigido por Anderson. Antes de descer as escadas do prédio disse animada: “Vamo que vamo, vamo junto ocupar tudo”!
Quem mandou matar? Marielle, Presente!
*Ricardo Mezavila, cientista político