Parece em algum momento, devido a certos usos políticos interessados e matrizes midiáticas propagadas pela indústria cultural hegemônica, que a vida de Nelson Mandela só merece ser contada em termos hagiográficos, descontextualizada e idealizada, como que para diminuir a verdadeira estatura do combatente consistente e resoluto, aquele que deu tudo pela liberdade de seu povo.
Ele mesmo disse da tentativa de retirá-lo das coordenadas de seu tempo e circunstâncias: «Não devo ser considerado o santo que nunca fui, mesmo que um santo seja definido como um pecador que continua tentando».
Ao celebrarmos hoje, 18 de julho, o Dia Internacional Nelson Mandela, uma data instituída pelas Nações Unidas desde 2010, coincidindo com o aniversário do líder revolucionário sul-africano, vale a pena lembrar — em sua exata medida — o valor do legado que ele nos deixou.
O exemplo de coragem, dignidade, resistência, capacidade de liderança e articulação harmoniosa de táticas e estratégias na luta o tornou alvo de ataques, desqualificações e campanhas de difamação não apenas pelo regime racista vigente em seu país, mas também pelas grandes potências ocidentais.
Nos Estados Unidos, o governo de Ronald Reagan o incluiu, junto com o Congresso Nacional Africano (ANC), na lista de indivíduos e organizações terroristas, e nós cubanos sabemos muito bem o que esta manipulação politicamente perversa representa.
Foi somente em 2008, 18 anos depois de ter conquistado sua liberdade, ter sido eleito presidente da República da África do Sul entre 1994 e 1999, e considerado o pai da nova pátria, que os EUA o excluíram da lista.
Em 1962, ao retornar à África do Sul para liderar o movimento antiapartheid dentro do país, foi preso na periferia de Durban enquanto dirigia um carro. De acordo com o testemunho, dado em 2015, por Donald Rickard, um agente da CIA colocado na época como vice-cônsul dos EUA em Durban, ao cineasta britânico John Irvin para o documentário Mandela’s Gun, foi sua rede de espionagem que alertou a polícia política sul-africana.
Não mostrou remorso. Para ele, Mandela era um inimigo, «o comunista mais perigoso fora da União Soviética», como foi descrito pela CIA, que, a propósito, recusou-se repetidamente a abrir seus arquivos sobre o líder antiapartheid, que devia ser banido. Por fim, a aposta falhou, pois a sentença de cinco anos após sua prisão e depois prisão perpétua em 1964 não amolgou as ideias de Mandela nem a luta de seu povo e do movimento internacional contra o regime racista e pela liberdade do herói, que foi finalmente libertado da prisão em 11 de fevereiro de 1990.
A referência à cumplicidade dos EUA no assanhamento contra Mandela, contida no livro Flechazos y rechazos de Stevie van Zandt, traduzido e publicado em espanhol no ano passado, não é desprovida de significado. O guitarrista da banda E Street Band, à qual pertenceu Bruce Springsteen revelou uma conversa que teve com Paul Simon — sim, o famoso músico norte-americano — nos momentos após o famoso concerto de Wembley, de 1988, contra o apartheid e pela liberdade do líder do ANC, que completava 70 anos. Simon lhe disse: «Meu amigo Henry Kissinger me explicou em detalhes; Mandela é um terrorista, um comunista e é perigoso». Van Zandt ficou petrificado. Então, como para identificar a origem do ataque, o guitarrista lembrou o papel de Kissinger no golpe contra o governo da Unidade Popular de Salvador Allende no Chile.
Barack Obama visitou a África do Sul, fez uma peregrinação à Ilha Robben, onde Mandela esteve preso por um longo tempo, e manteve o líder do ANC como exemplo de coragem inspiradora, por seus esforços de reconciliação e perdão. Mas nem ele nem seus antecessores e sucessores jamais pediram desculpas pelo agravo que os EUA infligiram a Mandela.
Rimando com Ronald Reagan, a britânica Margaret Thatcher também atacou Mandela e o ANC. Em 1988, a inquilina de Downing Street não hesitou em apostilar o ANC como «uma típica organização terrorista; qualquer um que pense que pode governar a África do Sul está vivendo uma fantasia».
Documentos do Arquivo Nacional revelados pela revista escocesa The Ferret, em 20 de setembro de 2018 confirmam que Thatcher «rejeitou com raiva uma proposta de seu secretário das Relações Exteriores, Douglas Hurd, por £1 milhão para ajudar o ANC, três meses após Nelson Mandela ter sido libertado da prisão». Em sua própria caligrafia ela escreveu: «Nós não financiamos a violência». Depois de sua primeira conversa telefônica com Mandela, Thatcher expressou seu desprezo: «Ele tem a mente bastante fechada». Será que ela estava olhando para si mesma no espelho?
Em 1991, Mandela nos visitou por ocasião da celebração do Dia Nacional da Rebelião em Matanzas. Na véspera do evento, compareceu perante a imprensa estrangeira em Havana. Um correspondente norte-americano lhe perguntou: «A comunidade exilada cubana lhe pediu que criticasse a situação dos direitos humanos em Cuba. Como você responde a esses exilados, por favor?».
Mandela respondeu sem rodeios: «Quem são eles para exigir a aplicação dos direitos humanos! Quem são eles para se preocuparem com os direitos humanos quando não estão preocupados com a violência que causou a morte de 10.000 pessoas no meu país? Quem são eles para nos darem sermões sobre direitos humanos? Se você me responder a essa pergunta, então eu lhe responderei».
Silêncio. Não era mais necessário. O escudo moral de Mandela quebrou a manobra sibilina. Esse era Mandela.