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terça-feira, 8 outubro, 2024

Xadrez do golpe na era da hipocrisia – 2, por Luis Nassif

No artigo anterior – “Xadrez do golpe na era da hipocrisia” – descrevemos as quatro etapas dos golpes políticos:

  1. A fase da preparação.
  2. A catarse.
  3. A institucionalização do golpe.
  4. A era da hipocrisia, quando se abandonam de vez os pruridos e as encenações de legalidade.

Peça 1 – o direito penal do inimigo

Os episódios da última semana significaram a entrada no quarto período, o equivalente ao AI-5 do golpe militar, o momento em que o pacto do golpe se mostra eleitoralmente inviável pela ausência de um nome competitivo para as eleições presidenciais, e radicaliza-se o direito penal do inimigo. E tudo dominado por uma cegueira ampla, de quem não percebe as hordas bárbaras se aproximando celeremente da cidadela.

O sinal mais agudo foi a denúncia da Procuradora Geral da República (PGR) Raquel Dodge pedindo a aposentadoria compulsória do desembargador Rogério Favretto – que ousou um HC em favor de Lula, depois da juíza de execução não responder a um pedido da defesa. Foi uma atitude mais significativa do que as posições previsíveis de Laurita Vaz, do STJ (Superior Tribunal de Justiça), defendendo a insubordinação de Sérgio Moro contra o HC de Favretto.

A postura de Dodge libera qualquer juiz ou procurador para a caça aos “inimigos”, independentemente de suas prerrogativas constitucionais, mantendo-se a blindagem dos aliados.

Cindiu-se definitivamente a Justiça entre o direito penal do inimigo e dos amigos.

Peça 2 – o direito penal dos amigos

Para entender o direito penal dos amigos, deve-se retroceder até 2016, quando o ex-PGR Rodrigo Janot valeu-se da parceria com a revista Veja para anular a delação de Léo Pinheiro, presidente da OAS, que pegava em cheio Geraldo Alckmin, José Serra e Aécio Neves.

Na época, a colunista Mônica Bérgamo já havia identificado a estratégia a ser adotada para livrar os próceres tucanos

A revelação feita pela Odebrecht sobre dinheiro de caixa dois para o PMDB, a pedido de Michel Temer, e para o tucano José Serra (PSDB-SP) tem impacto noticioso, mas foi recebida com alívio por aliados de ambos. Como estão, os relatos poupam os personagens de serem enquadrados em acusações mais graves, como corrupção e formação de quadrilha.

EM CASA

Contribuição não contabilizada pode ser enquadrada como crime eleitoral, de punição branda e chance mínima de resultar em prisão.

CONTA MAIS

Há, porém, uma pedra no caminho: a força-tarefa da Operação Lava Jato, que não aceita a versão de contribuições desinteressadas para campanhas eleitorais via caixa dois. Os procuradores insistem na revelação de contrapartidas, o que enquadraria a doação dos recursos em propina pura e simples.

PROCESSO DINÂMICO

Por isso, a delação que envolve Temer e Serra pode ainda sofrer alterações.

A delação de Léo Pinheiro atingia Lula, com a história do triplex, mas muito mais José Serra e Geraldo Alckmin com as obras do Rodoanel e do Metrô, e Aécio Neves, com a Cidade Administrativa, comprometendo a versão do caixa 2.

No caso do tríplex, houve a necessidade de um amplo contorcionismo para ligar as reformas a contratos específicos da Petrobras, que é uma empresa de capital misto com gestão própria. No caso dos governadores, não haveria dificuldades maiores, porque todas as obras estavam sob controle direto dos governos de Estado.

A maneira como o PGR Rodrigo Janot trabalhou para a delação não ser aceita é um dos clássicos da manipulação midiática do período, conforme o GGN revelou na reportagem “Xadrez da dança dos lobos de Janot e Gilmar para livrar Serra”.

A delação de Pinheiro caminhava normalmente. No meio do caminho, a revista Veja publicou uma reportagemdizendo que a delação insinuava comportamento comprometedor do Ministro Dias Toffoli.

Era uma reportagem fake, similar ao suposto grampo da conversa entre o Ministro Gilmar Mendes e o ex-senador Demóstenes Torres, no qual ambos trocam mesuras e elogios recíprocos.

Segundo ela, em uma conversa informal com Leo Pinheiro, Toffoli havia mencionado que sua casa sofria com problemas de vazamento. Pinheiro teria sugerido uma empresa para resolver a questão. Depois do trabalho feito, indicou técnicos para conferir se as infiltrações haviam sido corrigidas. E só.

Com base nessa bobagem, Janot ordenou o cancelamento da delação. Na edição seguinte, Veja contava:

VEJA teve acesso ao conteúdo integral de sete anexos que o procurador-­geral decidiu jogar no lixo. Eles mencionam o ex-­presidente Lula, a campanha à reeleição da presidente afastada Dilma Rousseff e, ainda, dois expoentes do tucanato, o senador Aécio Neves e o ministro José Serra. A gravidade das acusações é variável. Para Lula, por exemplo, as revelações de Léo Pinheiro são letais.

Pinheiro não apresentou um documento sequer comprovando a transferência do tríplex para Lula. Mas comentava-se, entre advogados que atuavam no caso, que havia o relato de pelo menos um depósito na conta de Verônica Serra, filha de Serra. Não apareceu na reportagem da Veja. Nem posteriormente.

Para justificar a anulação, Janot acusou os advogados da OAS de terem vazado parte do pré-documento, com o intuito de pressionar para que a delação fosse aceita. Se havia resistências, era em relação ao que tinha para contar sobre os governadores tucanos.

Como relatou o GGN na época, Janot atribuiu o suposto vazamento aos advogados da OAS. As 17 delações anteriores haviam sido vazadas pela Lava Jato. Por que a da OAS não? Seguindo o brilhante raciocínio de Janot, devido ao fato da tal denúncia não constar da delação, mas de conversas informais entre Léo Pinheiro e os procuradores. Se os procuradores sabiam por ler ou ouvir, qual a diferença?

Para justificar a não tomada de decisão em relação ao vazamento das delações anteriores, alegou que a de Toffoli era diferente, “porque a informação não existia”. Ou seja, tratou drasticamente um vazamento irrelevante (porque, segundo ele, não constava da delação) e ignorou vazamentos graves. Com o detalhe de que o vazamento irrelevante permitiu esconder as informações relevantes de Léo Pinheiro em relação a políticos aliados.

A delação jamais foi homologada. Mesmo assim, as declarações de Léo Pinheiro serviram de fundamento para a sentença de Sérgio Moro que mandou Lula para a prisão. E Pinheiro teve a pena diminuída para três anos e seis meses em regime semi-aberto, com a condescendência do seletivamente implacável TRF-4. O único sentido da não homologação foi não permitir que as denúncias contra tucanos viessem à tona.

Agora informa-se que o STF deverá homologar a delação. Que delação? A original? Ou submetida a alguma plástica jurídica?

Peça 3 – para os amigos, caixa 2 sem propina

Graças a esse expediente, de anular, não anulando, a delação de Pinheiro, a PGR conseguiu levar adiante a estratégia, mantida por Raquel Dodge, de jogar o PT no fogo do inferno e o PSDB no purgatório do caixa 2.

Quando Alckmin perdeu a prerrogativa de foro, renunciando ao governo do Estado, a seção paulista da Lava Jato solicitou que o caso lhe fosse encaminhado. Em vez disso, o subprocurador geral Luciano Maia remeteu o caso para o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) de São Paulo, como se fosse apenas um caso de caixa 2, sem contrapartidas, apesar das enormes obras tocadas no estado pelas financiadores de Alckmin, apesar do caso Paulo Preto. Dias depois, num assomo de sincericídio, Maia admitiu que os TREs são órgãos eminentemente políticos e, portanto, sem isenção para analisar casos políticos.

Mesmo assim, manteve o caso de Alckmin no TRE.

Contra Aécio, as evidências estão escancaradas nos episódios de Furnas, da Cemig com a Andrade Gutierrez, na Cidade Administrativa, nos pagamentos feitos a laranjas, nos R$ 500 mil em dinheiro vivo entregues a um intermediário.

Mesmo assim, as investigações andam a passo de cágado. Recentemente, Gilmar anulou o processo de Furnas alegando que a Polícia Federal nada tinha acrescentado de substancioso ao inquérito. Não se duvide. A PF tem lado.

Mas como passar por cima dos efeitos letais das delações premiadas que, mesmo sem estarem acompanhadas de provas documentais, apressaram o golpe do impeachment, a prisão e tentativa de inabilitação da candidatura de Lula?

Aí entra o próximo tempo do jogo, o enquadramento das delações premiadas daqui para frente, depois de alcançados os objetivos políticos planejados.

Peça 4 – a mídia e a denúncia das delações vazias

Na semana passada, um juiz de 1ª instância anulou uma denúncia contra Lula, André Esteves, do Pactual, e o ex-senador Delcídio do Amaral, de tentativa de obstrução da Justiça, feito em cima de uma delação premiada acompanhada de um grampo planejado por Bernardo, filho de Nestor Cerveró.

Como o juiz já havia sido denunciado pelo MPF por sua atuação no caso Zelotes (que investiga a corrupção no CARF), pode ser que tenha se impressionando com a presença de André Esteves no processo. Ou pode ser que tenha apenas corroborado o parecer do procurador Ivan Marx pela anulação, por falta de provas.  Marx é tido como um procurador técnico e isento.

Esse mesmo grampo foi uma das peças centrais no impeachment de Dilma, ao incendiar a opinião pública, levando o Ministro Teori Zavascki a decretar a prisão de Delcídio. Tudo porque, maliciosamente, Janot divulgou trechos em que o falastrão Delcídio insinuava intimidade com Ministros do STF. Não havia nenhuma menção a suborno ou quetais, mas apenas jactâncias sobre contatos políticos.

O pânico provocado pela caça às bruxas induziu à reação de Teori Zavascki, autorizando a prisão de Delcídio.

Como explicamos na ocasião,

Para prender Delcídio, o PGR e o STF valeram-se de uma certa esperteza jurídica: incluíram nas investigações um assessor de Delcídio, meramente para compor o número 4, mínimo para caracterizar uma organização criminosa.

Com a prisão de Delcídio, abre-se caminho para avançar sobre outros políticos. O STF assume um protagonismo, em relação direta com as bazófias de Delcídio nas gravações, arrotando suposta influência sobre Ministros do Supremo.

Zavascki cedeu em todos os momentos aos esbirros autoritários da Lava Jato-mídia e morreu consagrado como isento, porque superado na relatoria da Lava Jato pelo indescritível Luiz Edson Fachin.

Intimidado pela prisão, Delcídio fez uma enorme delação, peça central para o golpe que se seguiu. Seu único efeito foi político. Não conseguiu comprovar o que dizia. Mesmo assim, foi beneficiado e libertado em pouco tempo, porque provas, ora, as provas!

Agora, após o golpe consumado, todos esses abusos são invocados para que se proceda a uma linha de corte e não se aceite mais a delação sem provas.

Segundo editorial de 15 de julho passado na  Folha:

Ao eclodir em tons escandalosos, o episódio acirrou as tensões de um ambiente político em que se iniciava o debate em torno do impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT). Esteves permaneceu preso por mais de três semanas, e o banco que dirigia, o BTG, correu risco de insolvência. (…)

Por difícil que seja antecipar as possibilidades para fundamentar a perda de liberdade, a reflexão se impõe sobre medida tão drástica.

Quão vulgar se tornou o recurso ao encarceramento provisório? Como autoridades podem ser responsabilizadas por decisões açodadas e mal fundamentadas?

Colocam-se em dúvida, mais uma vez, inquéritos amparados basicamente em delações, por fundamentais que estas sejam.

O episódio foi saudado pela defesa de Lula como sinal de que seu caso poderá ser revisto, por se basear igualmente em relação sem apresentação de provas.

Sugere-se que não se iludam. Ele servirá apenas para consolidar o estado de direito, apenas quem merece por direito político: os aliados.

Como declarou a PGR Raquel Dodge, Sérgio Moro tem atuado com absoluta isenção na Lava Jato.

Comprova que um dos pontos centrais da crise brasileira é a ausência de figuras públicas referenciais. Não existe a figura pública que se guia por princípios, pela obediência à doutrina.

A onda obscurantista abriu espaço para três tipos daninhos de caráteres públicos:

  1. Os espertos.
  2. Os medrosos.
  3. Os convictos.

O grande desafio dos legalistas, hoje em dia, é não esmorecer. Atravessa-se um período global de desmonte de todas as conquistas civilizatórias. Não se trata mais de uma disputa ideológica, mas de uma resistência sem quartel à barbárie que está avançando em cima da tibieza das pessoas que deveriam representar condignamente as instituições e a imprensa.

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