Por Luis Nassif, no Jornal GGN:
Cena 1 – de como Gilmar tornou-se o condestável da República
Gilmar Mendes tornou-se o mais influente dos brasileiros, e faz questão de exercer o poder em sua plenitude. Literalmente, Gilmar manda na República.
Preside o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e tem maioria de cinco votos. Com ele votam Henrique Neves, Napoleão Nunes Maia Filho, Luiz Fux e Antônio Herman de Vasconcellos Benjamin, um antipetista radical. Napoleão é professor no IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público), com salário estimado em R$ 40 mil mensais.
Nessa condição, tem nas mãos o destino de Michel Temer, presidente.
No TSE, também cabe a ela pautar as questões.
No domingo, andou dando entrevistas sugerindo que existiriam precedentes para separar o julgamento da chapa Dilma-Temer no TSE.
Não existe precedente algum. A Constituição diz claramente que os votos da chapa embargada serão anulados. Poderá haver divergência na aplicação das penas políticas, como inabilitação para cargos públicos. Mas jamais para manter um dos dois no cargo.
No entanto, como presidente do TSE, bastará postergar a votação – como vem fazendo, aliás – para dar sobrevida a Temer.
Além disso, é presidente da 2a Turma do STF (Supremo Tribunal Federal), por onde transita a Lava Jato. A turma é composta por cinco juízes. Dias Tofolli é fechado com Gilmar. Celso de Mello é o chamado “vagalume”, de comparecimento instável – provavelmente por problemas de saúde — e bastante influenciável por Gilmar em questões políticas, não necessariamente doutrinárias. Como presidente da Turma, cabe a Gilmar pautar os julgamentos em cada sessão. Para absolver qualquer réu, basta programar para um dia de ausência de Celso de Mello. Com o voto de Toffoli garantido, em qualquer caso haveria empate. E, em caso de empate, pro reu.
Com esse poder, tem em suas mãos o presidente do Senado Renan Calheiros. Há no Senado um processo de impeachment contra Gilmar. Se o presidente do Senado ousar encaminhá-lo, no dia seguinte dança na Lava Jato. Não apenas Renan, mas qualquer parlamentar com processos nas costas.
Gilmar tem manifestado seu poder de forma ostensivo.
O Ministro da Justiça Alexandre Moraes só não caiu por sua interferência direta.
O IDP se tornou o think tank conservador do Judiciário. Agora, Gilmar quer entrar na máquina administrativa. Recentemente relançou um livro de Hely Lopes Meireles – uma das referências do direito administrativo – com prefácio de Michel Temer.
Sua falta de limites tem incomodado muitos setores. Além disso, tem inúmeras vulnerabilidades, como os patrocínios do IDP, de empresas e associações com interesses diretos no STF.
A qualquer momento, poderá levar uma denúncia pelas costas. E não virá pela esquerda.
Cena 2 – como as quizilas entre Janot e Teori deram sobrevida a Eduardo Cunha
A partir de determinado momento, na Lava Jato, ocorreu um estranhamento entre o Ministro Teori Zavascki, relator do processo, e o Procurador Geral da República Rodrigo Janot.
Teori é um juiz rigoroso, técnico, discreto, que se escandaliza até com o estrelismo de colegas. Começaram a incomodá-lo os constantes vazamentos de documentos que eram restritos à PGR e ao STF.
A estratégia de vazamentos se baseia na existência de dois ou mais pontos de conhecimento dos documentos vazados, porque não permite a identificação cabal do vazador. No caso das matérias afeitas ao Supremo, só havia dois pontos: o PGR ou o Supremo. Teori sabia que não partiam dele os vazamentos e fez chegar a Janot seu descontentamento.
Janot devolveu a estocada no caso Eduardo Cunha. Poderia ter encaminhado o pedido de afastamento em novembro de 2015, quando chegaram várias denúncias contra ele. Teori precisaria de um tempo para consultar os colegas. Não poderia dar uma decisão monocrática e, depois, ser derrubado pelo pleno do Supremo. Seria desmoralização dele e consagração de Cunha. Se a denúncia fosse apresentada em novembro, teria tempo para sondar os colegas.
No entanto, Janot pediu o afastamento de Cunha no primeiro dia do recesso do Supremo. A única razão para tal era a de colocar Teori contra a parede. Teori só afastaria monocraticamente se tivesse certeza de que o pleno endossaria. Mas, na sua avaliação, a denúncia ainda não tinha consistência.
A partir de fevereiro e março, com Cunha articulando abertamente o impeachment, foram aparecendo mais provas e foi sendo criado consenso dentro do STF. Mas a questão política falou mais alto. Muitos Ministros temeram que, tirando Cunha, poderia parecer que o Supremo estaria tomando partido no impeachment.
Só após o impeachment, o clima ficou a favor da saída de Cunha.
Cena 3 – o vazamento da delação de Delcídio
O clima entre Teori e Janot explodiu no vazamento da delação do ex-senador Delcídio do Amaral, em março de 2016. Uma cópia da delação estava no cofre do PGR; a outra, no processo no Supremo.
O vazamento ocorreu na revista IstoÉ, pela mesma repórter das relações pessoais do então Ministro José Eduardo Cardozo – que, até então, era companheiro inseparável de Janot. Para disfarçar a origem, a repórter – que era de Brasília – dava como origem da notícia Curitiba.
Quando ficou claro que não tinha vazado por lá, houve um movimento da imprensa para descobrir quem vazara a delação.
Janot teria insinuado que o vazamento teria sido do gabinete de Teori. Apresentou como prova a marca d’água do Supremo no PDF baixado pelo repórter. Rapidamente foi desmascarado. Se o Procurador faz o upload para o banco de dados do Supremo e, em seguida, faz o download, o documento já virá com a marca d’água do Supremo.
A prisão de Delcídio foi a primeira das atitudes inconstitucionais da Corte. Prisão só em caso de flagrante delito ou sentença transitado em julgado.
O Supremo acabou aprovando devido aos trechos da gravação nos quais Delcídio detonava cada um dos Ministros. Teori chamou-os com urgência para ouvir as acusações. A prisão de Delcídio foi uma reação de egos feridos e abriu espaço, pela primeira vez, para que o guardião da Constituição passasse a desconstruir a própria Constituição.
Foi apenas aí que caiu a ficha de Dilma sobre o papel de Janot.
Cena 4 – a tentativa de prisão de Jucá, Renan e Sarney
Teori quebrou definitivamente as pernas de Janot no episódio do pedido de prisão de Romero Jucá, Renan Calheiros e José Sarney como decorrência das gravações de Sérgio Machado. E não foi por vingança, mas por análise técnica.
Há diversas gradações no planejamento do crime.
O primeiro passo é a chamada cogitação de crime. A pessoa passa em frente uma joalheria e cogita de assaltá-la. Até aí, não é crime.
O segundo passo são os chamados atos preparatórios. Se forem típicos, passa a ser crime.
O terceiro ato é o assalto propriamente dito.
No máximo, as conversas se enquadravam na cogitação de crime.
Mais ainda, um senador da República tem imunidade da palavra, que não se resume ao que é dito na tribuna. E seria legítimo se preocupar com uma operação que estava destruindo a economia do país.
Todos esses argumentos conspiravam contra o pedido de prisão. Sabe-se lá a razão de Janot ter feito essa aposta. Na ocasião, inclusive, aqui no GGN julgávamos que ele teria outros trunfos na manga, tamanha era a desproporção entre as conversas gravadas e o pedido de prisão.
A autorização foi negada e, ali, Janot se recolhe definitivamente.
Cena 5 – as nomeações de Ministros do Supremo
Para ser nomeado, um candidato a Ministro do Supremo tem que se submeter a uma maratona humilhante que, em grande parte, explica seu comportamento pós-indicação, muitas vezes de profunda arrogância.
Por exemplo, o ex-Ministro Joaquim Barbosa enlouqueceu, quando percebeu que Lula iria nomear um negro. Não saia mais das de José Dirceu, então Ministro-Chefe da Casa Civil, e a de Dias Toffoli, então na AGU (Advocacia Geral da União).
Depois, vendeu a versão de que estava nos Estados Unidos quando, inesperadamente, recebeu telefonema de Lula perguntando se ele queria ser Ministro.
Uma cena entre ele e Lula ajudou a espicaçar seu comportamento na AP 470.
Um dia Joaquim Barbosa foi a Lula se queixar de que estava sendo discriminado no Supremo. Lula tratou na gozação.
– Ô Joaquim, você vem dizer para mim que está sendo discriminado? Vai lá e lute, como eu lutei.
Já a nomeação de Luiz Fux foi um caso intrincado.
Lula garante que não partiu dele as pressões. A um interlocutor disse que Fux chegou recomendado por Delfim Netto e por João Pedro Stédile, do MST (Movimento dos Sem Terra). E ele, Lula, jamais teria confiança em quem recebia recomendações de pessoas tão opostas.
Na verdade, Fux foi uma concessão de Dilma a José Dirceu, que telefonou pessoalmente pedindo a indicação de Fux como única maneira de livrá-lo da prisão. Embora discordasse em quase tudo de Dirceu, Dilma resolveu ser solidária.
A intenção de Fux de “matar no peito” durou até a primeira conversa com Gilmar Mendes.
Cena 6 – o estranho voto de Luiz Fachin
Um dos julgamentos mais estranhos do Supremo foi a votação sobre os ritos do impeachment.
A Câmara definira um rito quase sumário. O PCdoB entrou com uma ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Constitucional), para que o tribunal obedecesse ao mesmo roteiro do impeachment de Fernando Collor.
O relator era o Ministro Luiz Edson Fachin. Todos apostavam que seu voto seria à favor da ADPF. Surpreendentemente, votou contra. Coube ao Ministro Luís Roberto Barroso dominar a sessão, com um voto considerado unanimemente brilhante a favor da ADPF. “O papel do Supremo é o de preservar as instituições, promover a Justiça e resguardar a segurança jurídica. O que liberta o tribunal é que ele seguiu seus próprios precedentes” disse Barroso.
Ali o respeitado Fachin sepultou sua reputação.
Nos bastidores, a história que se conta mostra um notável desprendimento de Fachin.
No último momento, convocou alguns colegas, dizendo-se vítima de uma pressão que ele não poderia enfrentar. Nunca disse do que se tratava, mas ficava claro que estava sendo chantageado.
Para contornar a chantagem, queria se assegurar de que, mesmo votando contra a ADPF, haveria maioria suficiente para aprová-la. E encaminhou a Barroso os estudos que fundamentariam o seu parecer. Sacrificou-se, mas cometendo um dos mais dramáticos (e desconhecidos) gestos de desprendimento de um juiz da Suprema Corte.
Ali, o Supremo teve seu último momento de grandeza.
Pouco depois, o próprio Barroso também foi alvo de chantagens. E o Supremo como um todo soçobrou ao clima que tomou conta do país.