Por João Batista Damasceno, em seu blog “Resistência Lírica”,
“Mais tarde ou mais cedo o Brasil tem de decidir-se de que lado está no novo horizonte geopolítico e geoestratégico mundial em curso”
Não sou, nem nunca fui, um chavista ferrenho. Hugo Chávez foi um benévolo meteorito político que abalou o subcontinente latino-americano e o mundo na primeira década do século XXI.
Em 2013, logo após a morte de Hugo Chávez, escrevi um texto intitulado “Hugo Chávez: o legado e os desafios”. Identificava alguns sinais de autoritarismo e de burocratização e terminava o texto com a seguinte frase: “Sem ingerência externa, estou seguro de que a Venezuela saberia encontrar uma solução não violenta e democrática. Infelizmente, o que está no terreno é usar todos os meios para virar os pobres contra o chavismo, a base social da revolução bolivariana e os que mais beneficiaram com ela. E, concomitantemente com isso, provocar uma ruptura nas Forças Armadas e um consequente golpe militar que deponha Maduro. A política externa da Europa (se de tal se pode falar) podia ser uma força moderadora se, entretanto, não tivesse perdido a alma”.
Tenho de reconhecer que o meu temor não se concretizou até hoje, embora não tenham faltado tentativas para que ele se concretizasse. Penso que o momento atual configura mais uma dessas tentativas. Daí a importância de refletir sobre o clamor nos media ocidentais sobre a possibilidade de fraude nas recentes eleições na Venezuela e o consenso à direita e à esquerda sobre a necessidade de auditar os resultados. É grande a minha perplexidade e obriga-me a uma reflexão.
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O sistema eleitoral venezuelano tem sido unanimemente considerado um dos mais seguros e protegidos contra a fraude. Exige quatro momentos de identificação: inscrição nos cadernos eleitorais, voto eletrônico, extração de voto de papel, impressão digital do votante. Os números têm de coincidir. Claro que nenhum sistema eleitoral é totalmente imune à fraude, mas quando comparamos com os sistemas eleitorais de outros países (nomeadamente o dos EUA ou o português), o sistema venezuelano é mais seguro. Porque é tão evidente para tanta gente que pode ter havido fraude?
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A oposição vinha anunciando que só reconheceria os resultados se ganhasse as eleições. Neste domínio, estava a seguir uma prática que se vai generalizando entre as forças de extrema-direita que concorrem a eleições (casos de Trump em 2020, Bolsonaro em 2022, Milei em 2023). Isto devia exigir alguma precaução por parte das forças democráticas, não vá a sua insistência na auditoria servir de muleta a forças políticas que, supostamente em nome da democracia, a querem destruir.
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Fora da Venezuela, as forças mais vociferantes na defesa da democracia venezuelana são forças políticas de extrema-direita que nos seus próprios países advogaram ou praticaram golpes de Estado e fraudes eleitorais. No Brasil, com a colaboração ativa dos EUA, Jair Bolsonaro, e as forças político-militares que o apoiavam, foram os protagonistas da mais clamorosa fraude eleitoral da última década. Conseguiram inabilitar e meter na prisão durante mais de 500 dias o candidato que certamente ganharia as eleições, Lula da Silva; manipularam facilmente os media e os tribunais; e a eleição de 2018 foi dada como válida internacionalmente sem nenhuma reserva. Isto mostra que o clamor mediático-político sobre a possibilidade de fraude e a necessidade de verificação dos resultados não assenta, ao contrário do que parece, num entranhado amor à democracia, mas antes noutras razões, que aponto adiante.
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A dualidade de critérios vai muito para além das forças de extrema-direita e do primitivismo das suas considerações. Os países europeus, que se orgulham de ser impecáveis democracias, foram quase unânimes em reconhecer como presidente legítimo da Venezuela um senhor que se tinha proclamado presidente numa praça de Caracas. Refiro-me a Juan Guaidó, em 23 de Janeiro de 2019. Como se explica que, neste caso, não tenha havido qualquer precaução em verificar os processos democráticos? É sobretudo chocante quando comparamos esta aparente negligência com o zelo de agora, a respeito de uma eleição que contou com mais de novecentos observadores vindos de quase cem países? Aliás, num aparte que aumenta a perplexidade, dá que pensar que só nalguns países seja tão crucialmente importante recorrer a observadores externos para credibilizar processos eleitorais. Se a possibilidade de fraude existe sempre, a exigência de observadores devia ser universal e tutelada pela ONU.
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Não discuto as razões que levaram à inabilitação da Maria Corina Machado (é sabido que participou em várias tentativas de golpe contra o governo bolivariano e que chegou a pedir a intervenção militar estrangeira), mas não deixa de causar perplexidade o modo como foi escolhido o seu substituto, o ex-diplomata Edmundo Gonzalez Urrutia. Há algo de inquietantemente caricatural na oposição venezuelana. Primeiro, foi Juan Guaidó; agora foi um senhor que parecia ter saído de um lar de idosos para uma atividade tempo livre que, por acaso, era uma candidatura presidencial. Se refiro isto, é apenas porque as mãos de Edmundo Gonzalez podem estar eventualmente manchadas de sangue. Entre 1981 e 1983 Edmundo Gonzalez era o primeiro secretário da Embaixada da Venezuela em El Salvador, cujo embaixador era Leopoldo Castillo, conhecido como Matacuras (mata padres). Realizava-se nessa altura o Plano Condor de contra insurgência impulsionado por Ronald Reagan que naquele país visava impedir o avanço das forças revolucionárias da Frente Farabundo Martí para La Liberación Nacional (FMLN). Este plano incluiu a execução da Operação Centauro que envolveu o exército e esquadrões da morte e visava assassinar revolucionários e, nomeadamente, os membros das comunidades religiosas congregadas à volta da teologia da libertação. Foram assassinadas 13.194 pessoas, entre as quais Don Oscar Romero, hoje Santo da Igreja Católica, quatro freiras Maryknoll, e cinco padres. Segundo dados da CIA desclassificados em 2009, Leopoldo Castillo surge como corresponsável da coordenação e execução da Operação Centauro. Edmundo Gonzalez era o primeiro secretário da Embaixada da Venezuela. Os crimes cometidos são crimes de lesa humanidade e como tais imprescritíveis.