Se iba muriendo despacio, despacio / pa’ quedarse un poco más.(Tata Juancho. Canción de Jorge Cafrune.1976)
Vítima da afasia – uma disfunção da linguagem – Zezé entendia o que ouvia e, no início, falava com dificuldade. Com o avanço da doença, emudeceu de vez. Nos papos esporádicos que mantínhamos via zapp, a comunicação dependia do fiel companheiro de quatro décadas, o argentino Jorge Sprovieri, sempre a seu lado. Durante alguns anos, Maria José Lourenço foi morrendo devagarinho, como o Tata Juancho da canção do outro argentino, “El Turco” Jorge Cafrune. Queria ficar um pouquinho mais com a gente?
Foi ficando, ficando, ficou. Por vários anos. Nós também queríamos com ela ficar. Mas em meados de março, em telefonema a Jorginho, a cineasta Tetê Moraes soube que Zezé estava se despedindo da vida, cuja qualidade se tornava cada vez mais limitada. Dez dias depois, sua luz se apagou na casa modesta em Itanhaém (SP). Ela completaria 80 anos em maio. Deixa saudades e inúmeras histórias sobre a resistência ao arbítrio e a luta por justiça social. A dor da perda está salpicada de lembranças, pessoais umas, políticas outras.
Éramos unha e carne. Com ela convivi diariamente nas salas de aula do Curso de Jornalismo da UFRJ, vínculo que se prolongou ao longo dos anos por vários órgãos da mídia, onde trabalhamos: O Sol, o semanário Poder Jovem, o Jornal de Vanguarda na TV Continental sob a batuta de Ana Arruda e Reynaldo Jardim, além da Agência de Notícias Asapress,O Paiz e Correio da Manhã. Ela tinha invejável facilidade para redigir. Datilografava e o texto já saía prontinho, sem precisar de correção. Ironia do destino para quem teria a fala truncada.
Militância estudantil
Militamos no movimento estudantil e nas passeatas contra a privatização das universidades públicas – projeto da ditadura. Enfrentamos a repressão. Comungamos as mesmas leituras. Em “Lembranças do exílio” recém-publicado por Terapia Política, ela se diverte contando como eu a atormentei para que lesse “Princípios fundamentais do materialismo histórico”, de Georges Politzer, livro em linguagem simples, quase simplória, mas com o qual eu estava deslumbrado. Era a descoberta, aos 18 anos, de um mundo novo, uma porta aberta para a busca do socialismo.
A cumplicidade entre nós nasceu no dia em que nos conhecemos em março de 1966. No primeiro dia de aula, o professor Danton Jobim, presidente da ABI, fazia a chamada e pedia a cada um que se apresentasse. Éramos 30 calouros, quase todos da Zona Sul, no meio deles dois nortistas: eu, amazonense recém-chegado de Manaus e ela, da Vila Kosmos, Zona Norte do Rio. Quando ouvi meu nome, respondi em voz alta igual que os outros:
– Presente!
Subitamente, a sala inteira explodiu numa gargalhada espontânea, barulhenta, escandalosa. Todo mundo olhou pra mim. Não entendi qual era a graça. Depois da aula, já na fila do restaurante universitário, com a destimidez e a confiança de um fulano do Amazonas em conversa com uma sicrana do subúrbio carioca, indaguei sobre a razão do riso. Ela respondeu:
– Eles acham que a forma certa de falar é prêsente com o “e” fechado. Quem fala présente com o “e” excessivamente aberto, eles acham que é pau-de-arara. Não liga não.
Não liguei. Os colegas – tudo gente boa – nos elegeriam para a direção do Centro Acadêmico da Escola de Comunicação (ECO). Essa militância estudantil escancarada à luz do dia conviveu com a militância clandestina de ambos no MNR – Movimento Nacionalista Revolucionário, de origem brizolista, constituída por ex-militares expulsos das forças armadas, cuja base de apoio no Rio era formada por estudantes e intelectuais, entre eles o matemático Bayard Demaria Boiteux, professor do Colégio Pedro II, Uerj e Unirio.
No MNR
Mas nós dois só entramos no MNR um par de meses após a derrota dos guerrilheiros da Serra do Caparaó, presos em 1967 sem disparar um tiro. Com eles, a organização se comunicava através de Lúcia – codinome da Zezé, que aprendera a embutir, em tubos de creme dental e sabonetes, mensagens levadas nas visitas familiares ao Presídio Frei Caneca, no Rio. Sem citar o nome de Itala Nandi, Zezé conta que aprendeu com a atriz a fotografar e a revelar documentos para enviá-los ao exterior num momento de feroz censura à mídia.
Censores ocupavam os jornais. Com a grave doença do ditador Costa e Silva, em setembro de 1969, uma junta militar provisória governava o país. A luta da milicada pelo poder se acirrou. A mídia, pisando em ovos, especulava sobre nomes do próximo ditador, boa parte dos jornais puxando o saco dos generais de forma vergonhosa. Nesse contexto, o chefe de redação do Correio da Manhã, Franklin de Oliveira, determinou que eu viajasse ao Rio Grande do Sul para vasculhar o passado do general Garrastazu Médici e fazer uma matéria sobre ele, avaliando o que era permitido publicar com a devida precaução para driblar a censura.
Acompanhado do fotógrafo, fomos até Bagé, berço do Médici. Entrevistei a professora dele na escola primária. Cascateira, elogiou a “genialidade” do aluno. Depois fomos à fazenda do cunhado, um grandalhão simpático, que nos convidou para jantar e dormir lá. Na entrevista ao pé da lareira, tomamos um bom vinho e constatamos certas afinidades, o que era insólito. Perguntei:
– O general declarou que “com as pedras atiradas contra o governo militar, construiria o futuro democrático do país”. Será?
O entrevistado caprichou nos elogios. Mas logo, em silêncio, fez um gesto com o dedo para eu desligar o gravador e, num clima já de confiança, desdisse o que falara:
– Médici é cruel, desumano e bruto, o seu governo vai reprimir, prender, torturar e matar.
Na Convergência Socialista
Retornei ao Rio com a revelação impublicável de que o cunhado do Médici havia apoiado em 1961 a Campanha da Legalidade liderada por Brizola. No aeroporto Santos Dumont, lá estava a Zezé, que me salvou. Contou que a polícia havia invadido meu apartamento na rua do Rezende e me deu o endereço de outro “aparelho” no qual eu devia me esconder imediatamente até tomar o caminho do exílio. Foi o que fiz. Ela também se exilaria no Chile de Allende, mas lá não nos encontramos, pois na sua chegada, eu já havia mudado para o Peru.
No Chile, Zezé e o seu ainda companheiro Jorge Pinheiro romperam com a proposta do foco guerrilheiro do MNR. Ela fundou com alguns militantes o “Ponto de Partida” e se aproximou do PST trotskista de Nahuel Moreno, quando se refugiou na Argentina após o golpe de Pinochet. De lá, ela nos visitou no Peru. Hospedada em minha casa, tivemos tempo para troca de figurinhas, as políticas com “Lúcia” e as afetivas com Zezé.
As figurinhas querençosas: minha “conje” Consuelo estava grávida. A criança que nasceu, registrada como Maria José, dormiu durante um ano no berço em forma de cesta – um moisés – presente de sua madrinha, de quem herdou o nome. Foi uma homenagem a essa “revolucionária gentil” – expressão usada em um artigo pelo historiador e militante Valério Arcary, que andou pelas “esquinas perigosas da História”.
As figurinhas políticas: Zezé, que fundara a Liga Operária, voltava clandestinamente ao Brasil, em plena ditadura, para organizar e dirigir no plano nacional a Convergência Socialista (CS), com ramificações no Amazonas. No meu retorno do exílio, com o professor Rosendo Neto de Lima e uns poucos companheiros, criamos em Manaus, em 1977, uma base da CS, com atuação no movimento dos professores e na oposição sindical dos metalúrgicos.
Zezé presente!
Torna-se sempre complicado contar o passado com o filtro do presente. Mas lembro que em Manaus líamos e discutíamos os artigos da revista Versus lançada em São Paulo no dia do assassinato do jornalista Vladimir Herzog, entre eles os textos da “revolucionária gentil”, que voltou a militar na imprensa e a defender o internacionalismo proletário, quando foi aberto espaço a questões vinculadas à pauta da Convergência Socialista.
Na clandestinidade, a antiga “Lúcia” do MNR passou a ser agora a “Luíza Maranhão” da CS, cujos militantes atuavam nas fábricas do ABC paulista e organizaram com outras forças as greves operárias que explodiram no final da década de 1970. No plano sindical e político, combateram os pelegos e participaram da construção da CUT e do PT, “um partido sem patrões”.
A repressão não tardou. Os dirigentes do Comitê Central da Convergência foram presos em 1978, entre eles Zezé, que foi levada para a Penitenciária Feminina do Carandiru. Houve manifestações de protesto em várias cidades do Brasil, incluindo os personagens do cartunista Henfil. Para descortinar melhor o horizonte, a Graúna trepou nas costas do Bode Orelana, devorador de livros e do esgalamido Capitão Zeferino, que agachado pergunta:
– Graúna, você está vendo alguma esperança em 1978?
– Tô. É Maria José Lourenço.
É isso aí. Hoje, a Graúna e nós continuamos vendo a esperança na causa pela qual “Lúcia” e “Luíza Maranhão” lutaram. Quanto à Zezé, ela “se queda todavia un poquito más con nosotros” e permanece viva na antropóloga que herdou seu nome e seus ideais.
– Maria José Lourenço!!!!!
– Presente! Ops, prêsente. Não, é présente mesmo: continuo pau-de-arara, brincando para disfarçar a dor pela perda da amiga amada.
P.S. – Zezé se aposentou como funcionária concursada da Justiça do Estado de São Paulo, depois de ser reconhecida pela Comissão de Anistia como vítima da ditadura militar. Além de inúmeros artigos em jornais e revista, escreveu o livro “Uma estrela chamada Catarina”, no qual a protagonista principal é sua tataravó, escravizada, além de outras mulheres negras e trabalhadoras da sua família.
Créditos de fotos: Documentário O SOL – Caminhando contra o vento de Tetê Moraes, outras de arquivos pessoais e dos blogs Terapia Política e Opinião Socialista.
Referências:
1.Maria José Lourenço: Lembranças do exílio. 2011-2012. São Paulo. Arquivo particular da Zezé, texto encontrado em 22/10/2023. Publicado em Terapia Política. Lembranças do exílio – Terapia Politica
2.Maria José Lourenço: Uma estrela chamada Catarina. São Paulo, s/d.
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