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sexta-feira, 19 abril, 2024

Um sapato furado

Militante do PCB a vida inteira, Alberto Vita escolheu o jornalismo como prioridade da vida. Circulou por inúmeros jornais, antes e depois de “O Momento”

Alberto Vita, secretário de redação de O Momento, jornal diário do Partido Comunista Brasileiro (PCB), cuja existência durou de 1945 a 1957, andou, andou, usou, usou, abusou quanto pôde daquele sapato surrado.

Até um dia o sapato reclamar, dar sinais de inquietação, e o pé também sentir o chão áspero das ruas.

Fácil não, a vida de jornalista.

Menos ainda, a de jornalista comunista.

Dedicação tempo integral ao jornal do PCB, sujeito a inúmeras perseguições, a pelo menos dois empastelamentos.

Ele sempre a postos, orientando a moçada nova, cheia de ímpeto, talentosa, a ser lapidada, e lapidação exige empenho e talento.

Vita era talentoso e dedicado.

Um dia, sentiu ligeiro incômodo na sola do pé, e ao chegar em casa, tirar a meia e os sapatos, compreendeu a razão: pé direito ferido, sapato furado na parte da frente.

Dinheiro para comprar sapato novo, nem pensar.

Sei, parece exagero.

Não é.

O jornal, sob cerco permanente, primeiro pagava sempre os trabalhadores menos afortunados, e ele, no topo, era dos últimos a receber, quando recebia.

Ainda pensou no velho sapateiro, conhecido.

Não, nem prá isso tinha.

Conhecia a razão do cansaço do sapato: para economizar e pagar a pensão onde morava na Barra¸ caminhava de lá até a sede do jornal, na Ladeira de São Bento, no centro de Salvador. Diria uns quatro, cinco quilômetros, oito, dez, se somada a volta, feita muitas vezes madrugada adentro. Houve até noite de cão, quando cioso pastor alemão dente à mostra quis escorraçá-lo, e conseguiu, pois ele pernas pra te que quero…

Dia seguinte, a redação o viu chegar mancando, ou simulando mancar: no pé esquerdo, o sapato sobrevivente.

No direito, um chinelo, suspensa sua condição de calçado caseiro tão confortável, alçado a substituto de sapato avariado.

No pé sem sapato, colocou uma bandagem mal ajambrada, simulando curativo, tentativa canhestra de disfarce.

Os companheiros de redação, preocupados, danaram a perguntar:

– Que aconteceu, Vita? O que houve com o pé? Machucou? É sério?

Luís Henrique Dias Tavares, dos mais novos da redação, cuja permanência no jornal durou de 1945 a 1952, testemunhou o caso do sapato furado.

Quando perguntaram sobre o pé ferido, levou o dedo indicador sobre o olho direito, cacoete comum nele, a revelar timidez ou insegurança, e nada disse.

Os companheiros intuíram: aí tem coisa.

Descobriram, juntaram trocados de um e de outro, antiga vaquinha, e lhe deram sapato novo.

Conhecer Alberto Vita foi porta de entrada de Luís Henrique Dias Tavares na chegada ao jornal O Momento.

Militante do PCB a vida inteira, Alberto Vita escolheu o jornalismo como prioridade da vida. A militância se expressava no jornalismo. Obrigado a ganhar o pão de cada dia, circulou por inúmeros jornais, antes e depois de O Momento.

Durante muito tempo, era para mim uma foto na parede.

A redação do Jornal da Bahia, quando nela ingressei em 1975, chamava-se Alberto Vita, e ele fiscalizava nossas atividades de cima, desde um retrato em preto e branco dependurado na parede. João Falcão, fundador daquele jornal, trouxe muitos profissionais de O Momento, entre os quais Vita, quando fundou o jornal, cujas atividades se iniciaram em setembro de 1958. Falcão fundara também o jornal comunista, e a revista Seiva.

Um sobrinho de Alberto Vita, Fernando Vita a quem conheci como implacável copidesque, hoje consagrado romancista, garante: depois da morte, em 1962, aos 40 anos de idade, o tio costumava escapar daquele retrato na parede durante as madrugadas ermas e danava-se a escrevinhar nas velhas Olivetti.

Ressalva: ele mesmo, sobrinho, não o viu.  Um sujeito do fotolito, no entanto, jura tê-lo visto nessa labuta mais de uma vez, inconformado por ter saído tão jovem de profissão. Será? Pescadores contam histórias, jornalistas também. Agora, repórteres checam se verdade ou mentira. Então…

Alberto Vita preferiu sempre a cozinha dos jornais. Adorava dar a última forma aos textos, e foi muitas vezes, pela competência, e escolha dele, secretário de redação. Passassem os textos pelos copidesques ou não, fazia questão de dar a última olhada, fosse uma reportagem, nota pequena. Punha o seu olhar de lince, e cortava, mexia numa noutra palavra, dava títulos. Sempre de modo discreto, cuidadoso, sem afrontar os repórteres.

Antes de 1945, ano de fundação de O Momento, estavam ele, João Batista de Lima e Silva, Mário Alves e Almir Matos no Diário de Notícias, e todos eles pediram demissão e passaram a dedicar-se integralmente ao jornal comunista, designados pelo PCB para a tarefa. Ali, viveu de tudo: não só formou uma geração de grandes profissionais, como enfrentou dois empastelamentos e outras invasões policiais.

Desde o início dos anos 1950, vinculou-se à militância no Sindicato dos Jornalistas, integrando as diversas diretorias, e ocupava a presidência da entidade quando morreu. Luís Henrique Dias Tavares o define como uma criatura única, a unir honradez, correção no comportamento, interesse, atenção e delicadeza para com os amigos e companheiros. Se houvesse alguma arrogância entre comunistas, e é possível porque do gênero humano, não era de modo nenhum o caso dele.

Muitos outros comunistas do período desenvolviam algum espírito de sacrifício, e eu diria: não por qualquer atitude de imolação, mas pelas dificuldades impostas pela conjuntura, por pertencerem a um partido perseguido, proscrito, pelos ideais abraçados. Abraçar tarefas do partido significava de pronto algum sacrifício.

Tavares cita dois momentos de sacrifício de Alberto Vita.

No primeiro, certo da escassez de seus ganhos em O Momento chama Jorgelita Müllen, sua noiva, e lhe diz, morto de amor estivesse, e estava, não ser possível o casamento. Liberou-a. Um enorme sacrifício, coração partido. Ela, então, morreu mais de amor, sorriu seu sorriso de mulher, e quis, mais e mais, tê-lo como o amor de sua vida, e da união nasceram cinco filhos.

No segundo, a atitude de cortar o almoço. Logo ele, um bom prato, dono de invejável apetite. Uma vez, numa das idas ao Rio de Janeiro, provavelmente para alguma atividade do PCB, experimentou todos os pratos do Restaurante Reis. Não pagou a refeição: venceu o desafio de comer todo o menu do estabelecimento, condição para o prêmio da gratuidade. E Tavares o viu passar depois disso a pão e café durante bom tempo.

Fernando Vita, o sobrinho, guarda na memória as tantas chegadas dele, roupas amolambadas, tentando escapar de prisões em Salvador. Aportava em Santo Antônio de Jesus, chamada por ele, o sobrinho, de “Todavia” em seus romances. Dista a 187 quilômetros de Salvador, hoje cidade com mais de 100 mil habitantes, à época, “Todavia” ainda, pequena e tímida, quando a luz elétrica se apagava às dez da noite e os fifós eram a saída para driblar a escuridão e aplacar o ímpeto de namoros atrevidos.

Não sei se Alberto Vita gostaria, mas Luís Henrique Dias Tavares, ao lembrar a morte dele, o chamará santo, sem ser santo, como acentuou. Santo por toda sua bondade e doçura, tipo especial de comunista.

Nasceu em 25 de outubro de 1922 no município de Jequiriçá, a 258 quilômetros de Salvador. Morreu no dia 2 de março de 1962. Ao olhar recortes da época falando da partida dele, impressiona o carinho de todos, as inúmeras manifestações provenientes das mais variadas correntes políticas, profissionais e culturais. A passagem de Vita pela vida foi marcada pelo cuidado nas relações, não deixando suas posições políticas, sua opção comunista, prejudicá-las.

Todas as manifestações falam da delicadeza, do temperamento manso, suave, justo ele, um comunista, a quem se atribuía sempre as maiores maldades, até comer criancinhas. Diziam do sorriso permanente, estimado assim por suas qualidades de caráter e de trato.

Penso, no entanto, ele teria gostado muito mais dissessem-no um comunista.

Um jornalista comunista.

Dissessem ter sido o jornal O Momento a principal escola jornalística de sua vida.

Dissessem dos ideais em defesa de uma sociedade socialista.

Falassem do horizonte comunista professado por ele.

Disso, nenhuma palavra.

Houve até ressalvas: apesar de suas convicções ideológicas, e aí seguiam-se elogios.

Se há o consolo de tanta saudação, e isso certamente o agradaria, há a lacuna, a falta, a falha jornalística de não cobrir a verdade de uma vida dedicada aos ideais comunistas, esconder essa verdade.

Cobrisse ele próprio a morte, como experiente secretário de redação, a condição de comunista estaria no lead porque fato, porque verdade. Não estava no lead e nem no corpo de qualquer matéria.

Há dúvidas de se, em algum momento, quando escapou do retrato do Jornal da Bahia, e tomou lugar numa cadeira da redação e passou a escrever numa das Olivetti, Vita não tenha corrigido esse erro, essa lacuna, não obstante toda a modéstia daquele escrevinhador das madrugadas.

Preferiu os ermos noturnos para não parecer estivesse puxando as orelhas de jornalistas experientes, porém, ele sabia, com visão toldada pelo anticomunismo, contaminados pela Guerra Fria. Verdade ou não tais incursões noturnas, seriam muito apropriadas nesse caso, e ninguém há de saber se aconteceram ou não…

Obs.: Ainda perseguindo a trajetória de Luís Henrique Dias Tavares, notável historiador baiano, na década como jornalista, contracenando aqui com um dos grandes da profissão, Alberto Vita. E o faço impulsionado pela minha chegada à Academia de Letras da Bahia, empossado em março deste ano de 2021, na cadeira número um, cujo antecessor foi exatamente o professor Luís Henrique. Ao fazê-lo, revelo alguns jornalistas de uma cepa única, rara. O historiador surgirá em outros artigos, inspirados sempre no meu discurso de posse.

Referências

DANTAS, Marcos Marcelo. Vita, o homem magnífico. Jornal da Bahia, Salvador, 4-5 mar.1962.

FALCÃO, João. Não Deixe Esta Chama se Apagar: História do Jornal da Bahia.  Rio de Janeiro: Revan, 2006.

FREITAS, Hygino de. Ainda, Vita. Jornal da Bahia, Salvador, 12 abr. 1962.

HENRIQUE, Luís. Alberto Vita. A Tarde, Salvador, 2 set. 1991.

HOMENAGEM a Alberto Vita. A Tarde, Salvador, 28 maio 1962.

JORNALISTA Alberto Vita sepultado ontem à tarde. Jornal da Bahia, Salvador, 3 mar. 1962.

TAVARES, Luís Henrique Dias. [Trajetória no jornal O Momento]. Entrevista concedida a Sônia Serra. Salvador, 30 ago.1984.

TODA a imprensa lamenta o falecimento de Alberto Vita. Jornal da Bahia, Salvador, 4-5 mar.1962.

VITA, Fernando. Sobre Meu Tio Alberto. Crônica. Salvador, ago. 2021. “não publicado”

*Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros

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