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sábado, 7 dezembro, 2024

A um passo da guerra comercial global

por Valentin Katasonov
A crise financeira de 2007-2009 efetivamente encerrou o processo de globalização. Em 2015 o comércio mundial caiu mais de 10% pela primeira vez desde 2009. Nada assim tinha acontecido desde a grande depressão de 1930. Mas alguns políticos, figuras públicas, estudiosos e jornalistas continuam a falar sobre a globalização como um processo “objetivo” e “progressivo” mesmo que ele já tenha terminado.
O mundo deu início a uma nova era. Um marco importante desta época é o fortalecimento do protecionismo no comércio internacional e no investimento, a fragmentação do mercado global em zonas económicas e até mesmo mudanças para regulamentar o comércio numa base bilateral. De acordo com a OMC, apenas no período entre outubro de 2015 e maio de 2016 os países do G20 aprovaram 145 leis destinadas a reforçar as barreiras ao comércio, mais 1500 destas leis foram adoptadas desde 2008. No total, de acordo com estimativas do renomado economista britânico Simon Evenett, existem perto de 4 000 leis e regulamentos protecionistas em todo o mundo. E os países do G20 – onde mais de 90% do comércio mundial tem origem – são responsáveis por 80% dessas barreiras comerciais.
Donald Trump saltou prontamente para este movimento com slogans de campanha prometendo revitalizar a posição dos EUA enfraquecida no comércio mundial utilizando principalmente medidas protecionistas:
Primeiro, ele pararia as negociações para estabelecer o acordo de Parceria Transatlântica entre os EUA e a UE e recusar-se-ia a ratificar o Acordo de Parceria Transpacífico já assinado.
Em segundo lugar, ele também iria encontrar uma maneira de sair do NAFTA ou rever completamente os termos deste tratado com as outras partes (Canadá e especialmente o México).
Em terceiro lugar, usaria acordos bilaterais para enquadrar o comércio americano e relações económicas com o resto do mundo, enquanto simultaneamente se afastaria de uma política de regulação multilateral ou mesmo global do comércio mundial (na medida em que os EUA estão prontos para recusarem tomar parte nos trabalhos da OMC).
Em quarto lugar, iria rever completamente os termos do comércio e das relações económicas dos EUA com a China aumentando o nível base dos direitos de importação sobre mercadorias chinesas para uma média de 45% e adotando medidas protecionistas em ligação com o que é conhecido como a guerra monetária de Pequim (o yuan artificialmente fraco em comparação com o dólar dos EUA).
Obviamente que o avanço persistente e impensado de um tal programa consistentemente protecionista poderia não só causar tensão nas relações com muitos parceiros comerciais de Washington, mas poderia também desencadear uma guerra comercial. Em junho, o presidente eleito dos EUA descreveu assim as relações económicas americano-chinesas, “já temos uma guerra comercial e estamos a perdê-la mal”. Na primavera de 2017, é provável estarmos a ouvir os seus primeiros passos práticos para reestruturar ou “ajustar” a política de comércio internacional de Washington.
Os mantras protecionistas de Trump já estão a ecoar pelo mundo. Parceiros comerciais dos EUA estão a considerar medidas de retaliação. Estão neste caso principalmente os países com os quais os EUA têm maiores défices comerciais. Em 2015, os maiores desequilíbrios de comércio dos EUA foram com os seguintes cinco parceiros comerciais: (em milhares de milhões de dólares) China – 365,7; Alemanha – 74,2; Japão – 68,8; México – 58,4 e Vietname – 30,9. A amplitude astronómica das atuais reservas de moeda estrangeira da China é o outro lado do excedente comercial que a China tem vindo a construir com os EUA. Durante os 15 anos da sua filiação na OMC, a China amealhou um saldo favorável de 3,5 milhões de milhões no seu comércio com os EUA.
As chamas de uma guerra comercial global podem reacender-se mesmo antes de Donald Trump se mudar para o salão oval da Casa Branca. Uma data muito importante é a de 11 de dezembro de 2016, memorável, pois faz 15 anos que a China se tornou membro pleno da OMC, em 11 de dezembro de 2001. Mas muitos esperam esta data com tensão e receio. Porquê? Porque de acordo com os termos do acordo assinado há 15 anos, a China vê garantido o seu estatuto de “economia de mercado” após 11 de dezembro de 2016. Um título que ainda lhe faltava.
De acordo com as regras da OMC, os Estados-membros desta organização podem tomar medidas para proteger seus mercados de produtos exportados por países que não são «economias de mercado». A ideia é que países aos quais não foi atribuído o estatuto de “economias de mercado” estão, de uma forma ou de outra, a apoiar os seus exportadores. Isto inclui diversos tipos de subsídios estatais, mesmo de forma sub-reptícia, tais como incentivos fiscais. A OMC vê assim as empresas públicas com as mais graves suspeitas. E isto descreve uma grande parte dos exportadores da China. Para se protegerem contra as exportações de tais países, os “civilizados” membros da OMC têm o direito de impor direitos anti-dumping, que frequentemente são várias vezes superiores às tarifas habituais.
Não é a OMC que toma a decisão de reconhecer o estatuto de “mercado” a uma economia centralizada – isso é determinado pelos Estados-membros individualmente ou grupos de países. Mas Pequim acredita que, nos termos do contrato de adesão de 2001 da China à OMC depois de 11 de dezembro de 2016 todos os membros da OMC têm de ajustar as suas relações com a China de forma a terem em conta que a China é agora uma “economia de mercado”. Por outras palavras, está previsto um mecanismo para impor automaticamente esta disposição.
No início desta década a União Europeia deixou claro a Pequim que a China estava ainda muito longe de ser uma “economia de mercado”. Ao longo destes anos a UE – detinha o recorde, entre todos os parceiros comerciais da China, de mais frequentemente aplicar direitos anti-dumping contra produtos chineses, especialmente os produtos da indústria siderúrgica da China. Durante o ano passado, Bruxelas repetidamente afirmou que a economia chinesa está ainda longe de ser uma economia “baseada no mercado” e, portanto, está fora de questão a China a receber automaticamente o estatuto desejado. Atualmente, a UE tem 68 medidas anti-dumping em vigor, 51 das quais contra produtos chineses. Esses direitos podem exceder 65% e são impostos a uma vasta gama de produtos, variando do aço a painéis solares.
As tensões estão, pois, a crescer, não só no relacionamento de Pequim com Washington, mas também com Bruxelas. No verão passado, a Associação Europeia de Aço, Eurofer, lançou uma declaração muito emocional, na qual mais uma vez exigiu que países europeus não reconhecessem a China como uma economia de mercado em nenhuma circunstância. Essa associação afirmou que desde 2008 a indústria siderúrgica europeia perdeu cerca de 85.000 empregos, mais de 20% da sua força de trabalho. De acordo com a Eurofer, nos últimos 18 meses a China duplicou as suas exportações de aço laminado para a UE. O relatório da Eurofer inclui uma avaliação não só da indústria do aço, mas também a toda economia da UE: devido ao aumento das importações de produtos chineses, a UE poderia perder até 3,5 milhões de empregos em 25 sectores depois de dezembro de 2016.
Mas não há consenso dentro da própria UE, sobre como proceder em relação à China. Em particular, países como Espanha e Itália são categoricamente contra a atribuição à China do estatuto de uma “economia de mercado”. A Alemanha é a favor, mas tem algumas reservas. O Reino Unido também foi a favor (sem reservas), embora ninguém na UE esteja mais interessado na sua opinião. Alguns burocratas da UE estão dispostos a aceitar a transição automática da China para esta nova categoria após 11 de dezembro, mas reservam o direito de recorrer a medidas antidumping contra produtos chineses em “casos excepcionais”. Representantes da indústria de metais ferrosos da UE só concordam com a atribuição à China deste novo estatuto se forem aceites os requisitos de eliminação da sua “capacidade excedentária” na produção de metais ferrosos. A Comissão Europeia (CE) estava disposta a permitir conceder à China automaticamente este novo estatuto, mas o Parlamento Europeu inesperadamente levantou-se em oposição à CE em maio passado quando aprovou uma dura resolução contra a China acerca do estatuto da sua economia.
Pequim, por sua vez, procura incentivar a UE a tomar decisões que sejam favoráveis à China. Às vezes emprega a cenoura (por exemplo, a redução do “excesso de capacidade” na indústria do aço) e às vezes a vara (“A Europa deveria pensar duas vezes antes de tomar uma decisão final sobre a economia de mercado da China”, advertiu a agência de notícias estatal Xinhua News face à resolução de maio do Parlamento Europeu).
Washington também procura tomar o pulso a este argumento. A China e os EUA são atualmente parceiros comerciais de dimensão aproximadamente igual para a União Europeia. Portanto, se a União Europeia reconhece de facto o estatuto de economia de mercado da China, o que irá remover o último obstáculo para a expansão da China na Europa, a posição do comércio dos EUA no mercado Europeu tomará em consequência um rumo pior.
Esta é atualmente uma altura do ano calma para a política em Washington. A Europa foi deixada sozinha para enfrentar a China e terá de tomar sua própria decisão sobre o estatuto da economia chinesa. No entanto, mesmo que Bruxelas consiga o seu veredicto com o apoio político do presidente americano (independentemente de ser Obama ou Trump), ainda será confrontada com a escolha entre uma opção má e uma muito má. Qualquer delas irá desencadear uma guerra comercial maior (global). Tendo em conta a mentalidade dos burocratas da UE, suspeito que eles arrastarão esta decisão crucial por um período indeterminado. Portanto, a União Europeia provavelmente vai reconhecer oficialmente o estatuto de economia de mercado da economia da China, mas com a reserva que em “casos excecionais” continuará a recorrer a medidas anti-dumping contra produtos chineses.
Acredito que no próximo Verão, quando Trump começar a tomar ações concretas em várias frentes, incluindo trabalhos para reestruturar nos seus fundamentos as regras que regem o comércio global, este período confuso nas relações Chino-Europeias terminará. É provável que seja seguido de uma acentuada crise no comércio e relações económicas entre a UE e a China, que intensificará uma guerra de comércio global.
Pontos quentes isolados que começam a estar latentes em diferentes partes do mundo, podem rapidamente convergir numa única, maior e global, guerra comercial.
P.S. O Congresso americano criou a Comissão de Revisão Económica e de Segurança EUA-China para se documentar com aconselhamento e investigação sobre estas matérias. Em 16 de novembro a Comissão emitiu o seu relatório anual de 550 páginas. Resumindo brevemente o conteúdo do relatório, a conclusão é clara:   a China ainda não se qualifica para o estatuto de “economia de mercado”.
12/Dezembro/2016
Ver também:
A crise sistémica global e algumas bofetadas desesperadas
O original encontra-se em www.strategic-culture.org/… . Tradução de DVC.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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