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sexta-feira, 22 novembro, 2024

UM MOMENTO SAIGON ASSOMA CABUL NO AFEGANISTÃO

– 12/agosto/2021, o dia em que os Talibã vingaram a invasão dos EUA e deram a bofetada que deitou abaixo o seu homem em Cabul

Por Pepe Escobar [*]

O Afeganistão quando ocupado pela OTAN.12 de agosto de 2021. A história irá registrá-lo como o dia em que os Talibãs – quase 20 anos após o 11 de Setembro e o subsequente derrube do seu reino de 1996-2001 através dos bombardeamentos americanos – deram o golpe decisivo contra o governo central em Cabul.

Numa guerra relâmpago (blitzkrieg) coordenada, os Talibãs capturaram praticamente todos os três polos cruciais: Ghazni e Kandahar, no centro, e Herat, no oeste. Eles já haviam capturado a maior parte do norte. Talibãs controlam 14 (itálico meu) capitais provinciais e a contagem continua.

Logo pela manhã, tomaram Ghazni, situada a cerca de 140 quilómetros de Cabul. A auto-estrada repavimentada está em bom estado. Não só os Talibãs estão cada vez mais próximos de Cabul: para todos os efeitos práticos, controlam agora a principal artéria da nação, a Auto-estrada 1 de Cabul para Kandahar via Ghazni.

Isto, por si só, já é uma mudança de jogo estratégica. Permitirá aos Talibãs cercar e sitiar Cabul simultaneamente pelo norte e pelo sul, num movimento em pinça.

Kandahar caiu ao anoitecer depois de os Talibãs terem conseguido romper o cinto de segurança em torno da cidade, atacando de várias direções.

Em Ghazni, o governador provincial, Daoud Laghmani, fez um acordo, fugiu e depois foi preso. Em Kandahar, o governador provincial Rohullah Khanzada – que pertence à poderosa tribo Popolzai – abandonou com apenas alguns guarda-costas.

Ele optou por um acordo elaborado, convencendo os Talibãs a permitir que os militares remanescentes se retirassem para o aeroporto de Kandahar e fossem evacuados por helicóptero. Todo o seu equipamento, armas pesadas e munições devem ser transferidos para os Talibãs.

As Forças Especiais Afegãs representavam a nata da colheita em Kandahar. No entanto, estavam a proteger apenas alguns locais selecionados. Agora, a sua próxima missão pode ser proteger Cabul. O acordo final entre o governador e os Talibãs deverá ser alcançado em breve. Kandahar caiu de facto.

Em Herat, os talibãs atacaram a partir do leste, enquanto o notório antigo senhor da guerra Ismail Khan, que liderava a sua milícia, travou um tremendo luta a partir do oeste. Os Talibãs conquistaram progressivamente o quartel-general da polícia, “libertaram” os prisioneiros e cercaram o gabinete do governador.

O jogo acabou: Herat também caiu com os Talibãs agora a controlarem todo o Afeganistão Ocidental, até às fronteiras com o Irão.

Ofensiva Tet, reencenada

Os analistas militares irão divertir-se desconstruindo este equivalente Talibã à Ofensiva do Tet de 1968 no Vietnã. A informação via satélite pode ter sido instrumental: é como se todo o progresso do campo de batalha tivesse sido coordenado de cima.

No entanto, existem algumas razões bastante prosaicas para o êxito da ofensiva, para além da sagacidade estratégica: corrupção no Exército Nacional Afegão; total desconexão entre Cabul e comandantes de campo de batalha; falta de apoio aéreo americano; a profunda divisão política na Cabul propriamente dita.

Paralelamente, os Talibãs têm estado secretamente a estender as mãos desde há meses, através de ligações tribais e laços familiares, oferecendo um acordo: não nos combatam e serão poupados.

Acrescente-se a isto um profundo sentimento de traição por parte do Ocidente sentido por aqueles ligados ao governo de Cabul, misturado com o medo da vingança dos Talibãs contra colaboracionistas.

Uma história muito triste, a partir de agora, refere-se ao desamparo de civis – sofrido por aqueles que se consideram presos em cidades que são agora controladas pelos Talibãs. Aqueles que conseguiram antes da ofensiva são os novos IDPs (Internally displaced person, pessoas deslocadas internamente), tais como os que se estabeleceram num campo de refugiados no parque Sara-e-Shamali em Cabul.

Uma nova geração de IDPs no Afeganistão

Circulavam rumores em Cabul de que Washington havia sugerido ao presidente Ashraf Ghani que se demitisse, abrindo caminho para um cessar-fogo e o estabelecimento de um governo de transição.

Oficialmente, o que foi declarado é que o secretário de Estado norte-americano Antony Blinken e o chefe do Pentágono Lloyd Austin prometeram a Ghani “continuar a investir” na segurança afegã.

Relatórios indicam que o Pentágono planeia reposicionar 3.000 tropas e fuzileiros navais no Afeganistão e outros 4.000 para a região a fim de evacuar a Embaixada dos EUA e cidadãos estado-unidenses em Cabul.

A alegada oferta a Ghani realmente teve origem em Doha – e proveio de gente de Ghani, como confirmei junto a fontes diplomáticas.

A delegação de Cabul, liderada por Abdullah Abdullah, o presidente de algo chamado Alto Conselho para a Reconciliação Nacional, via mediação do Qatar, ofereceu aos Talibãs um acordo de partilha de poder desde que eles parassem a ofensiva. Não há menção à demissão de Ghani, a qual é a condição número dos Talibãs para qualquer negociação.

A tróica ampliada em Doha está a fazer horas extras de trabalho. Os EUA alinham o objeto imóvel Zalmay Khalilzad, amplamente ridicularizado nos anos 2000 como “o afegão de Bush”. Os paquistaneses têm o enviado especial Muhammad Sadiq e o embaixador em Cabul Mansoor Khan.

Os russos têm o enviado do Kremlin ao Afeganistão, Zamir Kabulov. E os chineses têm um novo enviado afegão, Xiao Yong.

A Rússia-China-Paquistão estão a negociar tendo em mente a Organização de Cooperação de Xangai (SCO): todo os três são membros permanentes da mesma. Eles enfatizam um governo de transição, partilha do poder e reconhecimento dos Talibãs como uma força política legítima.

Diplomatas já estão a sugerir que se os Talibãs derrubarem Ghani em Cabul, por quaisquer meios, serão reconhecidos por Pequim como os governantes legítimos do Afeganistão – algo que criará mais uma frente geopolítica incendiária na confrontação contra Washington.

Tal como se põem as coisas atualmente, Pequim está apenas a encorajar os Talibãs a celebrarem um acordo de paz com Cabul.

O enigma do Pashtunistão

O primeiro-ministro paquistanês Imran Khan não poupou palavras quando entrou na briga. Ele confirmou que a liderança talibã lhe disse que não há negociações com Ghani no poder – mesmo quando ele tentou persuadi-los a alcançar um acordo de paz.

Khan acusou Washington de considerar o Paquistão como “útil” só quando se trata de pressionar Islamabad a usar a sua influência sobre os Talibãs para intermediar um acordo – sem considerar a “bagunça” que os americanos deixaram para trás.

Khan mais uma vez disse que “deixou muito claro” que não haverá bases militares dos EUA no Paquistão.

Esta é uma excelente análise de como é difícil para Khan e Islamabad explicarem ao Ocidente e também ao Sul Global o complexo envolvimento do Paquistão com o Afeganistão.

As questões chave são bastante claras:

  1. O Paquistão quer um acordo de partilha de poder e está a fazer o que pode em Doha, juntamente com a troica ampliada, para alcançá-la.
  2. Uma tomada de poder Talibã levará a um novo influxo de refugiados e pode encorajar jihadistas da al-Qaeda, TTP e espécimes do ISIS-Khorasan a desestabilizarem o Paquistão.
  3. Foram os EUA que legitimaram os Talibã ao efetuarem um acordo com eles durante a administração de Donald Trump.

O problema é que Islamabad simplesmente não consegue fazer passar estas mensagens.

E depois há algumas decisões desconcertantes. Tome-se a fronteira AfPak entre Chaman (no Balochistão paquistanês) e Spin Boldak (no Afeganistão).

Os paquistaneses fecharam o seu lado da fronteira. Todos os dias, dezenas de milhares de pessoas, esmagadoramente [das etnias] Pashtun e Baloch, de ambos os lados atravessavam para trás e para a frente junto com um mega-comboio de camiões a transportarem mercadorias do porto de Carachi para o Afeganistão, sem acesso ao mar. Encerrar uma fronteira comercial tão vital é uma proposta insustentável.

Tudo isto leva, sem dúvida, ao problema supremo: o que fazer em relação ao Pashtunistão?

O cerne absoluto da questão quando se trata do envolvimento do Paquistão no Afeganistão e da interferência afegã nas áreas tribais paquistanesas é a linha Durand, completamente artificial, desenhada pelo Império Britânico.

O pesadelo definitivo de Islamabade é uma outra partição. Os pashtuns são a maior tribo do mundo e vivem em ambos os lados da fronteira (artificial). Islamabad simplesmente não pode admitir uma entidade nacionalista dominando o Afeganistão porque isso acabará por fomentar uma insurreição pashtun no Paquistão.

E isso explica porque Islamabad prefere o Talibã em relação a um governo nacionalista afegão. Ideologicamente, o Paquistão conservador não é tão diferente do posicionamento Talibã. E em termos de política externa, o Talibã no poder ajusta-se perfeitamente à doutrina imutável da “profundidade estratégica” que opõe o Paquistão à Índia.

Em contraste, a posição do Afeganistão é bem definida. A Linha Durand divide pashtuns em ambos os lados de uma fronteira artificial. Assim, qualquer governo nacionalista em Cabul nunca abandonará o seu desejo de um Pashtunistão maior e unido.

Como os Talibã são de facto uma coleção de milícias de senhores da guerra, Islamabad aprendeu por experiência como negociar com eles. Virtualmente todo senhor da guerra – e milícia – no Afeganistão é islâmico.

Mesmo o atual arranjo com Cabul está baseado na lei islâmica e segue o aviso de um conselho Ulema. Muito poucos no Ocidente sabem que a lei da Sharia é a tendência predominante na atual constituição afegã.

Fechando o círculo, em última análise todos os membros do governo de Cabul, os militares, bem como uma grande parte da sociedade civil, vêm do mesmo quadro tribal conservador que deu origem aos Talibãs.

Para além da investida militar, os Talibãs parecem estar a vencer a batalha interna de relações públicas devido a uma simples equação: eles retratam Ghani como uma marioneta da NATO e dos EUA, o lacaio de invasores estrangeiros.

E fazer esta distinção no cemitério dos impérios tem sido sempre uma proposta vencedora.

[*] Jornalista.

O original encontra-se no Ásia Times e em thesaker.is/a-saigon-moment-looms-in-kabul/

Este artigo encontra-se em https://resistir.info

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