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domingo, 8 junho, 2025

Um mito duradouro acerca do capitalismo

Desemprego durante a depressão

Prabhat Patnaik [*]

Há certamente muitos mitos sobre o capitalismo, difundidos por economistas. Um desses mitos, propalado por David Ricardo, perdura há mais de dois séculos. Inicialmente, Ricardo havia sido um apoiante entusiástico da introdução da maquinaria, desdenhando o argumento das organizações de trabalhadores do seu tempo de que esta dava origem ao desemprego. No entanto, na terceira edição dos seus Princípios, acrescentou um capítulo intitulado “Sobre a maquinaria”, no qual concordava com as organizações de trabalhadores em que a sua introdução causava, de facto, desemprego imediato, mas argumentava que, como aumentava a taxa de lucro e, consequentemente, a taxa de acumulação e de crescimento, incluindo a taxa de crescimento do emprego, geraria, ao longo do tempo, um emprego ainda maior do que o que teria ocorrido de outra forma.

Esta afirmação de Ricardo, que Marx criticou duramente nas suas Teorias da Mais-Valia, é obviamente incorreta por várias razões. Em primeiro lugar, toda a discussão de Ricardo girava em torno de uma introdução pontual de maquinaria; mas, numa economia capitalista, a mudança tecnológica é um fenómeno contínuo, sendo a introdução de um conjunto de maquinaria seguida pela introdução de outro, e ainda outro. Por conseguinte, mesmo partindo do princípio de que a taxa de lucro e, por conseguinte, a taxa de acumulação e de crescimento do emprego continuam a aumentar com este progresso tecnológico, o dia em que o desemprego gerado por esta mecanização será finalmente totalmente absorvido também continua a ser cada vez mais adiado.

Em segundo lugar, toda a argumentação ricardiana parte do princípio de que a lei de Say é válida, ou seja, que nunca existirá qualquer problema de procura agregada. Por outras palavras, todas as poupanças, que são iguais aos lucros não consumidos (presume-se que todos os salários são consumidos), são investidas; o investimento nunca deverá ser limitado pelo crescimento do mercado, o que, por sua vez, pressupõe que não existe outra forma de detenção de riqueza, ou seja, a moeda não é uma forma de detenção de riqueza. Isto é irrealista e logicamente inválido.

Uma vez reconhecido que o investimento é regido pelo crescimento do mercado, segue-se que uma mudança de salários para lucros causada pela introdução de maquinaria reduzirá a taxa de acumulação. Como a introdução de maquinaria causará imediatamente um aumento do desemprego, os salários não aumentarão mesmo que a produtividade do trabalho aumente através da mecanização; isto causará uma deslocação dos salários para os lucros. Uma vez que os salários são mais ou menos totalmente consumidos, ao passo que apenas uma pequena parte dos lucros o é, essa transferência dos salários para os lucros tende a reduzir o rácio do consumo no rendimento total, provocando uma tendência para a sobreprodução, o que, na realidade, faz baixar a taxa de acumulação.

Assim, longe de aumentar a taxa de crescimento do emprego, como defendia Ricardo, a introdução de maquinaria tenderá a reduzir a taxa de crescimento do emprego. É claro que pode haver períodos em que a taxa de acumulação pode aumentar por razões independentes e, se esses períodos forem marcados pela ausência de novas introduções de máquinas ainda mais recentes, então o nível de desemprego pode efetivamente diminuir; mas essas reduções no desemprego não são causadas per se pela introdução inicial de máquinas. Podemos, portanto, dizer com certeza que não há absolutamente nenhuma razão para acreditar que a introdução de máquinas irá, mesmo durante um período de tempo, superar por si própria o desemprego que inicialmente cria.

No entanto, o quadro pintado por Ricardo passou a ser aceite como uma caraterística geral do capitalismo, segundo a qual, independentemente das dificuldades que possa causar no início, acabará por trazer maior prosperidade para todos. No entanto, isto não é verdade:   as dificuldades que causa inicialmente, como vimos, por si mesmas nunca tenderão a ser melhoradas ao longo do tempo; não há absolutamente nada na dinâmica interna do capitalismo que contribua para a superação dessas dificuldades iniciais.

Coloca-se então a questão:   como explicar que na região do mundo onde o capitalismo teve origem e continua a ser a sua base, nomeadamente a Europa Ocidental, se tenha verificado uma melhoria efetiva das condições de vida das populações em relação aos primeiros anos do capitalismo? Como conciliar este fenómeno observado com o argumento teórico de que as dificuldades iniciais causadas pelo capitalismo, longe de serem revertidas, têm tendência para se agravarem por si próprias ao longo do tempo?

Há duas circunstâncias históricas associadas ao desenvolvimento do capitalismo que explicam este quebra-cabeças. A primeira é a emigração maciça de população da Europa para as regiões temperadas do mundo, como o Canadá, os Estados Unidos (como se tornaram mais tarde), a Austrália, a Nova Zelândia e a África do Sul. Estas tornaram-se as “colónias de povoamento”, ao contrário das “colónias de conquista”, como a Índia, a Indonésia ou a Indochina. Nas colónias de povoamento, os imigrantes ocuparam as terras que pertenciam aos habitantes originais e obtiveram um nível de rendimento mais elevado através do seu cultivo, o que aumentou o “salário de reserva” dos trabalhadores na Europa, ou seja, o salário mínimo que os trabalhadores podem obter. Deste modo, tanto o nível de emprego como a taxa de salário aumentou nos seus países de origem, muito acima do que teriam sido de outro modo, anulando assim o efeito adverso da mecanização sobre o emprego.

A escala da emigração da Europa foi maciça em relação à sua população. Durante o “longo século XIX” (que se estendeu até à Primeira Guerra Mundial), calcula-se que cinquenta milhões de pessoas emigraram da Europa para as regiões temperadas de colonização europeia. Para a Grã-Bretanha, o local original da Revolução Industrial, onde as máquinas fizeram a sua primeira aparição, a escala da migração anual foi tão grande que cerca de metade do aumento natural da população deixou as suas costas. A emigração em tal escala e durante um período tão longo introduziu um aperto no mercado de trabalho, enviando os desempregados para o estrangeiro. Foi este fator de expansão externa, mais do que qualquer dinâmica interna do capitalismo, que assegurou que o desemprego inicial criado pela introdução da maquinaria, longe de se agravar ao longo do tempo, fosse de facto atenuado.

O segundo fator que funcionou no mesmo sentido foi o fenómeno da desindustrialização das exportações de produtos manufaturados para as colónias de conquista que já produziam esses produtos. Assim, o desemprego gerado pela introdução da maquinaria não se confinou apenas à economia nacional; uma grande parte dele ocorreu fora, nas colónias de conquista. E, ainda nos dias de hoje, constitui as grandes reservas de mão-de-obra do Sul global.

É porque geralmente não vemos estas reservas como resultantes da mecanização introduzida pelo capitalismo industrial na metrópole, e nos concentramos apenas no desemprego gerado dentro da própria metrópole, enquanto avaliamos o efeito da mecanização, que efetivamente se reduziu através da emigração, que ficamos com a impressão de que esse desemprego desaparece com o tempo através da dinâmica interna do capitalismo. De facto, esse efeito da dinâmica interna do capitalismo não existe.

Tudo isto tem implicações extremamente importantes para o Sul global atual. É aceite como verdade evangélica, e vendida como tal pelo Banco Mundial, pelo FMI e por outras agências do género, que a prossecução de um capitalismo desenfreado pelos países do Sul global iria ultrapassar o seu desemprego e pobreza. O exemplo da Europa Ocidental é dado em apoio a esta afirmação. No entanto, esta é uma leitura totalmente errada da teoria e da história do capitalismo.

Os primeiros planeadores indianos, como P. C. Mahalanobis, estavam bem cientes deste facto. Não só queriam um regime dirigista em vez de um regime capitalista desenfreado para o desenvolvimento da nação, como também, mesmo dentro do regime dirigista, queriam proteção para as indústrias artesanais e de pequena escala. Mahalanobis, para além da sua conhecida ênfase na indústria pesada, tinha um elemento adicional na sua proposta para o segundo plano quinquenal da Índia. Tratava-se de reforçar a disponibilidade de bens de consumo, criando simultaneamente emprego na economia, através de uma expansão das indústrias artesanais e de pequena escala. Ideias muito semelhantes de “andar sobre duas pernas” estavam a ser desenvolvidas na mesma altura na China, o outro grande país populoso do Sul global, para ultrapassar o seu problema de desemprego e pobreza herdado dos tempos coloniais e semi-coloniais.

É lamentável que o debate económico no país tenha atingido hoje um nível tão jejuno que se reciclam mitos de duzentos anos atrás sobre o capitalismo, sustentados por todo o tipo de falsas alegações sobre o desaparecimento da pobreza no Sul global. Quanto mais depressa abandonarmos esses mitos, melhor.

08/Junho/2025

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2025/0608_pd/enduring-myth-about-capitalism

Este artigo encontra-se em resistir.info

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