“Ouvimos as vozes da floresta, só nos sentimos bem se ficarmos à sua escuta e compreendermos tudo o que ela diz” (Davi Kopenawa. 2023).
Crianças Huni Kuĩ da escola indígena da aldeia Arco-Íris, no alto rio Tarauacá (Acre), estão aprendendo a conversar com a floresta. Sua professora é Txima Inani Bake, matriculada no Curso de Licenciatura Indígena da Universidade Federal do Acre (UFAC), campus Floresta, em Cruzeiro do Sul, com o nome de Duzilda Pinheiro Paulino. No debate ao final da aula inaugural “Línguas e Narrativas Indígenas”, que citou Davi Kopenawa, ela se sentiu reforçada em sua prática e revelou:
– Vi que é correto o que faço ao ensinar na escola as linguagens da floresta para as crianças entenderem os pássaros e as árvores, o que dizem seus cantos e suas folhas e até seus gritos de dor durante desmatamentos e queimadas. Os pássaros nos avisam sobre a chegada de algum parente, a proximidade de certos animais ou a hora do dia. As folhas das árvores nos anunciam as ventanias e a chuva. Mas é preciso entender suas linguagens para ficarmos conectados.
Convém perguntar: em que medida a metodologia de Txima, que devia ser generalizada, é usada por cerca de 200 docentes das mais de 100 escolas Huni Kuĩ? Não é fácil dialogar com a floresta amazônica, que é poliglota e fala milhares de línguas. São mais de 1.300 espécies de aves, 427 tipos de anfíbios, 425 classes de mamíferos, além de 50 mil espécies de plantas até hoje conhecidas e catalogadas, que compartilham o território com os Huni Kuĩ.
Ouvir as vozes da floresta depende da competência na língua ancestral, que registrou esses saberes e faz parte da biofonia florestal nos rios Juruá e Purus. Acontece que em metade das 12 terras Huni kuĩ do Acre, só os velhos falam a “língua verdadeira, de gente” – diz Joaquim Kaxinawá em tese de doutorado sobre a Gramática da LínguaHãtxa Kuĩ defendida na UnB. Crianças e jovens falam português como primeira língua em decorrência da violência histórica que sofreram.
Tempo das correrias
A invasão do território, a matança e escravização de indígenas na exploração dos seringais, marcaram o fim do longo Tempo das Malocas na periodização estabelecida no livro Índios no Acre escrito por professores bilingues. O Tempo das Correrias seguido do Tempo do Cativeiro foram de extrema violência. Felizardo Cerqueira “amansava” os índios, picava o braço deles com agulha e passava tinta preta de jenipapo misturada com pólvora, tatuando-os com as letras FC para os outros “patrões” saberem que eram “propriedades” suas.
– Eu tinha o hábito de marcar todos os índios com as letras FC e o número de ordem com que foram amansados – escreveu em seu relatório o seringalista Felizardo, um dos patrões mais “bonzinhos”, pois havia outros medonhos ainda piores. O antropólogo Terri Aquino fotografou o braço do velho Regino Kaxinawá com esta marca, também gravada em Nicolau, Chico Curumim, Romão Sales, Valdemar Damião e outros velhos Huni kuĩ, conhecidos então como Kaxinawá.
O território Huni kuĩ, que já estava ocupado em 1913, no final do ciclo da borracha, por 100 mil migrantes nordestinos, foi recuperado gradualmente na nova era – o Tempo dos Direitos – inaugurado com a Constituição de 1988. Hoje, eles vivem no Tempo do Governo dos Índios e constituem a mais populosa nação indígena das 16 existentes no Acre. Somavam no Brasil, em 2020, 11.729 pessoas, conforme dados da área de saúde (Siasi/Sesai) e 2.419 na Amazônia Peruana, (Censo Nacional do Peru 2017).
A história vivida nesses diferentes períodos aparece nas entrelinhas do depoimento bilingue de Txima para o projeto cartografias amazônicas da Universidade Federal do Pará (UFPA).
O alfabeto kene
Nascida no dia 5 de maio de 1998 na aldeia Altamira, filha de Kupi Inu Bake e de Pãteani Banu Bake, Txima é casada, tem três filhas e aos 26 anos está grávida de dois meses de mais uma criança. Reside hoje na aldeia Arco-íris do Alto Rio Tarauacá, na Terra Indígena Seringal Independência do município Jordão.
Com pintura facial e trajando roupa de tecidos coloridos, ela gravou seu depoimento na língua materna Hãtxa Kuĩ, da família Pano, que em seguida traduziu ao português:
– Todo trabalho nosso é ligado à natureza. Tudo o que nós sabemos nos foi ensinado por animais e vegetais, por isso somos gratas a eles, de quem precisamos para sobreviver. Entendemos a linguagem da floresta, que recupera os nossos mitos através do artesanato.
Txima pesquisa os kenes, que são os grafismos sagrados de seu povo, expressão exclusiva das mulheres, cujos padrões geométricos são usados nas tecelagens, em artesanatos e nas pinturas corporais e já percorreram o mundo em diversas exposições, uma delas na Sala do Artista Popular no Museu do Folclore do Rio de Janeiro, em 1999, com catálogo que registra os 25 kene do corpo de uma jiboia.
– Da mesma forma que as pessoas, esses kene vão se casando uns com outros para dar à luz novos kene, como as letras do abecê que se juntam em inúmeras combinações e conseguem parir palavras diferentes. Por isso, comparo o kene com o alfabeto, capaz de criar um número infinito de palavras, cada uma com nome e significado diferente. “O kene é, além de desenho, escrita” – foi o que disse o pesquisador Huni kuĩ Agostinho Muru citado no catálogo, com palavras aqui ligeiramente “enfeitadas”.
A origem do kene
Uma narrativa mítica sobre origem do kene foi contada por Txima, que registrou sua versão, na qual os personagens centrais são Yube – a jiboia encantada e Siriani – uma jovem Huni kuĩ.
Siriani vai tomar banho no igarapé e no meio do caminho encontra a jiboia, com o corpo cheio de desenhos. A jovem fica deslumbrada com o que vê. Ao retornar, a cobra havia se transformado em um homem com o corpo todo pintado com os mesmos kene. Ele pingou um colírio feito com uma planta sagrada nos olhos de Siriani e lhe disse:
– Cada ser tem sua própria pintura, que fica invisível. Mas agora você pode ver.
Siriani começou a enxergar os kene dos animais e das plantas, aprendeu a desenhá-los e ensinou a seu povo, a quem deixou um legado: hoje os desenhos geométricos do kene com representações de plantas e animais constituem marca identitária dos Huni kuĩ. Cada grafismo tem um significado, uma história e traz força, energia. As estampas do macaco trazem agilidade e poder; as da curica ou papagaio-do-mangue, o vigor do fogo, a determinação, a inteligência e a coragem; a arara, a melodia da voz e a beleza. E assim por diante.
O conhecimento do kene permite que os Huni kuĩ executem vários padrões nas pinturas corporais e em diversos suportes ou matérias-primas com que confeccionam diferentes objetos: cestaria, cerâmica, pratos, cestos e redes tecidas com fios de algodão, mantas, chapéus, mochilas, tipoias para carregar os filhos. O kene é um arquivo que guarda histórias, rituais, cantos sagrados, danças.
– A aranha é a dona do algodão. Ela nos ensinou a tecelagem e, quando vestimos roupa artesanal desenhada com os kene, sentimos sua energia e força – disse Txima.
Floresta poliglota
Outros povos, como os Yanomami, também “mantém um diálogo constante com a multiplicidade de vozes da floresta”, segundo Davi Kopenawa citado por Bruce Albert no artigo A floresta poliglota. Os cantos, gritos e chamados de inúmeros pássaros, mas também de batráquios e insetos formam a “grande orquestra animal”, que revela a presença na floresta de frutas, de plantas, de presas, emitindo sinais sonoros de caça, com previsão de mudanças climáticas e ecológicas.
Os Yanomami traduziram as falas de uma longa lista de vocalizações de cada animal que “constituem formas de linguagem equivalentes às da gente humana” e permitem estabelecer conversas, diálogos, cerimoniais, cantos, lamentações. Esta “encenação sonora” de conversas na forma de séries de onomatopeias e de diálogo humanos dão conta da “riqueza do despertar progressivo dos cantos e dos chamados dos animais na aurora”.
Um exemplo é o relógio dos Huni kuĩ, no Tempo das Malocas, que marcava as horas ouvindo a floresta:
– São três horas da madrugada – anuncia o sereno espesso que cai do céu.
– Deu 5h00 horas – canta o jacu, que acabou de despertar.
As diferentes posições do sol e as aves indicam as horas seguintes. Quando o gavião branco pia dando voltas no céu, são 10h00. Às 17h00 os maracanãs se retiram para dormir, às 18h00 cantam os nambus, às 19h00 é a vez do gorjeio da corujinha conhecida como caburé. A coruja maior vai se manifestar às 22h00 e o jacamim, às 23h00.
O sofrimento das flores
Os analfabetos da oralidade, que desdenham quem antropomorfiza a natureza e luta pelos direitos de seres vivos em qualquer ecossistema, consideram “loucas” as pessoas que mantém uma escuta ativa de animais e plantas, como observa com propriedade Gabriel Garcia Marques na crônica “Cómo sufrimos las flores” (9/12/1981).
Baseado no texto de um biólogo sobre a alma das plantas, o escritor colombiano nos assegura que as flores adoram música, têm memória e, quando dentro de casa, fazem parte do núcleo familiar e até sofrem com as brigas de casais. O escritor recebeu telefonema de um amigo, que lhe perguntou sobre o tema da próxima crônica:
– Estoy escribiendo sobre el sufrimiento de las plantas y las flores.
– ¡Ah, carajo! ¿No te estarás volviendo maricón?
O homofóbico, que tinha a intenção de assim menosprezar as conversas com plantas e animais, não desconfiava que se tratava de um elogio à sensibilidade de seu autor.
P.S. As outras quatro narrativas gravadas, que merecem uma resenha, foram: 1) Sabá Manchineri: O mito do caçador canibal. 2) Sheré Noke Kuĩ (Katukina): As rezas sagradas e a cura dos doentes; 3. Siná Yawanawa: Os mitos orientadores da arte; 4. Siã Inu Bake Huni Kuin (Marcos): O ayahuasca e a medicina tradicional. O artista plástico Cledeilton Huni Kuĩ também está produzindo uma narrativa gráfica sobre o Tempo das Correrias.
Referências:
1. Txima Inani Bake (Duzilda Pinheiro Paulino): Narrativa gravada em vídeo para o projeto da UFPA Poéticas da Oralidade Indígena no Contemporâneo: Cartografias Amazônicas”. UFAC. Campus Floresta. Cruzeiro do Sul. 2024.
2.Joaquim (Maná) Paulo de Lima Kaxinawá.Para uma Gramática da Língua Hãtxa Kui. 2012. Tese de Doutorado em Linguística. UnB. Brasília. 2012.
3.OPIAC – Organização dos Povos Indígenas do Acre: Índios no Acre – História e Organização. 2ª edição. Rio Branco, CPI-AC. 2002. (Obra coletiva escrita por 62 professores bilingues que ouviram mais de 30 velhos de 9 etnias).
4. Ibã Huni Kuĩ (Isaías Sales): Vídeo O Espírito da Floresta (Dir: Amilton Mattos). Movimento dos Artistas Huni Kuĩ (MAHKU). I Encontro de Artistas-Desenhistas Huni Kuĩ. Cruzeiro do Sul. UFAC Floresta.2011.
5.Marcelo Piedrafita Iglesias: Os Kaxinawá de Felizardo: correrias, trabalho e civilização no Alto Juruá. Tese de Doutorado em Antropologia Social. Rio. Museu Nacional UFRJ. 2008
6.Dedé Maia (org): Catálogo Kene, a arte dos Huni Kuĩ. Rio. CNFCP. 1999.
7. Terri Valle de Aquino: Kaxinawá: de seringueiro caboclo a peão acreano. Dissertação de Mestrado em Antropologia. UnB. Brasília. 1977
8.Els Lagrou: A fluidez da forma: Arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawá-Acre). Rio. Topbooks., 2007
9. Nietta Lindenberg Monte: Escolas da Floresta: entre o passado oral e o presente letrado. Rio. Multiletra. 1996.
10. Bruce Albert e Davi Kopenawa. O Espírito da Floresta. São Paulo. Cia. Das Letras. 2023.
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