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quinta-feira, 25 abril, 2024

TODAS AS COISAS RUINS QUE ACONTECEM VÊM DE PESSOAS CIVILIZADAS

Indígenas protestam em Brasília contra o PL 191/2020 (Crédito: Mídia Ninja)
Por Marcilia Brito/Le Monde Diplomatique

Os povos originários estão há muito tempo nos alertando dos efeitos da ação humana civilizatória destrutiva sobre o planeta

[…] todas as coisas ruins que estão acontecendo no planeta Terra vêm de pessoas civilizadas, pessoas que não são, teoricamente, selvagens.

Se fizéssemos um estudo antropológico na cultura de vocês, teríamos qualificações e um respaldo maior para conseguir convencer muitas pessoas a se tornarem selvagens, a se tornarem pessoas não tão intelectuais, não tão importantes.

Jerá Guarani1

 

Nós, seres civilizados, perdemos a capacidade de ver o todo e nos enxergar como parte da natureza, nos pensamos seres independentes e superiores ao que chamamos de meio ambiente. Criamos até uma palavra para designar as pessoas que se preocupam com a saúde do planeta: os ambientalistas. E uma expressão para designar um possível tipo de vida que não extermine as demais aqui existentes e que preserve o que resta da Terra para as futuras gerações: o desenvolvimento sustentável.

Sem natureza, não há vida. Essa frase soa um jargão, um clichê que os ambientalistas não param de repetir, por isso, parece óbvia, mas infelizmente o não é. Embora diversos cientistas afirmem estarmos diante do que denominam cataclismo global, boa parte das pessoas ainda não compreendeu o nível de degradação e as ameaças que o planeta sofre com esse sistema.

Por outro lado, os povos originários estão há muito tempo nos alertando dos efeitos da ação humana civilizatória destrutiva sobre o planeta.

A população nativa deste território, apesar do genocídio que sofrem e continuam sofrendo ao longo dos últimos 520 anos, está presente em todos os estados do que hoje chamamos Brasil e sua existência é a última barreira entre a natureza e a ação predatória do modo de produção em que vivemos. Por isso, defender o modo de vida tradicional dessas populações é imperativo para que tenhamos alguma chance de barrar as causas e as consequências de séculos de destruição.

Segundo o IBGE, existem 800 mil pessoas de 305 etnias originárias no país, que falam 274 idiomas diferentes. No entanto, segundo a liderança indígena e membro da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Sonia Guajajara, o número está desatualizado. Levantamento mais recente de entidades indigenistas aponta que a população chega a 1,3 milhão de pessoas.

Apib, criada durante o Acampamento Terra Livre de 2005, é uma frente nacional que promove e defende os direitos indígenas, a partir da articulação e união entre os povos e organizações de diferentes etnias. Ela congrega as cinco regiões do país, sendo que cada região possui organizações macrorregionais autônomas e independentes, como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), a Articulação dos Povos Indígenas das regiões Nordeste, Sudeste e Sul (Apoinme, Arpinsudeste e Arpinsul), o Conselho do Povo Terena, a Grande Assembleia do povo Guarani (ATY Guasu) e a Comissão Guarani Yvyrupa.

Nos últimos meses, em decorrência da pandemia, essa importante entidade para a organização da resistência indígena tem feito uso maciço das tecnologias e das redes sociais para denunciar os ataques, articular nacional e regionalmente as medidas de proteção a serem tomadas nas aldeias e as lutas que estão sendo travadas no âmbito da saúde indígena, visando diminuir o impacto da doença sobre população já tão vulnerável.

No entanto, neste momento, a situação, tanto os que vivem em aldeias, como dos que vivem na cidade, é extremamente preocupante.

Sônia Guajajara denuncia que não há estrutura de atendimento na maior parte das aldeias e que as pessoas precisam se deslocar até a cidade para ter acesso à saúde. No entanto, os povos mais isolados podem demorar até dez dias de barco para chegar e em alguns casos necessitam até de transporte aéreo.

Desde o início da pandemia as entidades indígenas reivindicam ao poder público a elaboração e implementação de planos de contingência consistentes, além da retirada de invasores e a proteção efetiva dos territórios demarcados.

Entretanto, o Estado, até o momento, não só não fez nada para impedir a contaminação e a morte nas aldeias, como, na prática, toma medidas para acelerá-las.

As políticas defendidas e colocadas em prática por esse governo ocasionaram desmantelamento dos órgãos indigenistas, além do enfraquecimento da fiscalização ambiental, que na prática autorizaram a grilagem e as invasões aos territórios. Por isso, o desmatamento das florestas aumentou, a mineração ilegal avançou dentro das terras indígenas e os missionários fundamentalistas religiosos foram incentivados por ministros bolsonaristas a impor a religião e a promover um processo de aculturação de povos que optaram por ficar isolados.

Até o momento, morreram cerca de duas centenas indígenas idosos, e tendo em vista que a cultura da maioria dos povos é oral, perder anciãos causa um impacto enorme na transmissão do conhecimento e da memória indígena, além de poder ocasionar o desaparecimento de línguas. Essa é também uma estratégia de destruição muito eficaz, como se estivessem queimando as bibliotecas dos povos indígenas.

A essa altura, já está claro que não existe interesse do governo em preservar o modo de vida tradicional porque este não quer que o povo originário habite seu território de uma maneira que foge à lógica da mercantilização da vida e vai na direção oposta aos interesses do agronegócio e das grandes indústrias. Com um discurso abertamente anti-indígena, o governo e os ministros que o compõem, dão carta branca aos invasores para desmatar e explorar as reservas e seus recursos naturais. Enquanto isso, assistimos florestas queimarem, rios secarem e animais morrerem carbonizados, de sede ou de fome.

Muitos habitantes das grandes cidades pensam que ela é autossuficiente, não se questionam sobre de onde vêm os alimentos e a água, não conseguem enxergar para além do supermercado e da torneira de casa. Parece que a alienação é o preço que se paga por se viver nesta civilização.

O desenvolvimento, em nossa visão distorcida, é sinônimo de destruição, desmatamento para o avanço das cidades, da monocultura, dos pastos e da extração de madeira e minério, além do desvio e aterramento de rios para a construção de grandiosas obras da arquitetura.

Convencionamos chamar a natureza de “recursos naturais” para que pudéssemos utilizá-los sem culpa e sem responsabilidade, da maneira que nos conviesse. Servimo-nos da natureza como se ela sempre houvesse estado ao nosso dispor e fosse durar para sempre. Não percebemos que nossa existência neste planeta é completamente dependente dela, e não o contrário, porque dela somos parte e não patrões.

A contaminação e a morte da população indígena, assim como a destruição das matas, não podem ser tratadas como uma tragédia inevitável quando, na realidade, são explicitamente uma política do Estado. Não se trata apenas de um governo omisso em relação à proteção do meio ambiente e dos povos indígenas, mas um governo que tem como objetivo extinguir esse modo de existência que não se encaixa em seu projeto de destruição.

*Marcilia Brito, mestranda em Economia Política Mundial, feminista e militante da causa indígena, é produtora de conteúdo, curadora de artes e educadora.

1 Jerá Guarani. Tornar-se selvagem. Piseagrama, Belo Horizonte, n.14, p.12-19, 2020.

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