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quinta-feira, 3 outubro, 2024

Sobre um campo de tortura na Base Aérea de Natal

Roberto Amaral*

O inventário dos crimes contra a vida e a dignidade humanas cometidos por oficiais das  forças armadas brasileiras no curso das duas últimas ditaduras, o Estado Novo (1937-1945), e o mandarinato de 1964-1985, pode sugerir que as prisões arbitrárias, as torturas e os assassinatos são crimes militares restritos aos anos de terror.  A ignomínia, porém, muito cedo sentou praça em nossas fileiras. As insurreições, levantes e insurgências populares que palmilham nossa história, da Colônia à República, foram reprimidas com extrema violência. O único levante vitorioso foi a “revolução” de 1930 – um dissídio da classe dominante levado a cabo por três governadores de Estado e meia dúzia de oficiais superiores, que não conheceu resistência ou enfrentamento no longo passeio de trem que trouxe Getúlio Vargas e seu estado-maior do Palácio Piratini ao Catete, no Rio de Janeiro. As “pacificações” do Império, que com tantos títulos ornaram o Duque de Caxias, foram levadas a cabo a ferro e fogo. A guerra do Paraguai não pode afagar nossos brios, quando as tropas brasileiras terminaram lutando contra adolescentes, mulheres  e idosos. Muito menos nos honra o massacre, nos primeiros anos da república,  (de algo como 20 mil sertanejos famélicos reunidos no Arraial de Canudos por Antônio Conselheiro, assim registrado por Euclides da Cunha n’Os sertões:

“Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.”

A Marinha sempre cultivou, desde a independência em 1822, a sevícia dos praças negros e mulatos, como direito dos oficiais brancos, rompida apenas após a Revolta da Chibata (1910), movimento de marinheiros liderado por João Cândido, conhecido como “almirante negro” (uma boa fonte é a reportagem de Edmar Morél: A revolta da chibata, Rio de Janeiro, 2ª ed., 1986. Sobre as sevícias de que eram vítimas os marujos negros embarcados em nossos navios de guerra, sugiro a leitura de O bom crioulo, de Adolfo Caminha). O levante foi sufocado. Os marinheiros, embora anistiados, foram expulsos da Marinha e presos, uns trancafiados nos calabouços da Ilha das Cobras, outros enviados para trabalhos forçados na construção de ferrovia no Acre, um sem-número deles assassinado. Era o preço cobrado pela república para abolir os castigos corporais. Nas escolas de aprendizes marinheiros espalhadas pelo país, porém, a educação dos grumetes continuou ao encargo do relho e a da palmatória.

Durante a campanha pelo petróleo, já após a constitucionalização de 1946, estudantes, intelectuais e líderes de esquerda foram presos e torturados, e muitos assassinados. A repressão se instalara sob o general Eurico Dutra,  primeiro presidente eleito após a queda da ditadura Vargas e o regresso ao Brasil dos “pracinhas” que na Itália haviam combatido o fascismo em seus estertores. O antigo ministro da Guerra do Estado Novo (conhecido por suas tendências germanófilas), agora presidente em uma democracia, associava nossos destinos aos interesses dos EUA, a grande potência nuclear que emergia das cinzas da Europa derrotada. Em nome dos ditames da Guerra Fria, inaugurada naquela altura, o governo brasileiro subordina nossos interesses aos reclamos econômicos e geopolíticos dos EUA, em luta contra a emergente União Soviética (que explodiria sua primeira bomba atômica em 1954) e o espantalho da “expansão comunista”.  O governo Dutra participa da Guerra Fria levando a cabo uma razia anticomunista – e “comunistas” eram muitos brasileiros, pois, sob este título, a repressão civil e militar alinhava todos os que se enfileiravam seja na campanha pelo monopólio estatal do petróleo (que contrariava os interesses das grandes companhias norte-americanas e britânicas), seja os que combatiam a carestia e os que defendiam a paz. O Brasil de Dutra rompe relações com a URSS, cassa o registro do Partido Comunista (que assim retorna à ilegalidade) e os mandatos de seus parlamentares. No governo democrático de Getúlio Vargas (1951-1954), os comunistas – que então lutavam contra o envio de tropas brasileiras para a guerra da Coreia e a ratificação do acordo militar Brasil-EUA firmado por Vargas – voltam a ser vítimas da repressão militar, desta feita levada a cabo pela Aeronáutica. É a história de um campo de concentração e torturas instalado em 1953 na Base Aérea de Natal resgatada pelo Centro de Direitos Humanos e Memória Popular (Campo de concentração no RN – Torturas na Base Aérea de Natal- 1952-1953, Editora Potiguariana, disponível em www.dhnet.org.br).

Esse precioso livro, como nos adiantam seus organizadores, “fala de torturas, de torturados e de torturadores” e descreve a mais íntima dor dos supliciados, indefesos, impotentes diante da brutalidade sem limites,  seviciados fisicamente, ofendidos e humilhados moralmente em níveis de sadismo que só a loucura do torturador – reduzido à sua bestialidade – pode justificar.

Campo de concentração no RN nos traz, dentre outros documentos pungentes, uma carta de um dos torturados, o dr. Vulpiano Cavalcanti, médico em Natal, dirigida em 4 de junho de 1953 ao general Arthur Carnaúba, presidente da Associação de Defesa dos Direitos do Homem; relata as torturas e sevícias a que foram submetidos vinte e seis brasileiros sequestrados, porque recolhidos ao quartel-tortura da Base Aérea de Natal sem mandado judicial, sem responderem a inquéritos, sem direito de defesa.

Na impossibilidade de trazer para os leitores  todos os depoimentos, limitar-me-ei a uma tentativa de resumo das principais atrocidades a que foi submetido Vulpiano Cavalcanti (que conheci em Fortaleza, na minha adolescência). Arrestado em seu consultório em meio a um atendimento médico, quando praticava uma eletrocoagulação numa paciente em mesa de ginecologia, o dr. Vulpiano foi levado à presença do comandante da Base, quando, despido, foi espancado por socos, pontapés e cassetadas, e na sequência recolhido a uma cela com 1,90m de altura por 1,90m de largura, permanentemente molhada, com um alto-falante no teto que funcionava ininterruptamente dia e noite, “emitindo sons agudos, graves e estridentes de radiotelefonia, telegrafia e outras irradiações com predominância de músicas fúnebres”. Nessa cela permaneceu 135 dias, sendo retirado constantemente para sessões de torturas e interrogatórios. Com cassetete, que tentaram introduzir em seu ânus, teve espancados os órgãos genitais. Quando, sob o suplício, desmaiava, era reanimado com clister de pimenta. Golpearam-lhe os dedos das mãos separadamente “até não poderem ser articulados, visando a inutilizá-lo como cirurgião, conforme sadicamente diziam os torturadores”. Após tentar impor-lhe a assinatura de uma declaração de suicídio, o oficial torturador o esbofeteou até quebrar-lhe todos os dentes. Diariamente eram-lhe jogadas urina e dejeções fecais. Seu corpo foi untado de mel para ser torturado pelas formigas.

A inventividade dos algozes não tinha limite.

Vulpiano Cavalcanti narra outros suplícios de que eram vítimas os presos políticos, metidos em camisas de força; muitos tiveram o saco escrotal amarrado a um cordão para ser puxado por um torturador. Outra forma de suplício consistia em enfiar agulhas nas unhas, ameaçar a vítima de atos de sodomia, cuspir no seu rosto, obrigar o preso humilhado a andar de quatro e latir como um cachorro, submetê-lo a várias horas sob o foco de lâmpadas de 500 volts. Comum era a prática de fuzilamentos simulados. Vários presos tiveram os tímpanos de seus ouvidos estourados por murros, e muitos foram condenados à loucura.

Recolhido à Casa de Detenção de Recife, Vulpiano não se limita a descrever, para denunciá-las, as sessões de tortura;  vai em frente e deixa registrados os nomes dos torturadores impunes.

As prisões e as torturas, acusa nesse texto, foram autorizadas pelo ministro da Aeronáutica de então, brigadeiro Nero Moura, e executadas pelos brigadeiros Ivo Borges e Reinaldo (sobrenome não identificado) comandantes da 2ª Zona Aérea, sendo comandante da Base Aérea de Natal o coronel Honório Ferraz Koeller e subcomandante o major Roberto Hipólito da Costa. Completam o elenco de torturadores, ainda segundo a denúncia do dr. Vulpiano, o capitão Ivan Machado Pereira; os tenentes Carlos Alberto Bravo da Câmara, José Correia Pinto, Aldo Sartori, José Kaufman, Cláudio de Sá e José de Souza Duboc; o investigador Armando Braga; o advogado Bento Lima de Albuquerque, procurador-geral do Superior Tribunal Federal; os sargentos Manoel Antônio Gomes Correia e Luiz Lins Marinho; o soldado José Matias; e o investigador João Lopes de Araújo.

Vulpiano, que jamais abandonara a militância, voltaria a ser preso em 1964. Falece em Fortaleza em1988. Foi poupado de assistir à debacle da URSS e de ver antigos companheiros levarem cabo o projeto de demolição do PCB, ensejado pela repressão. Tampouco viveu para ver adoradores das masmorras da ditadura chegarem ao topo do poder político, no Brasil democrático, ostentando sua boçalidade com empáfia e completo despudor.

* Com a colaboração de Pedro Amaral e Fernando Mousinho

Os textos de Roberto amaral podem ser encontrados em www.ramaral.org.

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