Após mais de sessenta anos de trabalho, a Petrobrás propicia ao Brasil condições de total segurança energética a longo prazo. Trata-se de matéria estratégica para o país, e dessa maneira tem de ser tratada e gerenciada pelo Estado. Somos hoje uma nação soberana
por Guilherme Estrella*/Le Monde Diplomatique
A Revolução Industrial europeia no século XVIII e logo depois a norte-americana ocorreram na esteira do carvão abundante nestas paragens continentais e marcaram o ponto de partida para a construção das nações hegemônicas mundiais no Ocidente.
Foi o início do que se pode chamar de “desenvolvimento tecnológico moderno”, quando os dotes engenhosos do ser humano se voltaram para o controle da energia gerada pelo carvão e seu aproveitamento para produzir trabalho, que por sua vez deu origem a bens primários e consumíveis, equipamentos e serviços.
Essa extraordinária capacitação propiciou o estabelecimento de centros de conhecimento científico e tecnológico, utilizados não só em suas nações originárias – e para suas respectivas sociedades –, mas também como instrumento decisivo de poder militar, político e econômico para a expansão colonial europeia ao longo do século XIX e, em sua última década, norte-americana.
No fim do século XIX aportaram novos insumos energéticos nos Estados Unidos – o petróleo e a eletricidade –, conferindo ao país as condições fundamentais para montar, autônoma e soberanamente, seu projeto de nação hegemônica mundial ao longo do século XX.
O Brasil entrou no século XIX como colônia de um país industrialmente atrasado – Portugal não contava com carvão –, atrelado a atividades puramente extrativistas. A energia que se utilizava no país para produzir trabalho era a roda-d’água e o trabalho de mulas e bois ou de escravos. Lenha e carvão vegetal para gerar calor. As primeiras máquinas industriais no Brasil foram as locomotivas inglesas, em meados do século, para operar em trajetos reduzidos e com significado econômico desprezível. Só na madrugada do século XX a malha ferroviária alcançou importância econômica com o transporte de café do interior para os portos de exportação em Santos e no Rio de Janeiro.
Enquanto as importantes nações ocidentais construíram soberanamente sua presença na economia mundial, o Brasil permaneceu dependente de energia importada. Só em meados do século XX, com a construção de grandes hidrelétricas, iniciamos o processo de industrialização. Mas aplicando um modelo extremamente perverso. Por nosso imenso atraso científico e tecnológico – por não contarmos com autossuficiência energética –, a indústria aqui instalada, a maioria por empresas estrangeiras, empregava tecnologias completamente ultrapassadas e obsoletas.
No setor de petróleo e gás natural, o Brasil era “terra aberta” a quem decidisse investir em exploração. Nenhuma empresa petrolífera estrangeira mostrou qualquer interesse pelo país. As grandes jazidas do Oriente Médio estavam em suas mãos, assim como as da Venezuela, regiões em que se instalaram governos submissos e garantidores de seu suprimento. Entre nós, o Conselho Nacional do Petróleo mapeava geologicamente o território nacional, em busca de áreas prospectivas. A reduzida produção, entretanto, se restringia ao Recôncavo Baiano e a Alagoas. Em 1953, sob intensa pressão popular, foi fundada a Petrobrás e tiveram início, afinal, as atividades de exploração e produção petrolífera em território nacional, de forma organizada técnica e gerencialmente.
Com as crises mundiais do setor petrolífero nos anos 1970, ficou claro para o governo brasileiro: energia é matéria de segurança e soberania nacional. É assunto de Estado. Não há desenvolvimento sustentável sem energia produzida em território nacional, sob controle integral do Estado. A essa altura, o potencial hidrelétrico brasileiro já estava em avançado estado de aproveitamento, situação que apontava para o petróleo como o único segmento energético que poderia, concretamente, propiciar ao país condições de atingir patamares de desenvolvimento industrial com bases científicas, tecnológicas e de engenharia autônomas. Além disso, uma vez que nosso país tem dimensões continentais, a economia teve no setor de transportes terrestres, movido a combustível originado do petróleo, seu principal modal logístico.
A Petrobrás intensificou suas atividades, construiu refinarias, terminais marítimos, oleodutos, e começou a explorar a plataforma continental brasileira. Descobriu a Bacia de Campos e passou a perseguir a autossuficiência.
A realidade energética brasileira em 2002 impunha-nos a condição de nação com claudicante soberania, país dependente de fornecimento externo de energia, a enfrentar crises cíclicas repetitivas, sem nenhuma condição de prover sustentabilidade minimamente confiável a um projeto de desenvolvimento industrial.
A partir de 2003, a Petrobrás retomou sua histórica agressividade exploratória e expandiu suas atividades de perfuração além da Bacia de Campos. A autossuficiência foi alcançada em 2006, com a entrada em produção de outros campos. Mas bastou a economia retomar o crescimento, a partir de 2004, para que a produção nacional deixasse de atender à demanda. O consumo brasileiro de petróleo e gás natural é, ainda hoje, muito reduzido, levando-se em conta a dimensão de nossa economia, a nona do mundo. Era preciso mais.
O resultado veio rápido, com importantes descobertas nas bacias de Santos, Espírito Santo e Sergipe-Alagoas, nas quais apareceu a província do pré-sal brasileiro, com reservas que beiram os 100 bilhões de barris e igualmente gigantescos volumes de gás associado, acrescidas com as expressivas reservas de óleo ultraleve e gás natural em Sergipe.
Chegamos a 2015 com reservas domésticas de petróleo e gás natural suficientes não só para garantir a longo prazo o total suprimento de nossas necessidades de combustíveis líquidos como também para manter volumes expressivos para exportação, se necessário. Com reservas de gás natural rico que nos asseguram, igualmente a longo prazo, (1) geração de termeletricidade para suprir integralmente – de maneira complementar ou expressiva em caso de crises de pluviosidade – nossa demanda elétrica; (2) insumo básico para fabricação de fertilizantes nitrogenados, setor em que exibimos hoje grande fragilidade, pois nos colocamos entre os mais importantes produtores de alimentos, mas também entre os grandes importadores de fertilizantes; e (3) matéria-prima para nossa indústria petroquímica, de que também éramos carentes.
Em resumo, após mais de sessenta anos de trabalho, a Petrobrás propicia ao Brasil condições de total segurança energética a longo prazo. Trata-se de matéria estratégica para o país, e dessa maneira tem de ser tratada e gerenciada pelo Estado. Somos hoje uma nação soberana para (1) construir com autonomia de decisão seu próprio projeto nacional, mantendo o acelerado resgate de nossa imensa dívida social e definindo o modelo de industrialização que mais nos convenha, com desenvolvimento científico e tecnológico que atenda à superação de nossos desafios como país independente (é importante ressaltar que o setor petrolífero abrange um amplo espectro de ciência e tecnologia, inclusive na área chamada de “sensível”, ligada à segurança militar); e (2) estabelecer estratégia nacional para nossa inserção na geopolítica global como protagonista num período em que, inescapavelmente, terão de passar por radical mudança os carcomidos e ultrapassados organismos da governança multilateral global.
No entanto, há dificuldades nesse caminho. O surgimento no cenário mundial de um país como o Brasil, com sua grande extensão territorial, suas riquezas e suas potencialidades como povo e sociedade não faz parte, exatamente, dos imensos interesses, de toda ordem, que comandam a hegemonia política, financeira, científica, tecnológica e militar ocidental.
A trajetória brasileira em direção à concreta soberania nacional não será fácil. Prova disso é a pesada investida contra o marco regulatório do pré-sal que se está discutindo no Congresso. E nosso pré-sal já é a coluna mestra de nossa soberania energética. Permitir que empresas petrolíferas estrangeiras passem a operar nossos campos é desvantajoso para o Brasil, na medida em que são os operadores que detêm o poder de decisão a respeito de engenharia de projetos, tecnologia e equipamentos a serem utilizados nas atividades operacionais, os quais certamente farão uso desse poder em benefício dos interesses de suas nações de origem, e não do desenvolvimento industrial genuinamente nacional.
*Guilherme Estrella é geólogo.