Revista Ihu on-line
“É importante frisar este ponto: desmontar a política indigenista, seja por ação ou omissão deliberadas, equivale a ser cúmplice de um processo de extermínio das populações originárias do país. Isso não pode ser escamoteado, sob pena de compactuarmos com as atrocidades que vêm ocorrendo nos rincões do Brasil profundo”, escreve Leonardo Barros Soares, Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais, Professor da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Pará.
Eis o artigo.
O ministro da justiça do Brasil, Sérgio Moro, manifestou-se, no último dia dois de novembro, em uma rede social, sobre o assassinato de Kwahu Tenetehar na Terra Indígena Arariboia, afirmando que “não pouparemos esforços para levar os responsáveis por este crime grave à Justiça”. Paulino Guajajara, ou ainda Lobo Mau, como era conhecido, foi emboscado, junto com outro parente, por madeireiros da região, após retornarem de uma jornada de caça em seu território tradicional. Paulino era um dos Guardiões da Floresta de seu povo, realizando expedições de monitoramento de atividades ilegais desenvolvidas no interior da Terra Indígena em que residia. Na mesma região, no ano passado, o cacique Jorginho Guajajara morreu em circunstâncias suspeitas, tendo sido encontrado afogado. Segundo o site Amazônia Real, nos últimos doze anos, pelo menos seis Guardiões do povo Guajajara foram mortos. Agora já se sabe que, pelo menos um mês antes do ocorrido, Moro tinha sido oficiado pelo secretário de direitos humanos do Maranhão para que tomasse providências para a proteção de Lobo Mau e outros guardiões da floresta. Nenhuma resposta do paladino da justiça de Maringá. Assim como aconteceu com o assassinato de Emyra Wajãpi, apenas declarações vagas da Polícia Federal, sem nenhum resultado concreto.
Estamos diante de um padrão. É de conhecimento até do mundo mineral que Sérgio Moro simplesmente não tem nenhum interesse na questão indígena que, pelo menos desde a Constituição de 1988, foi reconhecida como uma questão de justiça pelo estado brasileiro. Procure-se alguma declaração em seu twitter sobre o assunto, ou mesmo alguma iniciativa relativa à política indigenista a cargo da Fundação Nacional do Índio. Debalde. O “papai Moro”, no dizer da Ministra Damares Alves, tem se mostrado um “genitor” especialmente negligente. Segundo o monitoramento dos atos demarcatórios realizado pelo Instituto Socioambiental, o ano de 2019 vai se encerrar sem que nenhuma terra indígena tenha sido identificada, declarada ou homologada. Em suma, “não demarcar nenhum centímetro de terra indígena” pode ser considerada uma das metas cumpridas por Jair Bolsonaro em seu primeiro ano de governo.
Alguns outros ministros da justiça certamente também tinham desprezo pelos direitos dos povos indígenas brasileiros. Vem à mente, imediatamente, o ex-ministro Alexandre de Moraes, que teria dito a seus assessores que não receberia nenhum indígena em seu gabinete, em hipótese alguma. José Eduardo Cardozo também merece um destaque especial na galeria de ministros infames, por ter inventado a “brilhante” ideia de mesas de negociações entre povos indígenas e grandes produtores rurais, além de ter sido o ministro em exercício durante a repressão aos protestos indígenas contra Belo Monte, um crime que jamais sairá de seu currículo. Moro, no entanto, parece estar em um nível além de seus predecessores. Sua comoção forçada pelas mortes dos indígenas neste ano não inspiram confiança em ninguém. Os servidores da FUNAI têm medo de realizar a missão da instituição e se veem de mãos atadas em seu cotidiano, podendo apenas observar de camarote o aumento significativo da violência contra indígenas e contra si mesmos. Não surpreendentemente, ouvi certa vez de um servidor da FUNAI, estupefato, que “talvez tivesse sido melhor se tivéssemos ficado no Ministério da Damares”. A sensação é de abandono total. A Polícia Federal, por sua vez, faz corpo mole para atender às ocorrências. No frigir dos ovos, Moro tem tanta culpa pelo etnocídio em curso no país quanto Jair Bolsonaro.
É importante frisar este ponto: desmontar a política indigenista, seja por ação ou omissão deliberadas, equivale a ser cúmplice de um processo de extermínio das populações originárias do país. Isso não pode ser escamoteado, sob pena de compactuarmos com as atrocidades que vêm ocorrendo nos rincões do Brasil profundo.
O Ministério da Justiça, por meio da FUNAI, é responsável pela gestão de todo o processo demarcatório de terras indígenas do país. É o Ministro da Justiça que expede a portaria declaratória que reconhece, oficialmente, um determinado território como de uso e ocupação tradicional de um povo indígena. O processo de homologação presidencial e sua regularização junto à Secretaria de Patrimônio da União são apenas o reconhecimento final de um trabalho coordenado inteiramente pela pasta. Sem seu comando e participação, nada acontece. E, pelo jeito, é assim que a banda vai tocar por enquanto.
Mesmo combalido após as revelações da Vaza Jato, Sérgio Moro permanece no cargo. Até quando? Até surgir aquela vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal que habita seus sonhos mais íntimos? Ou até arrojar-se em voos maiores, quem sabe presidenciais? Difícil saber. Até lá, os povos indígenas e a política indigenista brasileira continuarão relegadas ao limbo do desinteresse do ciclope de Curitiba.
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