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terça-feira, 15 outubro, 2024

Sem ruptura, não haverá progresso

(FOTO: ELINEUDO MEIRA/ @FOTOGRAFIA.75/FOTOS PÚBLICAS)

Roberto Amaral*

Chegámos  ao final da segunda década de um século que, consumidas as alegrias de 2002, logo se anunciou encoberto por nuvens de maus presságios: 2013 com os idos de junho chegou sem pedir licença, anunciando o que não queríamos ver.  O ano de 2020, continuará em 2021, com a pandemia do novo coronavírus, seu lastro absurdo de 200 mil mortos (mais de 600 por dia) entre nós, acentuando a pobreza e as desigualdades sociais, como se não fosse já suficiente  para a humanidade a barbárie que é o capitalismo em si. O capitão insiste em negar a gravidade da pandemia, e na data de hoje não sabemos quando teremos vacinas à disposição de nosso povo. Não bastaram ao Brasil, como mazelas, nem a pandemia nem a exasperação capitalista do neoliberalismo triunfante, pois nossos erros construíram ainda o bolsonarismo. E como na política, tanto quanto  na vida, não existe almoço grátis, estamos pagando o preço, pena que nos espera por mais dois anos, pelo menos.

O próximo ano se anuncia duro para o povo trabalhador, e desfrutável para os especuladores e o grande empresariado. Cessará o auxílio emergencial, aumentando a miséria dos extremos da pobreza do país mais desigual do mundo. O salário mínimo não sofrerá reajuste real e os operadores do dito “mercado” preveem  crescimento da inflação. Continuará a quebradeira das pequenas e médias empresas,  avanço do desemprego (segundo o IBGE já somamos mais de 14 milhões de brasileiros fora do mercado de trabalho) e com ele o precariado e o lupenato. Seguirá a uberização da força de trabalho, sem previdência ou qualquer garantia trabalhista. Esses dados não emocionam a tecnocracia fazendária, pois são anunciados cortes nos programas sociais sobreviventes e aumento de impostos, sempre incidindo sobre o consumo e jamais sobre a renda ou a riqueza ou a transmissão de herança, ou os sagrados lucros do capital especulativo.

Prosseguirá a devastação ambiental, avançará a desconstituição do Estado como instrumento de desenvolvimento, com as privatizações de empresas essenciais (como a Eletrobrás) no foco da classe dominante, que mais tem fome de lucro fácil quanto dele mais se alimenta. Para a indiferença dos pelegos de entidades como a CNI e a FIESP e suas quejandas, o “Brasil-potência” cantado em verso e prosa pela ditadura militar de 1964 foi transformado por Bolsonaro e os generais que aí estão em uma economia agroexportadora, como éramos no Império, como éramos nos anos 30 do século passado, governados pelos interesses da plutocracia cafeeira de São Paulo.

Diante de tanto progresso do atraso, e do avanço político do bolsonarismo no que ele tem de pior – suas raízes protofascistas –, poder-se-á dizer que fracassamos, ou não fizemos o que era necessário. A nos desafiar, permanece intocada a aliança do capitão com as estruturas comandantes das forças armadas, fonte de seu poder e de sua petulância, dando fôlego ao movimento conservador e autoritário que penetra mesmo nos setores populares, os quais, teoricamente, deveriam estar mais infensos às teses da direita e da extrema-direita. Aí reside a questão nodal. O fascismo como expressão de poder foi derrotado no campo de batalha, mas sobrevive como ideologia. Não bastará derrotar o governo do capitão, se não derrotarmos sua representação junto às massas.

Ninguém mais contesta que as esquerdas, capitaneadas pelo PT, perderam a batalha ideológica junto à classe média e consideráveis segmentos populares – nada obstante o caráter anti-povo e anti-nação, autoritário e negacionista, reacionário e obscurantista do bolsonarismo. Mas talvez tenhamos feito o que as contingências da vida real permitiam, considerando  nossas dificuldades e o desencontro das forças progressistas na interpretação do desafio político.

Em que pese tudo, ainda há os que pensam que estamos sob as asas de um governo como outro qualquer, e tudo voltará ao normal após as eleições de 2022, anunciadoras de uma transição de governo, como a que tivemos em 2003. Subjacente a esta tese está a política de conciliação, que só serve à casa-grande, à conservação da ordem dominante, a serviço da sociedade de classes, que depende da intocabilidade do statu quo para conservar o domínio de uma minoria mínima sobre os interesses da população como um todo. Por isso, qualquer aceno à ruptura, sem a qual não haverá progresso, é recusado como pecado capital.

Pouco se avançou na oposição congressual, mas não sei se mais poderíamos esperar quando nossa presença física é relativamente muito pequena na câmara e no senado. Mesmo assim, o aumento do valor do auxílio emergencial foi uma conquista de nossos partidos (que não soubemos ou não pudemos explorar), como, ao final da legislatura, a derrota imposta ao governo quando conseguimos, ouvindo as entidades de classe, ajudar a salvar o Fundeb e com ele a escola pública. Mas é preciso dizer que foi decisiva a mobilização sem precedentes de entidades como CNTE, Fineduca (Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação) e Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Houve também  vitórias a contabilizar na frente judicial, que, por exemplo, pôs um freio nos atentados às instituições. Isso mostra que, sem vitórias estratégicas, pudemos impor derrotas táticas ao inimigo.

Estamos em face do projeto de um novo regime civil-militar, de fonte autoritária e burguesa (de uma burguesia desapartada dos interesses nacionais), com forte apoio no capital financeiro nacional-internacional e, ainda hoje, com arrimo em segmentos ponderáveis da classe-média e do proletariado, perdidos pela esquerda a partir de 2014, perda que não conseguimos sanar, por carecermos de ânimo para identificar suas dolorosas causas. Por isso mesmo, o passado está sempre presente, ameaçando preservar-se. A alternativa de luta compreende todas as formas democráticas e institucionais conhecidas, como a ação parlamentar, mas a esta não pode ser circunscrita, em face de suas limitações. Exemplo claro do vazio ideológico é  a ausência do debate político na disputa (circunscrita à direita) das presidências das mesas da câmara e do senado federal. Nesse episódio as oposições findaram como força coadjuvante, e, por não fazer seu próprio caminho, terminaram sem o direito de escolha.

Não  há como pensar em enfrentamento ao bolsonarismo no curto e no médio prazos longe de uma frente comprometida com a defesa das instituições democráticas e da vida. Essa frente deve compreender as forças sociais e políticas mesmo ideologicamente heterogêneas,  quando unificadas em uma perspectiva crítica do capitalismo, o que nos tem faltado, quando mais clara é a evidência de que os países do submundo subdesenvolvido, satélites do subsistema periférico, não encontrarão autonomia no capitalismo, embora possam lograr alguma sorte de desenvolvimento econômico com contração social, como nos anos do “milagre” dos militares. Neste vasto campo, a esquerda socialista — repito: sem abandonar a via parlamentar — deve priorizar, como urgente e inadiável, a organização popular e sindical,  aquela de há muito descurada, esta vivendo certamente sua maior crise, mercê de inumeráveis erros táticos e estratégicos, mas sem duvida alguma uns e outros agravados pela crise do trabalho decorrente dos avanços das novas tecnologias e da automação  das relações de produção.

Dizer que “viemos de várias derrotas e estamos na defensiva e num descenso das lutas sociais e populares” é um ponto de partida, mas cai no vazio se nos detivermos na constatação pura e simples.  É preciso ir adiante, identificar as razões do recuo, e, principalmente, apontar saídas. Em primeiro plano devemos considerar que um dos fatores, dentre muitos, para o óbvio recuo, não só das esquerdas mas das forças progressistas e democráticas de um modo geral, é a quase anomia de nossas organizações (e é sempre necessário pôr de manifesto, pelo seu significado, a crise existencial do PT, paralisando-o e suas principais lideranças). Para enfrentar tais desafios o mecanismo ainda é a frente de esquerda como ocorreu nas eleições paulistanas deste ano. Vencida esta etapa, segue-se a frente ampla democrática. E não descurar, seja da denúncia do capitalismo – que presentemente nos enseja tantos argumentos! –, seja da defesa do socialismo, que, não pode ser reduzido a uma mera utopia, ou sonho para um amanhã distante. O capitalismo não cairá como jenipapo maduro. É preciso balançar a árvore. O socialismo não cairá do céu, nem resultará de uma lei histórica: será ou não o fruto da ação dos homens e mulheres livres. Lutar por ele é preciso.

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Um pedaço da verdade. Em matéria de página inteira, o Estadão (27/12/2020) , anuncia: “Medicina muda e tem mais mulheres, negros e alunos de escolas públicas”. Esqueceu-se, porém, de informar que essa progressista transformação de perfil demográfico e econômico de estudantes se deveu às políticas dos governos do PT. Terá sido mero lapso?

Um cínico em campanha. Em mais um ato de sua ambiciosa pré-campanha, o ex-juiz de piso de extrema-direita Sergio Moro procura tirar proveito da catastrófica gestão da crise da Covid-19 pelo governo que tanto ajudou a eleger, e pergunta: “Tem Presidente em Brasília?” A resposta é sim: temos na Presidência uma figura lamentável que lá chegou contando com os desvios éticos e abusivas infrações  legais praticados pelo mesmo Moro quando magistrado. Não satisfeito, o maringaense  serviu – e servilmente – ao ícone do obscurantismo, como Ministro da Justiça. As digitais do ainda impune Moro estão impressas nessa página infeliz da nossa história, e não será com desfaçatez que irá apagá-las.___________

*Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia

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