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sexta-feira, 29 março, 2024

SELETIVIDADE PENAL: Por que, mesmo depois de um Habeas Corpus coletivo, ainda há mulheres presas com seus filhos no Brasil?

por Isabela Cunha/Le Monde Diplomatique

A prisão domiciliar significa o seu retorno ao lugar historicamente colocado a elas — sobretudo àquelas integrantes de famílias “tradicionais”, brancas e de classes privilegiadas –, do lar, do trabalho doméstico e do cuidado da família. Era a medida óbvia para o caso de Adriana Ancelmo, advogada e esposa do ex-governador Sérgio Cabral. Mas para outras mulheres que não possuem os mesmos privilégios, tal direito não parece tão evidente assim.

Em fevereiro de 2018, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal concedeu um habeas corpus coletivo para substituir por prisão domiciliar a prisão preventiva de mulheres gestantes ou mães de filhos menores de 12 anos ou de pessoas com deficiência. Provocada por um pedido formulado pelo Coletivo de Advogados de Direitos Humanos (CADHu), Defensorias Públicas, Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) e outras organizações, a decisão nada mais é do que o reconhecimento e a exigência de aplicação de uma lei vigente desde 2016, o Marco Legal da Primeira Infância, que dispõe sobre as políticas destinadas aos primeiros anos de vida das crianças e prevê a possibilidade de prisão domiciliar para alguns casos específicos de pessoas presas provisoriamente.

A efetivação da decisão ficou a cargo dos tribunais de justiça dos estados, que deveriam, por conta própria, definir os fluxos de mapeamento de casos pertinentes e execução da determinação. Segundo levantamento realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), mais de 10.500 mulheres que estavam presas à época atenderiam aos critérios do habeas corpus para acessar a prisão domiciliar. Ao longo de 2018, no entanto, diversas fontes[1] noticiaram que o número de mulheres que efetivamente saíram das unidades prisionais após a concessão do HC ficou muito aquém do esperado. Em maio, após o vencimento do prazo de 60 dias estabelecido para que os tribunais implementassem a medida, o DEPEN enviou ofício[2] ao STF informando que somente 426 dentre aquelas 10.500 mulheres tiveram a prisão domiciliar de fato aplicada. Em outubro, após as organizações envolvidas alegarem o descumprimento da decisão por magistrados de primeira e segunda instância, o Ministro Ricardo Lewandowski concedeu um novo habeas corpus para que as mulheres que ainda não tivessem sido beneficiadas pela ordem anterior fossem colocadas em prisão domiciliar, esclarecendo alguns pontos que vinham sendo mobilizados como justificativa para negar a aplicação do benefício. No final do ano, com a aprovação da Lei 13.769/2018, a decisão passa a integrar e regulamentar a legislação já vigente, adicionando novos critérios ao direito à prisão domiciliar já previsto anteriormente.

Pouco mais de um ano após a primeira decisão, ainda é possível encontrar mulheres presas com seus bebês[3] e outras mães que poderiam estar em prisão domiciliar que seguem privadas de liberdade em São Paulo[4]. É certo que a concessão do habeas corpus coletivo tem um significativo potencial de reduzir as altas taxas de encarceramento feminino, além de seu valor simbólico. A ausência de informações em tempo real a respeito da população prisional nacional, no entanto, ainda não permite calcular exatamente qual o verdadeiro impacto da decisão. A princípio, o que se nota é que tal potencial tem sido mitigado pelo descumprimento da medida nos casos individuais sob as mais variadas justificativas que, no fundo, escondem um mesmo interesse: o controle do exercício da maternidade por mulheres selecionadas pelo sistema penal.

Nas duas últimas décadas, entre 2000 e 2016, o número de mulheres nas prisões brasileiras aumentou 567%, atingindo a marca de mais de 42 mil mulheres presas, posicionando o Brasil como o terceiro país do mundo com a maior taxa de aprisionamento feminino[5]. A identificação desse aumento desproporcional — principalmente devido à atual política de drogas — provocou a eclosão de pesquisas e articulações em busca de entender o fenômeno e encontrar soluções para os desafios desse crescimento populacional recente. No plano internacional, as Regras de Bangkok, de 2010, reconhecem a importância de lidar com o encarceramento feminino e estimular a aplicação de medidas alternativas à prisão principalmente para as mulheres, considerando as especificidades de gênero e como elas afetam e são afetadas nesse contexto. No âmbito nacional, as discussões travadas em torno do assunto estiveram concentradas na questão da maternidade, que se tornou o eixo central para as políticas de enfrentamento ao encarceramento feminino, deixando em segundo plano outras questões como a política de drogas, o acesso à justiça, à saúde, à assistência, e outras, que igualmente são mediadoras do envolvimento de mulheres com o sistema penal.

Em um primeiro momento, no plano institucional, a preocupação era melhorar a estrutura de presídios para que pelo menos pudessem comportar berçários e creches para que filhos de mulheres presas não tivessem de ser retirados delas tão cedo[6]. Em um segundo momento, a disputa se deu em torno do tempo de permanência dos bebês dentro das unidades prisionais, geralmente aplicado pelo período mínimo previsto, de seis meses. Aos poucos, denúncias de mulheres algemadas durante o trabalho de parto[7], queixas sobre a ausência de acompanhamento pré-natal e no pós-parto e a constatação da precariedade dos espaços prisionais destinados às gestantes, puérperas e seus filhos fomentaram o entendimento de que o melhor lugar para a criança sempre será fora da prisão e junto de sua mãe. Assim, medidas legislativas e judiciais recentes passaram a considerar a possibilidade de gestantes e mulheres com filhos pequenos estarem presas em suas casas de modo a preservar sua dignidade e o acesso a direitos básicos.

A prisão como política de controle de maternidades

A prisão domiciliar é destinada a casos em que se avalia necessária a manutenção da prisão preventiva, mas se autoriza que a pessoa fique presa em sua casa com o objetivo de garantir a sua dignidade ou a de outras pessoas que dela dependam. Ao elencar as possibilidades de conversão da prisão preventiva em prisão domiciliar na lei ou em decisões judiciais, o sistema penal reconhece que as condições precárias do cárcere não são adequadas para pessoas com condições especiais, como idosas, debilitadas por doenças graves, gestantes, puérperas, crianças, entre outras, e representam sérios riscos a esses indivíduos.

No caso das mulheres, a prisão domiciliar significa o seu retorno ao lugar historicamente colocado a elas — sobretudo àquelas integrantes de famílias “tradicionais”, brancas e de classes privilegiadas –, do lar, do trabalho doméstico e do cuidado da família. Era a medida óbvia para o caso de Adriana Ancelmo, advogada e esposa do ex-governador Sérgio Cabral, que conseguiu acessar o “benefício” com base somente na previsão legal, antes mesmo da impetração do HC coletivo, que inclusive foi motivada pela decisão que tirou a advogada da prisão. Mas para outros tantos casos de mulheres que não possuem os mesmos privilégios que Adriana, tal direito não parece tão evidente assim.

Com a concessão da ordem do habeas corpus coletivo, os tribunais passaram a avaliar os casos individuais de todas as mulheres que atendessem aos requisitos da decisão — ou seja, presas preventivamente, gestantes ou mães de crianças menores de 12 anos ou de pessoas com deficiência, que não sejam acusadas de crimes praticados com violência ou grave ameaça nem crimes contra descendentes e que não estejam em situações “excepcionalíssimas” –, para verificar a possibilidade de substituição da prisão preventiva por domiciliar. Na prática, os julgamentos individuais se tornaram exercícios para ampliar as exigências do habeas corpus ou encaixar casos diversos do de Adriana Ancelmo — ou de mulheres privilegiadas — dentro das situações “excepcionalíssimas”, negando assim o cumprimento da decisão do HC coletivo.

Por exemplo, a acusação por crimes relacionados às drogas — a que mais acomete as mulheres em privação de liberdade –, operada de diferentes maneiras, tornou-se uma das principais justificativas para a não aplicação da prisão domiciliar. A alegação da gravidade (abstrata) desse crime e da sua suposta incompatibilidade com a maternidade passou a ser argumento para manter as mulheres presas em detrimento da decisão do STF. Do mesmo modo, a reincidência ou a mera existência de acusações anteriores igualmente apontariam mulheres cuja maternidade seria questionável, ainda que tais práticas sejam justamente estratégias acionadas para garantir a renda e a sobrevivência da família, tendo em vista a escassez das possibilidades disponíveis em um cenário de baixa escolaridade, desemprego, precarização do trabalho e acúmulo de funções e responsabilidades sobre essa mulher.

Em outras ocasiões, senão elementos relacionados à acusação, o próprio desemprego é utilizado como justificativa para impedir o acesso à prisão domiciliar. Ou até mesmo a falta de comprovação da indispensabilidade da mãe para seus filhos, por mais evidente que seja a importância da presença materna tanto para o desenvolvimento das crianças como para os diversos arranjos familiares, que muitas vezes tem de ser completamente reformulados quando do aprisionamento de um de seus membros.

Por fim, outra justificativa mobilizada recorrentemente para impedir que mulheres tenham o seu direito ao HC coletivo reconhecido é a ausência de endereço fixo. Mulheres em situação de rua, moradoras de locais improvisados e mulheres migrantes não residentes no país têm sido mantidas nas prisões mesmo quando cumprem todos os critérios dispostos pela decisão. Deste modo, a precariedade do sistema prisional é relativizada diante da suposta necessidade de fiscalização sobre aquela mulher e, ainda, sobre o seu exercício da maternidade. Nesses casos, aos olhos do sistema de justiça criminal, mais do que uma medida penal, a prisão se consolida como uma política pública alternativa à insuficiência de políticas sociais. Embora a política de assistência nacional, de caráter universal, conte com serviços e centros de acolhida especificamente destinados às pessoas que não têm moradia, que poderiam ser uma possibilidade de garantir a dignidade dessas mulheres e crianças fora do sistema prisional, a preferência pelo encarceramento tem prevalecido nas decisões nitidamente pautadas pelo punitivismo.

Assim, na aplicação do HC coletivo, algumas maternidades têm se constituído como mais legítimas do que outras perante o sistema de justiça criminal. O julgamento sobre a concessão da prisão domiciliar nos processos individuais tem se revelado um julgamento sobre os modos de exercício da maternidade, sendo que aqueles que fogem ao padrão estabelecido por esse sistema — a partir de uma perspectiva sexista, racista, classista — não são reconhecidos. E os filhos de mães que fogem a tal padrão e estão privadas de liberdade ficam então entregues aos cuidados de outras pessoas, geralmente, as avós, ou de instituições, caso não tenham quem possa acolhê-los.

Acesso à justiça para as mulheres

Para além do enfrentamento à lógica punitivista e discriminatória, outro entrave ao acesso à prisão domiciliar diz respeito à dificuldade que as mulheres privadas de liberdade têm para acessar a justiça. Se por um lado são elas que lotam as filas de atendimento das defensorias públicas para levar as demandas de familiares presos, por outro, quando são elas as presas, é mais raro que haja quem possa ir em seu nome cobrar a atuação de defensores em seus processos, muitas vezes não por negligência, mas porque o acúmulo de funções gerado pela sua ausência impede que a família tenha disponibilidade para mais essa atividade.

Apesar de o habeas corpus ter sido concedido para a coletividade das mulheres mães de crianças menores de 12 anos ou de pessoas com deficiência, a exigência da avaliação individual dos processos impôs a necessidade de atuação da defesa em cada um dos casos. Desta maneira, novamente, as mulheres que têm condições de arcar com a defesa exercida por advogados particulares foram privilegiadas. As Defensorias Públicas se empenham em levantar casos e executar os pedidos, no entanto, o volume de trabalho é enorme e o acompanhamento dos processos nem sempre pode ser exercido com a mesma agilidade. A exigência de comprovações documentais, como do endereço fixo ou da imprescindibilidade da mãe para a criança também colocam em desvantagem aquelas mulheres com redes de apoio menos estruturadas e mais comprometidas pelo seu encarceramento.

Com isso, a desigualdade que alimenta e é promovida pela seletividade do sistema penal é ainda mais acirrada para libertar as mulheres que têm mais facilidade de acessar a justiça e para manter a segregação daquelas que de diversas maneiras já estão impedidas de acessar seus direitos.

A liberdade como regra

A prisão domiciliar é uma das expressões mais simbólicas da forma como o sistema penal está estruturado sobre articulações de gênero. Às mulheres infratoras que desviaram do padrão de feminilidade, docilidade e domesticidade que deveriam corresponder, o seu aprisionamento em suas casas, junto a seus filhos e família, pode ser considerado suficiente para restaurá-las a tal comportamento. Mas o modo como a medida vem sendo aplicada na prática demonstra o quanto a interseccionalidade complexifica e amplia a assimetria dentro das relações sociais. O atravessamento de diferenças de classe, raça, nacionalidade e outras faz com que o encarceramento siga sendo a principal medida aplicada pelo sistema de justiça criminal para as mulheres infratoras provenientes de realidades diversas daquela por ele defendida.

Mesmo quando todas as barreiras são superadas para a efetiva aplicação da prisão domiciliar, é preciso ressaltar que ela está longe de representar a melhor opção para a ampla maioria das mulheres. É evidente que, como qualquer medida alternativa, a prisão domiciliar é melhor do que a privação de liberdade em um estabelecimento penal e é essencial para evitar uma separação forçada entre mães e filhos. Por outro lado, ao retirar a autonomia das mulheres para exercer trabalho remunerado fora de casa ou até mesmo para atividades básicas como a ida ao mercado, o aprisionamento em casa as mantêm dependentes de uma estrutura familiar, que nem todas têm, que seja capaz de preservar a vida cotidiana e o seu sustento e de seus filhos.

Finalmente, ao representar uma medida provisória, ao menos na maior parte dos casos, quando é concedida em substituição à prisão preventiva, a prisão domiciliar cria outro problema para quando essas mães são condenadas definitivamente e têm uma pena de prisão para cumprir. Nessas situações, embora a liberação temporária da prisão possa ter  protegido a dignidade das mulheres e crianças momentaneamente, ela não evita a separação posterior e todos os prejuízos que isso pode ocasionar.

A Lei 13.769, do final de 2018, adiciona uma nova possibilidade de progressão de pena para gestantes e mães que, dentre outros critérios, sejam primárias e não integrem organização criminosa. Ao cumprirem ⅛ da pena a que foram submetidas (em contraposição ao ⅙ para os demais indivíduos e aos ⅖ para condenados por crimes hediondos), elas podem requerer a progressão para regime menos gravoso, o que acelera o tempo que têm de passar presas e o seu acesso à liberdade. De todo modo, contudo, isso não impede que elas sejam separadas de seus filhos quando têm uma pena a ser cumprida em privação de liberdade. Por mais curto que seja esse período, a ruptura do vínculo, somada às dificuldades de efetivação do direito à convivência familiar no sistema prisional, trazem impactos inestimáveis às vidas dessas mulheres e crianças e às suas relações.

O direito à prisão domiciliar e o habeas corpus coletivo são resultado da trajetória recente  de ampliação do debate sobre o encarceramento feminino. Tais medidas cumprem a importante função de, mais do que dar visibilidade à questão, enfatizar que o aprisionamento em um sistema produtor e reprodutor de violações não é a solução para lidar com mulheres em conflito com a lei. Mas ainda há muito que avançar em torno da questão, por um lado para reconhecer as interseccionalidades e o modo como elas afetam diferencialmente as pessoas que são envolvidas pelo sistema penal e, por outro, para que as soluções pensadas não sejam somente novas formas de controle e privação de liberdade — e portanto de reprodução de violência contra essas mulheres –, mas sim possibilidades de garantir a liberdade e o acesso a direitos e à cidadania enquanto a regra.

Isabela Cunha é advogada, mestre em Direitos Humanos e, desde 2011, integra o Projeto Estrangeiras do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC).

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