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Heba Ayyad*
As experiências dos povos que lutaram contra o colonialismo, a ocupação, o racismo, o fascismo e a opressão nos ensinaram que concessões não levam ao abandono do colonialismo e da ocupação estrangeira. É a resistência obstinada e a adesão a princípios e posições estratégicas inegociáveis, que definem as linhas vermelhas, que prevalecem. Quem abre mão de parte de seus direitos acaba perdendo o restante, e o mundo não respeita o fraco que se curva aos pés do forte, do opressor, do belicista e do racista, mas admira aquele que luta com força, firmeza e dignidade, mesmo que isso envolva sacrifícios dolorosos, lágrimas e gritos inaudíveis.
Nelson Mandela recusou, ainda em sua cela na prisão, entregar suas armas em troca da promessa de libertação feita por seus algozes. Ele rejeitou categoricamente e questionou: “Vocês estão negociando minha liberdade pessoal em troca de eu abrir mão da liberdade do meu povo?” Permaneceu fiel ao princípio de acabar com o apartheid e erradicá-lo definitivamente da África do Sul — e conseguiu.
Os revolucionários argelinos mantiveram suas armas e atacaram locais coloniais franceses e propriedades de colonos, enquanto a delegação negociadora em Évian insistia na independência completa e na restauração da identidade árabe e islâmica do país, mesmo a um alto custo. Eles alcançaram esse objetivo quando o presidente De Gaulle se convenceu de que a solução militar havia fracassado completamente.
A delegação vietnamita apresentou um plano de acordo à delegação estadunidense na primeira rodada de negociações, em 1968. A proposta foi rejeitada de imediato, e os estadunidenses intensificaram seus ataques criminosos. Contudo, ao retomarem as negociações em Paris, em 1973, os vietnamitas reapresentaram exatamente as mesmas propostas, sem alterações. Dessa vez, a delegação estadunidense cedeu e foi derrotada, após o Vietnã do Norte invadir o Sul e desmontar a ideia de dois estados reconhecidos. Em 30 de abril de 1975, os últimos estadunidenses fugiram pelo telhado da embaixada em Saigon.
A delegação estadunidense negociou com o movimento Talibã em Doha por mais de um ano. A delegação talibã demonstrou hesitação deliberada, fazendo os estadunidenses sentirem que não havia pressa, até que o acordo de retirada abrangente foi assinado em 29 de fevereiro de 2020, concedendo aos estadunidenses 14 meses para se retirar. Em agosto de 2021, testemunhamos o colapso humilhante do governo cliente liderado por Ashraf Abdul Ghani e a fuga dos últimos soldados estadunidenses, em um desfecho que relembrou ao mundo os eventos de Saigon.
Netanyahu, em uma atitude arrogante, se vangloriou no Salão da Assembleia Geral, apresentando à comunidade internacional o novo mapa de Israel. Contudo, as circunstâncias mudaram, e a questão palestina tornou-se uma bússola global para todos os combatentes e defensores da justiça internacional.
As negociações da resistência palestina em Gaza representam luta, firmeza e um acordo honroso. Gaza, sitiada por terra, ar e mar desde 2007, aperfeiçoou a arte da resistência: com uma mão, luta com firmeza; com a outra, planta rosas, constrói universidades, escolas, clínicas e instituições. Apesar de sua determinação, Gaza sofreu injustiças por parte de um vizinho árabe e da Autoridade de Oslo, que cortou todos os seus recursos. Enquanto a entidade sionista a atacava militarmente, o vizinho árabe a cercava, fechando todos os estabelecimentos, e a Autoridade de Oslo impunha sanções severas.
Antes do Dilúvio de Al-Aqsa, Gaza suportou seis operações militares devastadoras. Como esperar outra postura da geração que cresceu sob o som dos canhões, o zumbido das balas, o barulho dos drones e as explosões das bombas? Vale recordar as operações e invasões militares que a Faixa de Gaza enfrentou antes do Dilúvio de Al-Aqsa, que o Ocidente hipócrita insiste em retratar como o início da história:
Operação “Nuvens de Outono” em Beit Hanoun (novembro de 2006);
Operação “Chumbo Fundido” (27 de dezembro de 2008 a 18 de janeiro de 2009);
Operação “Pilar de Defesa” (14 a 22 de novembro de 2012);
Operação “Borda Protetora” (7 de julho a 26 de agosto de 2014);
As Marchas do Retorno (2018-2019);
A batalha do “Guardião dos Muros/Espada de Jerusalém” (1 a 21 de maio de 2021).
Como esse povo grandioso, resiliente e paciente conseguiu construir suas próprias políticas, capacidades militares e sociais, e lutar por 467 dias, diante de tamanho isolamento, desequilíbrio de forças e uso excessivo da força militar? Tudo isso com o apoio abrangente do Ocidente colonial, especialmente dos Estados Unidos, que ofereceram à entidade sionista todo o seu arsenal militar, financeiro, de inteligência e diplomático. Além disso, houve a conspiração de vários países árabes, que estenderam a mão, não aos sitiados, mas aos que os cercavam.
No final, os dois lados negociaram por mais de um ano. O lado palestino manteve suas posições firmes, e os objetivos israelenses desmoronaram um a um.
Eles queriam deslocar e esvaziar Gaza de seus habitantes, mas falharam.
Prometeram libertar os reféns pela força armada, mas não o fizeram.
Prometeram uma derrota esmagadora ao Hamas e aos movimentos de resistência em Gaza, mas falharam miseravelmente.
Queriam que os líderes da resistência levantassem a bandeira branca e trocassem sua segurança pessoal pelo colapso da resistência, mas fracassaram.
Tentaram criar associações de aldeias para administrar Gaza, da mesma forma que tentaram na Cisjordânia, mas não obtiveram sucesso, e a ideia foi abandonada.
Propuseram devolver os assentamentos a Gaza, enquanto Smotrich e Ben Gvir preparavam grupos afiliados a eles para esse propósito, mas falharam, e Gaza permanecerá livre de colonos.
Consideraram a opção de uma ocupação permanente de Gaza, como ocorre na Cisjordânia, mas sabem que isso teria um alto custo e desgastaria suas forças até serem forçados a fugir, como aconteceu em 2005.
A ideia de estabelecer um governo internacional supervisionado pela OTAN e por forças ocidentais, com apoio de uma presença árabe, foi levantada, mas também fracassou. A proposta de que Gaza fosse governada por regimes árabes também foi descartada.
O Comitê de Apoio Palestino poderá administrar temporariamente o território, e talvez surja uma verdadeira unidade nacional, livre de normalizadores e coordenadores de segurança, para gerenciar Gaza e integrá-la à Cisjordânia e a Jerusalém. Isso não seria para fins de coordenação de segurança, mas para fortalecer a posição palestina, baseada em sacrifícios e trabalho contínuo para erradicar a ocupação.
Netanyahu posicionou-se de forma arrogante no Salão da Assembleia Geral em 22 de setembro de 2023, dias antes do Dilúvio de Al-Aqsa, e apresentou à comunidade internacional o novo mapa de Israel, eliminando qualquer existência da Palestina. No entanto, as circunstâncias mudaram significativamente.
A causa palestina tornou-se uma bússola global para todos os combatentes e defensores da justiça internacional, seguidores da verdade e aqueles que rejeitam a injustiça. A Palestina ecoa como o clamor de milhões de pessoas de todas as raças, línguas, etnias, continentes, povos e comunidades. Ela está presente nas pautas de diversas organizações internacionais, especialmente da Corte Internacional de Justiça, que emitirá seu parecer sobre os eventos em Gaza: trata-se ou não de uma guerra de extermínio?
A África do Sul lidera esse processo, acompanhada por Cuba, Turquia, Espanha, México, Nicarágua, Colômbia, Líbia e Irlanda. A Irlanda, inclusive, fechou a embaixada israelense em seu território, um passo que esperamos que os países árabes normalizadores também tomem, ainda que temporariamente.
O Tribunal Penal Internacional já emitiu mandados de prisão contra os criminosos de guerra mais perigosos da entidade, incluindo Netanyahu e Galant, e outros nomes ainda serão revelados. A maioria dos Estados membros do Estatuto de Roma prometeu prender criminosos de guerra israelenses caso eles transitem por seus territórios.
É verdade que há destruição generalizada e milhares de vítimas, e levará anos para que o povo palestino e os partidos que o apoiam consigam se reconstruir. Contudo, a mudança política em direção à verdadeira unidade nacional, após a eliminação das forças políticas fragmentadoras, pode ser o ponto de partida para a reconstrução e o fortalecimento da Organização para a Libertação da Palestina. Isso deve ser feito com base na unidade do povo, da terra e da causa, trabalhando para alcançar um programa de independência nacional e estabelecer um Estado cuja capital seja Jerusalém.
Em breve, milhares de prisioneiros retornarão para suas famílias e parentes. Em breve, os deslocados voltarão para visitar os lugares de suas memórias. Em breve, centenas de caminhões carregados de ajuda humanitária entrarão em Gaza, pois os presidentes de 57 países árabes e islâmicos não foram capazes de levar sequer uma garrafa de água à Gaza sitiada. Foi a firmeza da resistência que impôs essas mudanças.
Em breve, Gaza testemunhará o descanso do guerreiro e limpará a poeira das bombas de fragmentação de sua testa. As crianças, ou os que restaram, dormirão sem o zumbido constante das armas.
Saudações ao povo resiliente da Faixa de Gaza. Saudações aos mártires, aos feridos e aos prisioneiros. Saudações aos negociadores que mantiveram a calma e não se deixaram levar por aqueles que promovem a derrota.
É a regra de ouro: um lutador teimoso é um negociador teimoso. O que vemos agora, com nossos próprios olhos, comparado às concessões de Oslo, que representaram a segunda catástrofe, é algo claro, muito claro.
*Jornalista internacional
Escritura Palestina Brasileira