Plataforma Grita, da ONG Temblores, informa um saldo de 2.387 casos de violência policial entre as 6h de 28 de abril e as 12h de 18 de maio de 2021: 384 vítimas de violência física, 35 vítimas de homicídio, 472 intervenções violentas, 1.139 detenções arbitrárias, 33 vítimas de agressão ocular, 146 casos de disparos de arma de fogo, 18 vítimas de violência sexual
A Colômbia é o país com o conflito armado mais prolongado e o segundo com maior deslocamento interno do mundo. Esse conflito estendeu-se por mais de sete décadas e forçou mais de 8 milhões de pessoas a se deslocar, inclusive internacionalmente. Com maior intensidade nas zonas rurais, a manutenção da violência deve ser analisada integrando componentes como a ação de elites políticas nacionais e internacionais, a inserção do país na economia global e a sua localização geográfica estratégica, entre outros. Cabe, portanto, analisar a recente onda de protestos que tomou de assalto as grandes e médias cidades desde o dia 28 de abril e a violência estatal e paraestatal desencadeada em resposta, traçando paralelos com o histórico de conflito armado nas zonas rurais.
Há muitos anos, os camponeses relatam rajadas de rifle, bombas e granadas passando por cima dos seus tetos. O silêncio, o rosário, o colchão e inclusive bunkers embaixo da terra dentro dos domicílios são trincheiras para salvaguardar a vida em tempos de guerra. Domicílios suspeitos de abrigar guerrilheiros já foram queimados ou tiveram suas paredes marcadas. A restrição do fluxo de alimentos e a ameaça contra líderes de lojas comunitárias e transportadores, são formas empregadas para forçar o deslocamento de comunidades rurais. Durante os últimos dias de protesto, a população denuncia com diversos vídeos que circulam nas redes que policiais e civis armados pró-governo restringem o trânsito de apoiadores (entre estes, os grupos indígenas). Eles fazem inspeções ilegais, jogam gás de pimenta em bairros residenciais distantes dos locais de manifestação e sabotam o abastecimento de alimentos das zonas rurais aos centros urbanos, com o intuito de causar pânico. Nas cidades, as trincheiras de resistência são formadas com placas de trânsito e sucatas; o leite e a água oxigenada são usados para mitigar os efeitos dos gases lacrimogêneos e os telefones celulares para fazer transmissões ao vivo e registrar os abusos policiais.
Com a ordem presidencial de militarizar as cidades, a violência atinge as urbes. Os militares foram treinados para o confronto armado contra grupos guerrilheiros, não possuem treinamento para atuar em protestos sociais nas cidades e estão agindo com força desproporcional contra a população. Como afirmou a senadora Maria Fernanda Cabal, “o Exército é uma força letal de combate que entra para matar”. São dias e noites de terror. Os corpos também são território de guerra e sofrem os impactos da violência e do abuso. Mulheres, adolescentes e crianças são frequentemente vítimas de violações sexuais – como o caso dos sete soldados que estupraram uma criança indígena do resguardo Embera Katío em 2020. Já são dezoito casos de abuso sexual a mulheres cometidos durante a mobilização popular, que ficam tatuados no corpo e na vida das vítimas, dos seus familiares e na memória do país.
“Guerrilheiros e cúmplices!” Gritam aos camponeses nas veredas. “Guerrilheiros e vândalos!” Gritam aos manifestantes nas ruas. No campo, uma junta comunitária aglomera pessoas com facão, botas e chapéu. Nas cidades, uma concentração de manifestantes com o punho cerrado, tênis e máscaras. Ambos são considerados pelo Estado sinônimos de ameaça. Nas montanhas, as manifestações podem tomar a forma de velórios coletivos, greves camponesas, bloqueios de estrada. Enquanto nas cidades, as massas grevistas saem às ruas com velas, cartazes e arte, exigindo que a violência acabe, que a força pública não seja cúmplice e que os cidadãos sejam protegidos.
Os principais meios de comunicação durante décadas mostram intencionalmente só uma parte dos resultados do conflito armado no campo: uma comunidade destruída por uma ocupação guerrilheira, milhares de soldados e policiais feridos e assassinados, grandes extensões de cultivos de coca somente nos territórios guerrilheiros, enquanto silenciavam os abusos policiais, dos grupos paramilitares, os assassinatos sistemáticos de líderes sociais e os chamados “falsos positivos”.[1] A cobertura midiática dos atuais protestos segue a mesma tática para assustar a população e desqualificar as manifestações, focando maioritariamente nas instalações e bens destruídos, policiais feridos e fechamentos de ruas e estradas. Frases comuns de grupos de direita nas redes sociais que também ecoam no Brasil são: “a guerrilha e o comunismo querem tomar o poder!”, “as cidades estão em iminente risco de desabastecimento!”, “vamos virar uma Venezuela!”.
Durante os tempos de guerra, a verdade é a primeira vítima. Lentes ocultam, distorcem e desviam a atenção das demandas do povo colombiano. Vivemos em um país onde, por falta de programas e investimento para as famílias camponesas, a coca é o meio de subsistência de muitas delas, mas onde a riqueza deste negócio é apropriada por grupos armados, alguns acusados de terem associação narcoparamilitar com o Estado. Assassinatos seletivos, massacres, deslocamentos violentos, desaparecimentos, ameaças e execuções extrajudiciais são o pão de cada dia.
Nas manifestações atuais, a Plataforma Grita, da ONG Temblores, informa um saldo de 2.387 casos de violência policial entre as 6h de 28 de abril e as 12h de 18 de maio de 2021: 384 vítimas de violência física, 35 vítimas de homicídio, 472 intervenções violentas, 1.139 detenções arbitrárias, 33 vítimas de agressão ocular, 146 casos de disparos de arma de fogo, 18 vítimas de violência sexual. Enquanto a Fundación Paz y Reconciliación reporta que até o dia 10 de maio já são 379 pessoas desaparecidas. Contudo, por anos as comissões de verificação de direitos humanos relatam a cumplicidade do aparato policial e militar estatal junto aos grupos armados ilegais (paramilitarismo), os quais têm consumado massacres em zonas rurais e bairros populares. A novidade é que ações dessa natureza vêm sendo massivamente transmitidas ao vivo através das redes sociais. Não por acaso, os usuários denunciam cortes de energia e quedas na internet propositais e setorizadas, com o objetivo de censurar e impedir a difusão das imagens.
Os camponeses estão cansados de andar por veredas inexistentes ou deterioradas e por estradas com pedágios custosos que impossibilitam a distribuição dos alimentos que produzem. Nas cidades, os habitantes estão cansados de se acotovelar entre a multidão no transporte público durante horas para poder chegar ao trabalho. As pessoas estão exasperadas pelas mentiras contadas nos noticiários, enquanto observam nas redes sociais os massacres que estão ocorrendo em zonas rurais e urbanas. Estão desesperadas com o desemprego, a pobreza e a fome, enquanto o Estado abre os cofres públicos para empresas privadas ou contratos corruptos. As pessoas não aceitam mais os atropelos do governo e a sua indisposição em negociar e aceitar as exigências dos manifestantes.
A caraterística distintiva do movimento que se vive atualmente no país está no protagonismo dos jovens, que reconhecem as cidades como seu próprio território, o espaço onde cresceram, muitas vezes privados dos direitos mais fundamentais. Essa juventude, uma parte descendente de famílias deslocadas pelo conflito armado rural, agora está sendo violentada nas zonas urbanas e resiste diariamente a um governo que lhes ceifa a vida. Membros do Estado, nacional e local, ousam gritar para estes jovens e para as comunidades rurais, especialmente aos povos originários que se uniram ao protesto, que a cidade não é seu território e que devem regressar ao campo. A atitude do governo está impondo um muro violento, classista e racista, que aumenta a crise social, estigmatiza e desconhece os movimentos, a fim de levar certos segmentos da população urbana a enxergá-los como uma ameaça que deve ser exterminada. Esse Estado cúmplice e omissivo está desatando um conflito civil interno com resultados que não são possíveis de estimar.
O Colectivo de Colombianos en Porto Alegre (Colombia-Poa), desde 2018, fortalece laços afetivos na capital gaúcha, longe do país, gerando um tecido social e uma resistência em processos de dignificação da vida. Composto por cerca de 25 pessoas, maioritariamente estudantes, o coletivo dá visibilidade às questões do nosso país com vivências, debates e lutas junto a nossas irmãs e irmãos do Brasil e de outras culturas.
[1] São resultado de programas do Estado que oferecem recompensas aos militares que apresentem guerrilheiros mortos em combate. Contudo, esta política tem motivado milhares de assassinatos de jovens inocentes, a fim de reivindicar estas recompensas.
Fonte: Le Monde Diplomatique