O ensaio provocativo de Sérgio Buarque põe o dedo na ferida ao expor o dilema. Neste sentido, o “raízes” do título pode dar margem a equívocos. Não é obra de história, mas que sobre a história se debruça, de maneira elíptica e sintética, para apontar algumas tensões da sociedade brasileira na sua difícil tarefa de construção da nação. Por isso, ele a escreve sem formalismos, como quem pensa em voz alta.
“O Estado não é uma ampliação do círculo familiar, uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo” Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil
O homem bestial – que encontra sua manifestação plena no presidente da República, sua prole e seus acólitos – é uma degeneração do homem cordial concebido por Sérgio Buarque de Holanda.
Como assim? O decreto que flexibiliza o porte de armas, o relaxamento das leis num dos países que mais mata em acidentes de trânsito, os ataques machistas e homofóbicos, a criminalização dos movimentos sociais, a carta branca para a matança de negros e índios, a perseguição a professores e estudantes, a submissão masoquista aos Estados Unidos, a defesa explícita do desmatamento, não apenas na Amazônia, a condenação sumária dos imigrantes e refugiados, inclusive dos nossos lá fora, a exposição pública e sádica dos preconceitos do chefe de Estado e de seus filhos, a política de ódio e a defesa do extermínio simbólico, e às vezes físico, dos segmentos contra os quais eles se definem, e que perfazem parte substantiva da sociedade brasileira – o que tudo isso tem a ver com o homem cordial?
Como se depreende da epígrafe acima, o historiador brasileiro procurou diferenciar a esfera do Estado, impessoal, da esfera familiar, de cunho personalista. A esfera pública exige uma “transcendência” em relação à órbita da família. Esse era o desafio que Sérgio Buarque antepunha ao futuro do país: a construção de um Estado democrático e republicano, o que exigia transformações correlatas no âmbito da sociedade. Essa tensão fundadora entre o público e o privado – amplificada no Brasil durante o século XIX e projetada sobre o século XX – poderia ser superada, sem que perdêssemos os “traços de personalidade” que havíamos herdado do passado?
O ensaio provocativo de Sérgio Buarque não nos fornece uma resposta, mas põe o dedo na ferida ao expor o dilema. Neste sentido, o “raízes” do título pode dar margem a equívocos. Não é obra de história, mas que sobre a história se debruça, de maneira elíptica e sintética, para apontar algumas tensões da sociedade brasileira na sua difícil tarefa de construção da nação. Por isso, ele a escreve sem formalismos, como quem pensa em voz alta.
Não à toa, parece-lhe desnecessário atualizar a segunda edição (de 1948) para dar conta das “circunstâncias da implantação de um regime de ditadura pessoal de inspiração totalitária” (leia-se Estado Novo). No seu entender, “ela (a obra) não necessitaria ser reformada à luz dos aludidos sucessos”. As mudanças consideráveis realizadas em relação à primeira edição, de 1936, são de outra ordem.
Ora, o conceito de homem cordial é talvez o mais controverso e mal compreendido de todos os já cunhados pelo pensamento brasileiro. E temos que convir: Sérgio Buarque colaborou para tanto. Ao apresentá-lo pela primeira vez, o historiador o faz da seguinte maneira: “a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade – daremos ao mundo o homem cordial”. E completa, listando “as virtudes tão gabadas pelos estrangeiros que nos visitam”, quais sejam: “a lhaneza no trato, a hospitalidade e a generosidade”. O capitão reformado, evidentemente, não se encaixa aqui.
Porém, logo em seguida a esse trecho, Sérgio Buarque, apõe uma nota de rodapé. No seu entender, a “feliz” expressão, por ele emprestada de Ribeiro Couto, deve ser entendida no seu “sentido etimológico”. Não se trata de conferir “juízos éticos” e “intenções apologéticas” à “cordialidade”. Cordial não rima com “bondade” ou “homem bom”, pois a “inimizade pode ser tão cordial como a amizade”. Ambas procedem “da esfera do íntimo, do familiar, do privado”, daquilo que “a moderna sociologia consagra ao domínio dos grupos primários”.
Essa retificação, que comporta uma ampliação semântica, deve-se à crítica feita pelo escritor Cassiano Ricardo à primeira edição da obra. O crítico, não satisfeito, lhe contesta novamente, em 1948, apontando que agora o conceito aparece com dois sentidos: o primeiro, no sentido coloquial de “cordialidade”, “gabado” pelos que nos visitam; o segundo, comportando uma “ética de fundo emotivo”, agora desprovida dos “sentimentos positivos e de concórdia”. No presente artigo, quando nos referirmos ao conceito ampliado o faremos sem aspas, reservando as aspas para o sentido corriqueiro.
Isso porque a leitura prevalecente ficou com a afirmação inicial, não tendo a nota de rodapé encontrado o mesmo êxito, ao menos para o público leitor mais amplo. Deixando essa polêmica de lado, o que importa é que Sérgio Buarque, na segunda edição, aprofunda a sua concepção de homem cordial. A simpatia pelos que lhe são próximos repele o raciocínio abstrato. O bacharelismo predomina sobre o estudo acurado. A própria religiosidade mostra-se superficial, pouco afeita aos ritualismos.
Voltando à providencial nota de rodapé, nosso historiador afirma que a inimizade, “sendo pública ou política”, se aparenta mais à “hostilidade”. No caso da amizade, se transposta para além da esfera familiar, se assemelha mais à “benevolência”, termo associável ao assistencialismo dos dias de hoje, que por sua vez se diferencia das políticas públicas efetivamente universais e igualitárias.
Portanto, a segunda chave de leitura do homem cordial sugere uma forma de manutenção das desigualdades uma vez que a esfera pública não incorpora a nação em toda a sua diversidade. Aí reside a radicalidade buarqueana.
O problema de “atualizar” um autor como Sérgio Buarque é que ele se deparava com os dilemas das transformações de uma sociedade oligárquica – onde “a democracia fora sempre um lamentável mal-entendido” -, e não com uma sociedade capitalista e excludente, como a nossa, a partir da qual se intentou erigir uma institucionalidade democrática.
As peripécias armadas pela história – nesse caso, de maneira terrível – podem fazer com que as intuições presentes numa grande obra adquirem novo significado se transplantadas para uma quadra distante. Isso a despeito do juízo do autor, imerso em outra historicidade. Afinal, ele próprio não receava “já ter gasto muito cera com esse pobre defunto” que buscamos ressuscitar?
Indo direto ao ponto, o bolsonarismo é um fenômeno cultural que extravasa para a esfera da política. Está enraizado no terreno das emoções. Pode nascer do coração tanto ódio? O Brasil de hoje parece comprovar que sim. A citação de Nietzsche na obra de Sérgio Buarque – “vosso mau amor de vós mesmos vos faz do isolamento um cativeiro” – pode agora ser lida sob nova chave. A “libertação”, quando mobilizada pelo ressentimento, se faz por meio da hostilidade, especialmente quando se defronta com um espaço público que promete resgatar os excluídos.
Algumas das manifestações do homem cordial são facilmente encontradas no bolsonarismo: o familismo, o privatismo, a pobreza da vida íntima, a religiosidade mundana, a recusa à pesquisa e ao conhecimento abstrato, “as ideias assimiladas pela intervenção assídua do sensível e do corpóreo”. Mas surgem agora transfiguradas numa sociedade capitalista, consumista e profundamente excludente, fundada no individualismo meritocrático como fonte de manutenção dos privilégios, além de marcada pela violência urbana que lhe serve de álibi.
Novas configurações emergem: igrejas evangélicas altamente lucrativas forjam um padrão de família idealizado; favores são distribuídos pelo Estado para desmontar a esfera pública em prol da família presidencial e de seus apaniguados milicianos; uma burguesia especuladora veste um discurso liberal extremado capaz de comprometer no longo prazo a sua rentabilidade; cristãos desfigurados se armam dos pés à cabeça para fuzilar os que se situam fora do clã ampliado; magistrados nas suas acrobacias artificiosas se arvoram a heróis nacionais; generais supostamente defensores da ordem atiçam a discórdia. Por quê?
No mundo dos sentimentos primários, como diria Sérgio Buarque “amar alguém é amá-lo mais do que os outros”. Os eternos párias de nossa história, até então tratados como os “outros” – pois menosprezados pelo status quo da cordialidade -, se transformaram sub-repticiamente nos novos “privilegiados” quando passaram a ter seus direitos inscritos na lei.
O raio da cordialidade foi estreitado como contraposição à expansão da esfera pública. E haja hostilidade para os que não se situam no seu perímetro! Estes são muitos e diversos. Mas para o homem bestial, aparecem como iguais na sua diversidade obscena. Se o estreitamento da cordialidade é compensado pela ampliação ilusória criada pelas redes sociais, a nova ética de fundo emotivo não cria relações de simpatia entre os “de dentro”, que sequer se reconhecem no mundo virtual ou nas “manifestações”. Aparecem como indivíduos e depois retornam aos seus espaços privados de sociabilidade. A nova ética está fundada no ódio aos “de fora”. Não existe mais o “desejo de estabelecer intimidade”. Ela encontra sentido ao demarcar as fronteiras com os que “merecem” a sua hostilidade.
Lula representou a “cordialidade” possível, no sentido tradicional, para os de cima e para os de baixo, ao ampliar a esfera pública para satisfazer interesses variados e contraditórios; além de se colocar ideologicamente como a quintessência do “homem cordial” em escala planetária, quando dava seus abraços sonoros em Bush e Chávez. Mas a fórmula encontrou os seus limites internos e externos. Além disso, era ingênua por não se saber apenas fórmula. Não tinha norte e seu enraizamento social era mais frágil do que imaginávamos.
Com a expansão da esfera pública, por obra da Constituição de 1988 e dos avanços programáticos e retóricos dos governos do PT, a cordialidade sofreu um profundo ataque. Duas figuras jurídicas geraram uma fissura na estruturação – alterando forma e conteúdo – da nossa desigualdade: as quotas sociais e raciais para as universidades federais e a PEC das empregadas domésticas. Foi aí, mais do que na economia, que Dilma selou a sua proscrição da vida nacional. Neste sentido, o homem bestial de Bolsonaro não é o oposto do homem cordial, mas a sua atualização deformada.
O ataque foi desferido no flanco deixado em aberto: a cordialidade como obra de socialização do PT junto à classe política ao assimilar as suas práticas ancestrais. Enfraquecido o “dominador” que tentara domesticar as elites – nas suas várias frações sociais e culturais -, estas partiram para uma aposta salvacionista cujo objetivo não é mais oferecer um modelo alternativo e concentrador para o desenvolvimento do capitalismo, tal como no golpe de 1964.
Não há projeto, mas tão-somente o desmonte das instituições, a preservação dos privilégios e ponto final. Liberdade para todas as formas de acumulação primitiva e violência cotidiana, a foto de Moro na parede da sala e o balão de Lula presidiário no quarto da criança. A ausência de ritualismo transformou-se em presepada. A dominação e a desigualdade não comportam mais disfarces. A “cordialidade” deixou de fazer sentido no plano da aparência.
“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. É o homem bestial que entra em cena. Ele sempre viveu por aí, em estado embrionário. A desigualdade implícita do homem cordial, porém, sempre o manteve afastado. Era a proteção sutil, não menos violenta, com que sempre contaram os poderosos.
Sim, o novo personagem se aproveita da bestialidade global de Trump e companhia. Mas no Brasil, ele encontrou um solo fecundo para se enraizar. O homem bestial revela assim as entranhas mais abjetas da nossa sociedade. Trará – está trazendo – estragos para as instituições e para a esfera da sociabilidade.
Mesmo que a família bestial deixe o trono antes do fim do mandato, o fenômeno veio pra ficar, impondo novos desafios. Como criar espaços públicos capazes de valorizar a diversidade da nossa sociedade, estabelecendo novos valores, normativas e diretrizes de modo a barrar o capitalismo selvagem que, sob nova feição, avança como erva daninha? Tudo indica que uma transição “cordial” não se faz mais possível.
Alexandre de Freitas Barbosa é professor de História Econômica e Economia Brasileira do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP).