De acordo com uma nota
divulgada pelo STF, o acordo é que as emendas parlamentares serão mantidas, mas deverão respeitar critérios de transparência, rastreabilidade e correção. Na reunião foi acordado que a
transferência especial (“emendas Pix”) devem ter identificação antecipada do objeto, concessão de prioridade para obras inacabadas e prestação de contas perante o Tribunal de Contas da União (TCU).
As demais emendas individuais precisam estar nos termos de regulação acerca dos critérios objetivos para determinar o que são impedimentos de ordem técnica a serem estabelecidos em diálogo institucional entre o Executivo e o Legislativo. Tal regulação deve ser editada em até dez dias.
Já as emendas de bancada serão destinadas a projetos estruturantes em cada estado e no Distrito Federal, de acordo com a definição da bancada, vedada a individualização. Por fim, as emendas de comissão serão destinadas a projetos de interesse nacional ou regional, definidos de comum acordo entre Legislativo e Executivo, conforme procedimentos a serem estabelecidos em até dez dias.
“Fica acordado que Executivo e Legislativo ajustarão o tema da vinculação das emendas parlamentares à receita corrente líquida, de modo que elas não cresçam em proporção superior ao aumento do total das despesas discricionárias. O relator irá, oportunamente, reexaminar o processo”, diz a nota do Supremo.
Nesta segunda (19), o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva se reuniu com o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, e hoje com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, para diminuir as tensões. Isso porque o Congresso culpa em parte o governo pela decisão do ministro do Supremo Flávio Dino de
suspender o repasse das emendas na semana passada para, supostamente, favorecer Lula.
Na sexta (16), o STF acompanhou por unanimidade a decisão de Dino. A suspensão demanda que deputados e senadores apresentem regras e mecanismos para garantir mais “transparência, rastreabilidade e eficiência” na liberação desses recursos.
Na decisão liminar, Dino
ressalvou recursos destinados a
obras já iniciadas e em andamento ou a ações para o atendimento de calamidade pública. Ainda assim, as Mesas Diretoras da Câmara dos Deputados e do Senado e mais nove partidos entraram com pedido de suspensão da decisão do STF e ensaiaram
medidas de retaliação, como o veto pela Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO) a uma medida provisória para dar
crédito extraordinário ao orçamento do Poder Judiciário.
Afinal, a decisão do STF distorceu o equilíbrio que deve haver entre os Poderes ou foi legítima?
A Sputnik Brasil ouviu alguns especialistas para avaliar o atual contexto, como a cientista política e professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) Clarisse Gurgel.
Ela avaliou que a manutenção dessas emendas é uma derrota para o Supremo.
“Para quem argumenta que boa parte dos retrocessos que se mantêm se deve ao fato de estar refém do Centrão e do Parlamento, acho que o presidente Lula demonstrou que segue refém. Acho que esse é o recado que está dado diante disso que estão chamando de acordo, mas que está mais para uma espécie de encerramento do assunto, como a gente tem visto que tem sido a solução encontrada constantemente por esse governo atualmente.”
Segundo ela, a simples existência desse tipo de emenda é altamente prejudicial para a sociedade e o serviço público como um todo por ser “uma prática efetivamente de retirada de recursos públicos para uma base eleitoral do parlamentar”. Gurgel destacou, no entanto, que o STF foi determinante para o enfrentamento da falta de transparência no uso dessas emendas.
“Assim como teve em outros enfrentamentos fundamentais para um mínimo de civilidade e um mínimo de democracia que o Brasil possui”, comentou. “Foi um enfrentamento fundamental a ser feito e que traz à tona para a sociedade civil um debate que não estava sendo feito em torno dessa execução orçamentária via Poder Legislativo”, defendeu Gurgel.
Mestre em direito constitucional pela Universidade de São Paulo (USP), o especialista em direito e processo constitucional, Antonio Carlos de Freitas Junior frisou que, embora o Legislativo tenha a função de controlar a execução orçamentária e a definição dos rumos a serem seguidos pelo Executivo, com as emendas impositivas, o Legislativo força o governo a ter despesas específicas, direcionadas a determinado projeto definido pelo próprio deputado ou por uma bancada.
“Nesse cenário, o Judiciário entendeu que estaria havendo ‘crescimento’ da função legislativa sobre o Executivo, barrando tal crescimento. Sendo assim, não é possível dizer que o STF está distorcendo o equilíbrio entre os Poderes, que vinha sendo distorcido pela atuação do Legislativo.”
Para ele, o resultado da reunião foi positivo tanto para o Congresso como para o STF:
“A manutenção da impositividade das emendas individuais, inclusive as ‘emendas Pix’, é uma vitória dos parlamentares que provavelmente cederam no que diz respeito às emendas de bancada e de comissão, as quais agora devem ser voltadas a projetos mais amplos, inclusive em acordo com o Executivo. […] Pode-se dizer que, com a diminuição do controle dos congressistas sobre as emendas, o STF saiu ganhando esse embate.”
O cientista político e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Carlos Ranulfo ponderou que as emendas impositivas, criadas em 2015, são constitucionais:
“O que acontecia até 2015? O deputado fazia a emenda. O Congresso, então, enviava as emendas para o governo, o governo executava as emendas se quisesse, eram autorizativas. Depois de 2015, aprovou-se uma mudança, e as emendas passaram a ser impositivas […]”, explicou.
As emendas impositivas são aquelas que o governo é obrigado a executar. Somente neste ano as emendas individuais de transferências especiais somam R$ 8,2 bilhões. Já as emendas Pix, que integram esse rol de emendas, são totalmente inconstitucionais, afirmou ele:
“É o tipo de emenda que você não sabe quem mandou, para onde foi, para que serve. Aí é um escracho. Pegar bilhões de orçamento público e mandar para um deputado, sem que ninguém saiba quem mandou, para que e para onde”, comentou.
Gurgel atentou ainda para o fato de que emendas como as de bancada envolvem uma tríade perigosa e danosa em vários aspectos:
“Uma tríade que envolve a administração pública indireta, muitas vezes, as autarquias, as fundações, o parlamentar ou o deputado e uma organização social, uma terceira, que vai no fundo ser a que vai arrebatar boa parte do recurso disponibilizado por essas emendas”, disse ela. “Comprometendo todo o serviço público, projeto de Estado e de país.”
Em 2022, o STF julgou pela inconstitucionalidade das
emendas do orçamento secreto, que seguem a mesma lógica das emendas Pix. Ranulfo argumentou que a decisão de Dino de suspender todas as emendas impositivas foi um
mecanismo de pressão.
“O STF não está proibindo a emenda de ser impositiva. Está dizendo que, enquanto não se resolve o problema da transparência, que é o problema das emendas Pix, todas as emendas estão suspensas”, opinou ele.
A perda de barganha do governo com as emendas impositivas é, sim, um problema, segundo ele, embora faça parte do jogo político. Ranulfo é contrário à possibilidade de haver emenda de deputado ao orçamento, visto que o parlamentar não tem como definir o que é prioridade nacional.
“O governo da Dilma [Rousseff] era fraco, o [Michel] Temer era fraco, o [Jair] Bolsonaro era fraco. E agora o Legislativo se tornou muito poderoso. Mas isso é do jogo. É a relação Executivo-Legislativo. Acho que o Supremo não tinha que se meter nisso. Agora, falta de transparência, aí sim.”
Segundo Clarisse, essa perda de poder do Executivo está associada ao processo de conversão do Estado em empresa competitiva com uma lógica de mercado e voltada para a valoração do capital, para solucionar os problemas do grande empresariado.
“E o Estado faz um movimento […] de reter boa parte do seu orçamento para valorar o capital desse empresariado e, também, os seus serviços assumirem uma feição cada vez mais híbrida, em que o público e o privado ficam misturados a ponto de surgir figuras excêntricas, como a própria organização social, a OS, como uma figura que está associada também a essa categoria das emendas parlamentares.”
O processo de destinação individual de emendas é uma das várias portas abertas para a corrupção no Brasil, afirmou o cientista político, e o STF tem legitimidade para exigir
transparência desse tipo de destinação.
A falta de transparência beneficia quem? Beneficia o parlamentar. Ele não tem que prestar conta, ele pode mandar para onde quiser”, explicou.
O professor da UFMG frisou, ainda, que existem vários processos no TCU referentes a irregularidades em repasses das emendas Pix:
“Se tivéssemos condição de fazer uma auditoria e fiscalizar a aplicação de emendas no Brasil, sairiam cobras e lagartos. O processo de emendas gera absurdos. Por exemplo, às vezes você tem uma cidade que recebe 20 ambulâncias, e as cidades vizinhas não recebem nenhuma. Por quê? Porque a cidade x votou no deputado. Isso não é critério de distribuição de recursos da União. Tem que ter explicação, tem que dizer qual é a prioridade, tem que apresentar projeto, tem que justificar.”
A professora engrossa o coro do colega:
“Boa parte do dinheiro de um parlamentar vai para uma organização social que geralmente nem existe e que está vinculada a esse parlamentar, que não vai encaminhar nada que envolva melhoria do serviço público propriamente”, afirmou.
Freitas Junior disse acreditar que as tensões sobre esse assunto parecem ter sido resolvidas. Já os demais embates, “como as discussões sobre o marco temporal das terras indígenas e a questão do porte de drogas que hoje colocam frente à frente Legislativo e Judiciário, ainda seguirão”, ponderou.
Presidencialismo de coalizão em crise
Para Antonio Carlos, o Brasil vive um momento de pré-colapso do sistema de governo presidencialista brasileiro, devido à interferência desmedida no manejo das verbas públicas por parte do Legislativo e à pouca responsabilidade sobre o programa governamental.
É necessário que haja reformas institucionais e constitucionais para melhorar o sistema de governo presidencialista, o sistema de governo brasileiro e essa interação entre Legislativo e Executivo:
“É preciso que a classe política, mas especialmente a população, comece a discutir novas formas de sistema de governo, por exemplo, o parlamentarismo, que acho importante que seja discutido de maneira a permitir essa atuação do Congresso no orçamento e nas políticas públicas, mas também responsabilizá-los, colocando o primeiro-ministro formado por maioria com responsabilidade”, completou.