Policial, profissional do Estado, apontando uma arma para uma favela. Ele mira de cima e usa um capacete.(Crédito: Marcelo Horn/Wikimedia Commons)
A violência do Estado no Brasil atinge especialmente negros e pobres, categorias que, não por acaso, costumam estar relacionadas, e assume os contornos de uma “guerra justa” contra a periferia
João Rafael G. de Souza Morais / Le Monde Diplomatique
Comecemos relembrando um caso emblemático. Em 3 de fevereiro de 2014, um adolescente em situação de rua, acusado de furto, foi amarrado em um poste no bairro do Flamengo (região nobre da capital fluminense), humilhado e espancado por moradores.
Praticamente todos os dias, deparamo-nos com cenas como essa, que remontam à sociedade escravista mais longeva do Ocidente moderno, onde, sob o jugo do açoite, foram forçados a trabalhar dois terços de todas as pessoas sequestradas e traficadas da África para as Américas, número dez vezes maior que o do sul dos EUA, a outra grande nação com passado escravista no continente. Apesar desse traço histórico marcante, que persistiu por quase quatro dos cinco séculos de existência do Brasil desde a invasão portuguesa, a sociedade brasileira ainda reluta em abordar com a devida seriedade o problema do racismo estrutural – legado quase como uma “herança natural” desse passado – e que precisa ser enfrentado por meio de políticas públicas. Um negacionismo que remete às origens da República e não resiste à análise dos fatos.
Apartheid racial
Após a Abolição, a República teve início com forte ímpeto modernizador inspirado nas nações europeias da belle époque, o que levou a um projeto de “embranquecimento” da população brasileira como política de Estado e constituído por duas dimensões: uma histórica, a partir da reconstrução da narrativa do passado da escravidão, recorrendo-se até mesmo à destruição de documentos e evidências desse passado; e a eliminação física dos negros. “Procurou-se, num primeiro momento […] defender que o Brasil seria, no futuro, naturalmente mais branco, fosse pela seleção natural, fosse pela entrada de imigrantes brancos. […] O suposto era que a civilização era branca, e que povos mestiços não apresentavam bons prognósticos nesse sentido”1. Os proponentes dessa estratégia, discípulos do racismo científico do século XIX, que associava o progresso ao europeu e anglo-saxão, entendiam o negro como ameaça (a “ameaça racial”) e a mestiçagem seria o caminho, em etapas, para a sua liquidação.
Um século e meio depois, a realidade em qualquer cidade brasileira apresenta uma estrutura racista complexa. A ocupação desigual dos espaços já indica que as relações sociais estão determinadas por uma variável racial, com sérias consequências para a democracia e a justiça.
Vamos a alguns fatos: pessoas negras estão em menos salas de aula (sobretudo, as de melhor qualidade), menos postos de chefia e têm menos poder de consumo. E menos direito à vida: estatísticas mostram que a maioria das vítimas de homicídio no Brasil é composta por pessoas de pele negra (76,5% segundo dados do Atlas da Violência). E no sistema prisional não é diferente, a maioria dos encarcerados é composta por negros. Nas relações sociais, vemos negros quase sempre servindo e raramente sendo servidos, e estão menos presentes em espaços voltados para a cultura e a ciência, porque normalmente são caros e estão nas zonas ricas da cidade. Neste ponto, é importante acentuar que até mesmo os transportes entre as zonas mais abastadas e a periferia obedecem a horários impeditivos para uma experiência de lazer após a jornada de trabalho. A cidade brasileira, como organismo social, funciona sob um apartheid racial que se manifesta por diversas dimensões da experiência cotidiana.
Uma pesquisa realizada por Octavio Ianni (2001)2 ilustra bem esse quadro também no âmbito privado. Para analisar as relações interraciais brasileiras, a pesquisa orientou-se pela pergunta “você aprovaria o casamento do seu amigo, irmão, irmã ou de você mesmo com um negro ou mulato?” Vamos aos resultados:
-Não gostariam que o(a) amigo(o) casasse-se com negro(a) 35% / mulato(a) 29%
-Não gostariam que o irmão se casasse com negro(a) 74% / mulato(a) 70%
-Não gostariam que a irmã se casasse com negro(a) 76% / mulato(a) 72%
-Não gostariam de casar-se com negro(a) 89% / mulato(a) 87%
A rejeição aumenta à medida que a relação se aproxima do círculo íntimo do entrevistado.
Ato contínuo, durante uma pesquisa financiada pela Unesco na década de 1950, inspirada pela obra de Gilberto Freyre, a fim de estudar a propagada “democracia racial brasileira”³, Florestan Fernandes concluiu que “o maior legado do sistema escravocrata, aqui vigente por mais de três séculos, não seria uma mestiçagem a unificar a nação, mas antes, a consolidação de uma profunda e entranhada desigualdade social”.
Esses dados remontam à escravidão como a grande questão da formação social brasileira. Por isso, qualquer exame da realidade social do país, mesmo a mais contemporânea, não pode ignorar a questão racial legada por ela.
Mas muito se tentou (e se tenta) esquivar do problema. Durante o século XIX, o IHGB trabalhou para produzir uma história oficial pautada no patriotismo e harmonia nacional, “mesmo que, por vezes, tivesse que sacrificar a pesquisa mais descomprometida para eleger textos que funcionavam como propaganda de Estado”. A metáfora das três raças de Freyre seria, por muito tempo, um dos elementos centrais desse projeto de construção da narrativa brasileira. “Ou melhor, um certo Brasil, uma determinada utopia, com a qual convivemos até os dias de hoje como se fosse realidade”⁴.
É a negação dessa memória que consubstancia, em primeiro lugar, a segregação dos estratos negros (e pobres), submetidos ao estigma do trabalho braçal, que confere baixo status. A abolição não alterou a percepção social sobre os escravizados e seus descendentes, que ainda carregam esse estigma lastreado na escravidão e fruto de uma engenharia social que nos dá a medida de um apartheid informal.
Guerra às drogas ou à periferia?
“Bandido bom é bandido morto”. Essa máxima, tão fecunda quanto sinistra, traduz o estado de securitização no trato com a periferia. Mas quem é o “bandido”, essa figura que compele discursos inflamados contra as favelas, tornando legítimo um estado de exceção nas periferias brasileiras?
Segundo Holanda5 (1994), a dignidade e o status na sociedade portuguesa, que nos deu berço institucional, estavam associados às profissões ligadas ao intelecto. Os trabalhos manuais eram tratados com desprezo por serem associados à escravidão. E é esta a razão que sustenta o desprezo pela vida das populações periféricas: sua função social servil e herdeira da condição do escravizado, cujo direito à vida é condicionado à sua utilidade braçal e, logo, pode ser relativizado.
Esse é o movimento social que enseja o discurso “bandido bom é bandido morto”. “Bandido” consiste num arquétipo distinto de “criminoso”. Enquanto este é qualquer um que infrinja a lei e precisa, pelo menos formalmente, sofrer sanções dentro dos limites legais, o bandido causa repulsa e não desperta a mínima solidariedade como ser humano. Ou seja: a forma arquetípica do bandido precede o crime, assumindo a natureza de um “inimigo interno”, legitimando a militarização. Conforme a mais elementar teoria política nos ensina, consumado o contrato social que dá vida ao Estado, qualquer ameaça externa aos limites de sua soberania justifica a guerra justa. E uma condição necessária ao combate é a identificação clara do inimigo: neste caso, negro, pobre, malvestido, sem educação e morador de periferia.
Identificado o alvo (o negro favelado) e o objetivo estratégico (o controle da periferia), a política de combate às drogas se enuncia como a tática, e as polícias militarizadas como o meio operacional dessa guerra.
Note-se que o narcotráfico é um mercado de US$500 bilhões por ano. No entanto, os acusados e condenados pelo crime de tráfico de drogas que abarrotam as celas brasileiras são pessoas negras e pobres, com baixa escolaridade e, em muitos casos, presos sem portar nenhuma arma, os “varejistas do tráfico”, que o criminólogo Nils Chriestie classificou de “acionistas do nada”. Os flagrantes revelam que muitas dessas prisões são realizadas com a droga em pequenas quantidades e sem porte de armas. Segundo Zaccone6, “desprovido do capital necessário para fazer parte como acionista do negócio ilícito, o ‘estica’ – essa figura que atua na ponta do mercado de drogas, no varejo – se transforma em revendedor comissionado […], oferecendo o único bem de valor que lhe resta, sua própria liberdade de ir e vir”.
Sob a política de “guerra às drogas” a militarização da Segurança Pública pode ser definida nos termos de um processo de securitização baseado na Doutrina de Segurança Nacional, herdada da ditadura militar e desenvolvida para o combate ao inimigo interno. Essa doutrina moldou instituições de Segurança Pública voltadas para a repressão sistemática e militarizada contra a periferia, com o recurso eventual ao emprego direto das Forças Armadas.
E de onde vem a política de “guerra às drogas”?
O uso do proibicionismo como arquitetura de segurança contra populações marginais não é invenção do Estado brasileiro. Em 1971, o governo Nixon, em busca de popularidade durante o conturbado período de lutas sociais por direitos civis e contra a Guerra do Vietnã, adotou uma agenda antidrogas que visava criminalizar grupos “indesejados” pelas elites norte-americanas. Segundo seu secretário, John Erlichman: “sabíamos que nós não podíamos criminalizar quem era antiguerra ou negro, mas convencendo a população a associar hippies à maconha e negros à heroína, e depois criminalizando fortemente os dois, poderíamos desestabilizar ambas as comunidades”⁷.
Em seguida, no pós-Guerra Fria, os EUA buscavam a continuidade de sua liderança perante aliados e a manutenção da tutela sobre a América Latina. Os dois pilares que municiaram esse propósito estratégico foram a política econômica neoliberal e a militarização contra as drogas, com o consequente agravamento dos problemas sociais que potencializaram a violência contra as populações marginalizadas.
Para um exame mais empírico do caso brasileiro, atentemos para a canção do Batalhão de Operações Especiais do RJ (BOPE): “Você que me ouve, preste muita atenção/Eu estou chegando/E ai!? Mandou me chamar?/O BOPE vai te pegar! […] Homens de preto, qual é sua missão? Entrar pela favela e deixar corpos no chão! Homens de preto, que é que você faz? Eu faço coisas que assusta o satanás! […] Cachorro latindo/Criança chorando/Vagabundo vazando!/É o BOPE chegando! […] É o BOPE matando! […] O BOPE é mal, quebra geral”.
Como sinaliza a canção, a implicação prática da militarização dos órgãos de Segurança Pública é a chancela à violência policial, que atende à preservação de uma dada ordem e se dirige contra o “bandido”, que tem cor e CEP bem definidos. Essa figura, como caricatura, pode ser definida como “um homem ou mulher sem nenhum limite moral, que ganha a vida a partir de lucros imensuráveis às custas da desgraça alheia, que age de forma violenta e bárbara, ou seja, uma espécie de incivilizado, aos quais a prisão é destinada como metáfora da jaula. O ‘traficante’ é sempre um ser perigoso e seu encarceramento se justifica para além da realização do direito, como uma verdadeira necessidade face à sua natureza de ‘fera’. O discurso do medo ganha retoques inquisitoriais com a ‘demonização’ do traficante. […] Associando a imagem do ‘traficante’ à de um ser violento e cruel, ao contrário da real dimensão daqueles que são selecionados para ingressar no sistema penal pela prática do delito de tráfico, o discurso moral na perspectiva da diferenciação (traficante x usuário) passa a exercer um papel relevante no sistema penal. Cria-se assim uma verdadeira presunção de violência, sem previsão legal, para aqueles autuados no tráfico de drogas. […] Como se todos aqueles que respondem pelo delito de ‘tráfico de entorpecentes’ fizessem parte de uma única categoria ‘herética e violenta por ‘natureza’”⁸.
Para entender o problema, é preciso olhar não só para as polícias, mas para o direito criminal. Segundo Zaffaroni9 (2007), o poder punitivo penal produz um processo de seleção criminal. Como não é possível a nenhum sistema penal prender, processar e julgar todos que cometem crimes, o sistema precisa fazer escolhas. Essas escolhas obedecem a princípios singulares a cada cultura política, social, policial e jurídica. A necessidade de dar respostas à sociedade – demonstrar eficiência – condiciona escolhas segundo o custo benefício para os agentes, que na ponta da lança são as polícias. Elas determinam a seleção daqueles que são levados ou não à justiça, obedecendo aos limites ideológicos e sociais em que estão imersas, tanto enquanto instituição, quanto no âmbito da psicologia dos seus agentes individuais.
Essas escolhas explicam os dados referentes às ações policiais e à Justiça Criminal, que se estende ao Sistema Penitenciário, que atestam que a taxa de homicídios de negros chega a uma razão 4 vezes maior que a de brancos. No caso das mulheres, a taxa também segue uma curva racial: em uma década, o número de mulheres negras vítimas de homicídios dolosos cresceu 15,4%, enquanto a taxa de não negras decresceu 8%¹⁰.
Os números do sistema carcerário não ficam atrás e também apontam para a iniquidade, com 64% dos presos sendo negros, dos quais apenas 13,6% cumprem pena por crimes violentos, e 40% estão em regime provisório, aguardando julgamento. 5,1% cumprem pena por posse ilegal de armas e 28,47% estão encarcerados sob acusação de tráfico de drogas. Considerando o cruzamento de dados, quase 45% estão presos por crimes contra o patrimônio, e em torno de 80% dos presos por tráfico são jovens entre 16 e 28 anos, réus primários, cuja grande maioria foi capturada desarmada. Não obstante, são confinados a no mínimo cinco anos de reclusão entre facções violentas às quais precisam se alinhar para sobreviver, uma vez que o Estado não cumpre sua obrigação de garantir as vidas sob sua custódia. “Ou seja, além de não evitar as mortes violentas intencionais e de não as investigar, o Estado Brasileiro prende muito e mal”¹¹. Como salienta Zaccone12, “aos jovens consumidores da Zona Sul aplica-se o paradigma médico, através de atestados médicos que garantem soluções correcionais fora dos reformatórios, ao contrário do destino dado aos jovens das classes baixas, para os quais se aplica o paradigma criminal”.
Que polícia?
Ao aproximar a segurança da lógica da guerra, a militarização ressignifica o valor da vida dos cidadãos vulneráveis – danos colaterais – e dos próprios policiais, como baixas de combate e, portanto, aceitáveis em alguma medida.
A situação dos policiais militares merece atenção e constitui variável importante para o quadro da violência. Reféns de condições de trabalho insalubres, submetidos ao constante risco de morte violenta e impedidos de acessar direitos trabalhistas básicos a qualquer trabalhador, são treinados para a guerra e cobrados por resultados dentro de circunstâncias que se agravam a cada dia. Dentro dessas balizas, produzir resultados se torna prender e matar. E a orientação das duas práticas (prisões e homicídios) acompanhará as tendências ideológicas hegemônicas, organizadas na doutrina militar que orienta o treinamento e as ações policiais.
Assim, serão os grupos sociais mais vulneráveis, aqueles mais suscetíveis à escolha dos policiais, porque estes projetarão seus próprios preconceitos enquanto integrantes de uma instituição voltada, historicamente, para reprimir o sujeito periférico e racializado. Nos territórios vulneráveis, a tendência será atuar como força de ocupação lidando com inimigos, o que explica as milhares de execuções extrajudiciais sob o estatuto dos “autos de resistência”, ante o beneplácito do MP sem qualquer investigação e arquivados com o aval da Justiça. O agente policial, assim, vai à caça do sujeito socialmente vulnerável, e “socialmente vulnerável” torna-se sinônimo de “vulnerável à abordagem policial”.
À guisa de conclusão, como aponta Soares¹³, “a boa forma de uma organização é aquela que melhor serve ao cumprimento de suas funções”. E a militarização não atende à função policial, pois consiste num processo de instrumentalização da violência do Estado contra a periferia, ao arrepio da lei e pela via da securitização, legitimando o morticínio diário de cidadãos brasileiros que vivem informalmente à margem da Constituição.
*João Rafael G. de Souza Morais é historiador, doutor em ciência política e professor no Instituto de Estudos Estratégicos da UFF.
REFERÊNCIAS
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional
1 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
2IANNI, Octavio. Teorias da globalização. 9a edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
3 FERNANDES, Florestan. Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense, 1986
4 Schwarcz, 2019, p. 18
5 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.
6 ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada: quem são os traficantes de droga. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
7 MARTINS, Renato. Relatos do front: o outro lado do cartão postal. Rio de Janeiro, 2018.
8 Zaccone, 2015, p. 118
9 ZAFFARONI, Eugênio Raúl. A esquerda tem medo, não tem política de segurança pública. IN Revista Brasileira de Segurança Pública, Brasília: SENASP, 2007.
10 SOARES, Luiz Eduardo. Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos. São Paulo: Boitempo, 2019.
11 Soares, 2019, p. 24
12 Zaccone, 2015, p. 21
13 Soares, 2019, p. 3