Dos avançados saberes do povo inca, que deixaram vestígios de uso do ouro em cirurgias cranianas realizadas há mais de 1.600 anos, até a
estrutura urbana de cidades astecas, com padrões sofisticados de infraestrutura, o conhecimento dos povos originários foi, por séculos, deixado de lado para fazer frente a uma
visão europeia sobre o seu próprio passado. Assim permaneceram moldadas as populações das Américas, em que a colonização era tratada pela história como crucial para “trazer civilidade” pela Europa.
Entretanto, de umas décadas para cá, o
revisionismo histórico tem dado outro papel aos povos que originalmente formaram o continente americano e tem impulsionado, inclusive, mudanças importantes nos Estados modernos.
É o que explica ao podcast
Mundioka, da
Sputnik Brasil, o historiador e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF)
Daniel Aarão Reis Filho, sobre esse fenômeno que tem questionado cada vez mais a destruição causada por portugueses, espanhóis, franceses e ingleses, por exemplo, nos
tantos anos de exploração desenfreada da região.
“Nisso também se destaca a Bolívia, que chegou a aprovar uma Constituição que declara o país como Estado Plurinacional, ou seja, reconhecendo o caráter nacional dos povos originários que lá habitam. E há uma tendência em toda a parte, inclusive no Brasil, desses povos se organizarem, lutarem por seus direitos e suas especificidades, já que por muitos séculos imaginou-se que eles iriam perder suas identidades […]. São povos que têm todo um papel a desempenhar na construção dos atuais Estados nacionais americanos” acrescenta.
‘Não há povos avançados ou atrasados’
Conforme o especialista, o conceito de uma sociedade avançada ou não foi, por muitos séculos, atrelado à visão europeia, que mede a complexidade dos povos apenas por seu desenvolvimento econômico e sua capacidade de produzir mercadorias.
Diante disso, as antigas civilizações que
habitavam as Américas antes da invasão europeia — a exemplo dos
incas, maias, astecas, tupis e tupiniquins — eram colocadas até nos livros de história como inferiores. “Mas há muito tempo que isso é questionado por antropólogos e, com muita razão, os historiadores incorporaram essa noção de que não é possível falar em povos avançados versus povos atrasados.”
“Cada um tem critérios diferentes, condições de desenvolvimento distintas, além de várias concepções religiosas e de vida. Muitas vezes, povos considerados atrasados, do ponto de vista tecnológico, têm concepções de vida que poderiam ser consideradas bastante sofisticadas e complexas”, justifica.
Para dominar o continente, os europeus conseguiram se sobressair aos povos originários por conta de sua capacidade política, ao aproveitarem das próprias contradições que existiam nas Américas, aponta o historiador. “Entre eles também havia desigualdades sociais, opressão, exploração econômica, guerras e conflitos. Eram povos que tinham suas contradições, como toda a sociedade humana. No México, por exemplo, o líder do colonialismo espanhol soube muito bem aproveitar essas diferenças, enquanto aqui no Brasil os portugueses exploraram as rivalidades para se tornarem vitoriosos e afirmarem sua supremacia.”
Exploração de riquezas e desequilíbrio social
Ao se estabelecerem no continente, a preocupação principal dos europeus era
explorar as riquezas até a
exaustão dos recursos naturais. No caso brasileiro, foi o que ocorreu com o pau-brasil, a cana de açúcar, o ouro e o café. Junto a essa exploração desenfreada, a população local também era escravizada.
“Houve muita resistência, e essa situação evidentemente desorganizou as comunidades dos povos originários. Além disso, os colonizadores europeus traziam doenças para os quais eles não estavam preparados, provocando também uma mortandade muito grande”, diz.
Até que, em função da resistência ao trabalho forçado, os europeus passaram a apostar nos povos africanos como escravos, através do tráfico negreiro. “Vinham para o Brasil, mas também houve no Peru, na Colômbia, na Venezuela.”
“Há uma estimativa de mais de 12 milhões de africanos forçados a fazer o trabalho escravo. Isso aconteceu porque os povos originários possuíam padrões tecnológicos muito diferentes, o que tornava difícil serem escravizados. Já na África, os padrões eram mais semelhantes, sobretudo na agricultura, aos adotados pelos europeus.”
Fronteiras moldadas pelos interesses colonizadores
Depois de mais de três séculos de exploração intensa, as então colônias começaram a viver o processo de independência, cada região com sua característica. Mas mesmo na delimitação das fronteiras dos novos Estados, o especialista acrescenta que a divisão territorial arbitrária feita pelos europeus impactou a identidade de cada povo. “Elas foram estabelecidas de acordo com os interesses dos colonizadores, o que introduziu um artificialismo claro […]. Mas hoje esses Estados estão relativamente consolidados”, explica.
Para reduzir tensões e aproximar as sociedades das Américas, o especialista cita a importância da
integração regional mais expressiva, tanto no campo político quanto cultural e economicamente.
As atuais fronteiras nacionais, diz, foram impostas pelo colonialismo e pelas guerras de independência, “não tendo nenhuma validade do ponto de vista dos interesses maiores dos povos existentes”.
“O fato é que se estabeleceram e se consolidaram e, agora, é esperar que as políticas de integração possam ir gradativamente superando essa coisa da questão nacional”, finalizou.