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quinta-feira, 28 março, 2024

Povos indígenas isolados podem perder a proteção de suas terras

Por Laura Toyama e Samantha Prado/Le Monde Diplomatique

Quatro portarias de restrição de uso expiram até o fim deste ano e organizações se mobilizam para garantir a renovação

Para além da proposta do Marco Temporal, cujo julgamento pelo STF foi adiado para o dia 1° de setembro, comunidades indígenas enfrentam também outras ameaças. Povos indígenas isolados e de recente contato correm risco de perderem, nos próximos meses, o regulamento que torna ilegal a invasão de suas terras. Trata-se das portarias de restrição de uso, um dos mecanismos utilizados pela Fundação Nacional do Índio (Funai) para preservar terras indígenas que ainda não foram demarcadas, apesar do direito previsto na Constituição.

Atualmente, são sete territórios que estão sob restrição de uso. Essas portarias precisam ser renovadas a cada três anos e, neste semestre, quatro delas irão vencer: a da Terra Indígena Jacareúba/Katawixi (AM), Pirititi (RR) e Ituna Itatá (PA) — com vencimento entre dezembro de 2021 e janeiro de 2022 — e a do povo Piripkura (MT), cujo vencimento acontece em 18 de setembro. “Se as portarias não forem renovadas será uma catástrofe. Há muita pressão política para que não haja renovação” relata Sarah Shenker, coordenadora da campanha da Survival International pela proteção das terras dos povos indígenas isolados.

Imagem: Gleison Miranda/FUNAI

As restrições de uso são um dos poucos mecanismos que protegem terras de povos mais vulneráveis (sem a devida demarcação) e que, em tese, impediria invasores de adentrar nesses territórios. Apesar disso, Sarah conta que mesmo com as portarias, o governo federal não cumpre seu papel de garantir os recursos para que a Funai e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) possam fazer o trabalho de fiscalização e monitoramento nessas regiões. “O problema é a falta de recursos e, principalmente, a falta de vontade política para cumprir com essa função. Não é só apatia, é uma tentativa explícita e intencional de roubarem essas terras e não terem mais, como eles dizem, ‘o obstáculo dos povos indígenas’”, diz.

A TI Piripkura é um dos exemplos disso: entre 2020 e 2021 perdeu-se o equivalente a 1.340 estádios de futebol por conta do desmatamento ilegal, segundo dados do Instituto Socioambiental. Apenas entre agosto e dezembro de 2020, foram desmatados cerca de 875 hectares. “Nessa terra, há fazendeiros da pecuária e grileiros tentando entrar. Muitos já estão desmatando a floresta para tentar abrir espaço para o gado, ao mesmo tempo que aproveitam para realizar tráfico de madeira ilegal”, conta Sarah.

 

Evidências de não renovação

As organizações indígenas e indigenistas temem que as portarias de restrição de uso não sejam renovadas por conta do posicionamento do governo federal. O presidente Jair Bolsonaro afirmou, quando ainda estava em campanha, que não iria demarcar nem um centímetro de terra para os indígenas ou quilombolas. Além disso, o presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier, questionou as restrições de uso dizendo que deveriam ser revisadas. Em entrevista ao jornal Valor Econômico, ele disse que “considera que há exagero nas restrições, provocando prejuízos à atividade privada”.

A TI Ituna Itatá, no estado do Pará — cujo vencimento acontece no fim do ano — foi a terra indígena mais desmatada do Brasil em 2019. De acordo com o Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Isolados e de Recente Contato (OPI), a Funai produziu mapas (veja abaixo) com proposta de redução desta TI. Além disso, o senador Zequinha Marinho (PSC-PA) enviou ofício pedindo o cancelamento da portaria de restrição de uso deste território.

Carta do Senador Zequinha Marinho (PSC-PA), exigindo a anulação da portaria de restrição de uso do território Ituna Itatá, em setembro de 2019 (Fonte: Relatório do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Isolados e de Recente Contato – OPI)

 

No documento, encaminhado ao ex-ministro-chefe da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, o senador alega o desconhecimento da existência do povo isolado que ocupa o território, além de acusar servidores da Funai em operação de fiscalização de estarem “queimando casas, destruindo tudo na região, e causando verdadeiro terror”. No entanto, a base de dados oficial da instituição indica que os responsáveis pelas atividades predatórias na região são os fazendeiros e grileiros.

Angela Kaxuyana, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), também expressa seu temor com a possibilidade de entrega das terras de povos isolados à exploração de madeireiros, ruralistas e garimpeiros. “Se o governo Bolsonaro acabar com as restrições de uso será mais um desastre e um atentado contra a vida desses povos. Faz parte do grande plano de desmonte da política indigenista no nosso país”, declara.

Mapas da Funai que indicam um plano de redução extra-oficial do território Ituna Itatá (PA) (Fonte: Relatório do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Isolados e de Recente Contato – OPI)

 

O trabalho de reconhecimento das terras e os Grupos Técnicos

A demarcação territorial, que garantiria a proteção desses territórios indígenas, é um processo longo, dividido em algumas etapas. Uma delas é a instituição de um Grupo Técnico (GT), pela própria Funai, no qual servidores são nomeados para coordenar estudos na área a ser demarcada. Há alguns critérios para reconhecer aquele território como indígena, conta Fabrício Amorim, membro do OPI, como a observação de indícios de moradias, reprodução social e reprodução cultural, todos bases para a projeção de uma delimitação. “O grupo cria um relatório, que tem até 90 dias para ser contestado, antes de ser  encaminhado e assinado pelo presidente da Funai”, esclarece. “O relatório deve ser aprovado pelo ministro da Justiça, que considero a parte mais crucial do processo, depois disso a terra indígena já usufrui dos direitos da demarcação”, explica.

O OPI denunciou a nomeação de servidores ligados ao agronegócio e aos interesses da exploração da terra para o GT instituído para o estudo da TI Piripkura. De acordo com a organização, os servidores não têm formação em Antropologia, como recomenda a Associação Brasileira de Antropologia para relatórios de identificação territorial como esse. O servidor que preside o GT, Joany Marcelo Arantes, atual coordenador de promoção da cidadania da Funai, é geógrafo de formação, mas a portaria de sua nomeação, publicada no diário oficial do dia 17 de junho deste ano, se refere a ele como “Antropólogo-coordenador” dos estudos. Antes da Funai, Joany foi assessor parlamentar do falecido deputado federal Homero Pereira (PR-MT), que presidiu a Frente Parlamentar Agropecuária e autor do Projeto de Lei n. 490/2007, que transfere os processos de demarcação de terras da União para o Congresso.

Outros servidores nomeados na mesma ocasião, André Luiz Welter — também geógrafo — e Evandro Marcos Biesdorf — engenheiro agrônomo — estão diretamente ligados com a regulamentação de atividade fundiária em territórios indígenas. “É muito claro que o rigor não atende aos critérios técnicos para compor o GT. A gente sabe, pelo histórico, que são envolvidos com o agronegócio, há um claro conflito de interesses” denuncia Fábio. Ambos os servidores trabalharam na elaboração e implementação da Instrução Normativa nº9 da Funai, medida que viola o caráter originário dos direitos territoriais indígenas ao retirar do cadastro fundiário do estado terras indígenas ainda não demarcadas, sob a alegação de “resolução de conflitos regionais”. O Ministério Público Federal chegou a mover 22 processos contra a IN por seu caráter inconstitucional.

A proteção dos povos isolados não é uma luta perdida

As populações indígenas que vivem em isolamento voluntário são especialmente vulneráveis pelo fato de dependerem exclusivamente dos recursos da floresta para sua sobrevivência. Durante a pandemia, essa necessidade de proteção se torna ainda mais urgente. “Sem essas portarias, eles não vão sobreviver. É uma questão de vida ou morte, de possível extinção de povos inteiros”, diz Sarah.

A coordenadora lembra que, apesar dos desestímulos e pressões, essa não é uma luta perdida. “Muita pessoas dizem ‘não é possível que os povos indígenas isolados sobrevivam desse jeito nos tempos modernos’, mas a gente sempre diz que eles são sociedades modernas como todos nós. Estão vivendo de outra forma e fazendo histórias diferentes da sociedade não indígena, mas isso é escolha e direito deles. O direito está na Constituição brasileira e na lei internacional”, afirma.

A importância da proteção da terra dos povos isolados também advém da preservação dos recursos naturais. “O extermínio desses povos seria uma perda para toda a humanidade. Eles são os melhores guardiões da floresta”, conclui ela.

Posicionamento da Funai

O Le Monde Diplomatique Brasil entrou em contato com a Funai para questionar se haverá a renovação da portaria de restrição de uso dos Piripkura. De acordo com a assessoria de Comunicação do órgão,”adotará providências administrativas e técnicas conforme estudos que estão em fase de elaboração para subsidiar a tomada de decisão acerca da portaria”

Sobre a escolha de servidores cuja formação não é em Antropologia para integrar o Grupo Técnico, a Funai alega que o GT designado para realizar os estudos interdisciplinares no território “é composto por servidores da fundação que possuem formação adequada, capacidade técnica, experiência profissional comprovada em suas áreas de atuação no serviço público, bem como conduta ilibada.” Confira a resposta na íntegra:

Para assinar a petição do OPI e da Coiab, e acompanhar a luta pela proteção dos povos isolados, acesse o site da campanha Isolados ou dizimados.

Laura Toyama e Samantha Prado fazem parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.

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