© AP Photo / Felipe Dana
Sputnik – Em novembro do ano passado, um homem usando vestes semelhantes ao do personagem Coringa morreu ao explodir fogos de artifício na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Por que movimentos políticos lançam mão de símbolos da ficção em sua empreitada?
O salto da ficção para a realidade às vezes é menor do que parece. O Brasil, por exemplo, viveu recentemente sua febre quando a ficção se encontrou com movimentos políticos. Nas jornadas de junho de 2013, as máscaras de Guy Fawkes, personagem do filme e dos quadrinhos V de Vingança, inundaram a avenida Paulista, em São Paulo.
Embora possa ser classificado como um movimento heterogêneo e complexo, os protestos daquele ano marcaram contrariedades ao Partido dos Trabalhadores (PT), que estava à frente do poder no Brasil há cerca de 11 anos.
Se vertemos o olhar para nossos vizinhos ao sul, também encontraremos histórias onde personagens da cultura popular foram incorporados por movimentos políticos. Famosa na Argentina, a história em quadrinhos “O Eternauta” virou símbolo da esquerda do país, apropriada mais precisamente pelo kirchnerismo, na figura do ex-presidente Néstor Kirchner.

Estátua do personagem Eternauta, em um “hospital” para estátuas na Argentina
© AP Photo / Natacha Pisarenko
De volta ao Brasil, outro personagem das páginas e das telas foi apontado em manifestações políticas. Francisco Wanderley Luiz, que morreu ao se explodir em Brasília, na Praça dos Três Poderes, usava uma roupa que remetia ao personagem Coringa. Em suas redes sociais, o homem publicava posts contra a Suprema Corte brasileira e contra o atual governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A vida imita a arte?
De acordo com o cartunista Carlos Latuff, esses encontros acontecem pelo fato de “as obras fictícias não serem tão fictícias”. Latuff, que se define como um cartunista político, está, sim, acostumado a ver suas obras presentes em manifestações de cunho político mundo afora.

Obra do cartunista Carlos Latuff, sobre os ataques de Israel contra os palestinos na Faixa de Gaza.
© Foto / Carlos Latuff/Divulgação
Nesse sentido, Alexandre Linck, professor doutor e pesquisador de quadrinhos, criador do canal Quadrinhos na Sarjeta, salienta que as obras ficcionais denotam uma pluralidade de sentidos, permitindo que sejam interpretadas de inúmeras formas.
“As obras estão no mundo, elas não existem isoladas”, diz, ressaltando que como a arte não está isolada da sociedade, é inevitável que se misture com uma série de movimentos.
Há ficções que estão diretamente inspiradas em determinados aspectos da sociedade, desafiando valores culturais preestabelecidos.
“Posso citar romances que viraram filmes e seriados como ‘1984’, de George Orwell, e ‘O Conto da Aia’, de Margaret Atwood, que exploram regimes totalitários, expondo de maneira crua a opressão aos grupos minoritários, provocando reflexões sobre temas como a liberdade e os direitos humanos”, relembra Luciene Carris, doutora em história pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), cofundadora do Box Digital de Humanidades e do Sarau da Casa Azul Podcast.
Além das obras citadas, Carris destaca alguns seriados, produtos com apelo, sobretudo entre os mais jovens, que abordam temáticas políticas. “No streaming destaco ‘The Boys’, ‘The Umbrella Academy’, ‘House of Cards’, ‘Watchmen’, ‘O Poder’, ‘Black Mirror'”, elenca.
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“‘Black Mirror’ explora os impactos éticos e sociais das tecnologias nas nossas vidas, algo que não podemos mudar ou viver sem hoje em dia, se pensarmos na inteligência artificial. Essas produções conseguem abordar uma pluralidade de temas contemporâneos como igualdade, gênero, tecnologias e crítica social, entre outros aspectos do mundo em que vivemos”, descreve a pesquisadora.

Manifestante no Panamá se veste de Coringa em protesto contra um contrato de mineração recentemente aprovado entre o governo e a empresa de mineração canadense First Quantum Minerals
© AP Photo / Arnulfo Franco
Ordem não é dada, mas disputada
Linck ressalta que há uma disputa de sentidos colocada, inerente à história, e que não é diferente com o mercado do entretenimento.
“O Tintim, por exemplo, que gerou polêmica recentemente, volta e meia gera polêmica de novo: mangás, animes, enfim, tudo isso está sempre em disputa”, recorda.
O personagem Tintim, máxima do quadrinista belga Hergé, chegou a ser usado recentemente como símbolo da resistência ao terrorismo e à intolerância após os atentados de Bruxelas, em 2016, que deixaram mais de 30 mortos.
No entanto, obras do autor já retrataram o personagem em contextos anticomunistas e até mesmo racistas — como na história “Tintim no Congo”.
Latuff, por sua vez, caracteriza que há projetos, como os filmes hollywoodianos, com a capacidade de introduzir ideologia disfarçada de entretenimento.
“A velha lógica dos corações e mentes. Essa é a essência do soft power”, destaca.
Em relação aos filmes e quadrinhos, Linck afirma que há entre essas duas modalidades um campo em disputa, possível de ser percebido entre os mesmos personagens, mas representados em diferentes perspectivas.

Manifestante com máscara do filme “V de Vingança” durante protestos em junho de 2013 no Brasil
© AP Photo / Andre Penner
“O ‘V de Vingança’, que foi muito apropriado principalmente por movimentos, começou sendo uma coisa mais de esquerda e depois foi para a direita, principalmente essa nova direita. Isso é muito em função do filme, de uma certa ideia de massa, de fazer valer vontade à força por meio de um grupo, às vezes falsamente orgânico”, explica.
Já o Coringa, que representa uma ideia de “antissistema”, uma expressão “da nova direita bolsonarista”, conforme retoma Latuff, já foi símbolo na periferia, desde sentidos atribuídos à violência quanto à figura de rebeldia e de contestação do Estado.
