“Muitos milhares dentre nós, soldados, arriscamos nossas vidas. Poucas propriedades temos tido no Reino, mas tivemos o direito de nascimento. Contudo, agora parece que um homem, a não ser que tenha uma fazenda estabelecida neste Reino, não tem direito algum.” (Edward Sexby – 1616-1658)
Sob as mais diversas vertentes, o atual Poder, formal, institucional, no Brasil, representa um retrocesso histórico, principalmente nos direitos e na economia.
Fomos recentemente agredidos por noticiário a um mesmo tempo desastroso e estarrecedor. O Ministro da Justiça, noticiando a prisão de “amadores” possivelmente islâmicos, ocupa o horário nobre da televisão, dando margem aos loucos, psicopatas e fanáticos de obterem seu minuto de fama, como ocorre nos Estados Unidos da América (EUA) e na Europa, promovendo atentados contra a multidão que se reunirá nos jogos olímpicos. Mas há, independentemente das razões ocultas, um grave atentado aos elementos constitutivos da cidadania, como a entendemos neste século.
Qual o conceito de cidadania no mundo ocidental?
A Grécia, diferentemente das civilizações da Mesopotâmia, do Egito e do Oriente, não constituiu grandes sociedades. A polis, como descreve o historiador John Pocock, “talvez não fosse muito mais que uma cidadela onde se resguardavam bárbaros que executavam golpes de surpresa”.
O conceito original de polites, cidadão, era do homem armado, livre, que não servia a ninguém, e que buscava, entre seus iguais, o melhor para a cidade. Para Aristóteles, o cidadão era uma pessoa do sexo masculino, guerreiro e dono do trabalho de outros (mulheres e servos). Seu mundo era da política e da guerra, e as demais pessoas e coisas se encarregavam da oikos; a economia e administração da propriedade.
Em Roma, de Gaio e Ulpiano, este conceito de cidadania incorporou a propriedade, res. Ao dividir o direito em pessoas, ações e coisas, Gaio (século II) coloca o cidadão como o proprietário; e suas ações, sobre as pessoas e coisas, estão cobertas pelo domínio da lei. Nas palavras de Pocock, se a “polis era uma espécie de festa permanente”, a cidadania passou a ser a liberdade de pedir e contar com o apoio da lei. A cidadania grega, que era um conceito político, passa a ser um entidade jurídica em Roma.
O conceito de cidadania adormece pela Idade Média, fixada na propriedade masculina e com o beneplácito da Igreja Católica.
Será no século XVI, em Florença, que Maquiavel colocará o “homem armado” e conquistador – virtu – como um ideal, não mais de igualdade entre os semelhantes como na cidade grega, mas de poder. É curioso lembrar que este homem armado da antiguidade foi incluído na Constituição norteamericana pela 2ª Emenda, que permite os atentados tão frequentes que assolam escolas, mercados e ruas nos EUA.
No século XVII, as Revoluções Inglesas, que transformaram aquele país e possibilitaram suas guerras coloniais, fizeram surgir os “rentistas”.
Vale refletir sobre esta nova “cidadania”. O Monarca precisava contar com mais força do que os nobres armados lhe forneciam. Para constituir exércitos e construir embarcações necessitava dinheiro, passando então a emitir títulos de dívida, que rendiam juros. Não só os aristocratas armados, proprietários de terra e livres, mas homens urbanos (dos burgos, na expressão francesa) compravam títulos e passavam a “viver de rendas”. Na percepção da época, esta situação de “dependência” ao Poder Monárquico era considerada corruptora, igualava os rentistas aos soldados e funcionários que dependiam do salário.
Estava aberta nova porta para cidadania: não somente a arma e a propriedade territorial, mas agora a propriedade fiduciária, mesmo tido como corrupta, prestava seu serviço ao Poder.
Embora fora do escopo deste artigo, não custa recordar que este “financismo” criou um poder tão forte na Inglaterra que nem mesmo a Revolução Industrial constituiu uma classe poderosa, como os industriais norteamericanos, e serviu também para freio ao ingresso de ideais libertários da Revolução Francesa na Albion. A nobreza e a aristocracia inglesa eram e ainda são rentistas.
A Reforma Protestante de Martinho Lutero (1483-1546), nas diversas correntes dela derivada em especial a calvinista, influenciou todos os pensadores políticos a partir do século XVI, incluindo os teóricos que embasaram a Revolução Francesa. Foi esta Revolução e a contrarrevolução napoleônica que ampliaram o conceito, com a inclusão da pequena burguesia. Assim, cidadãos eram não apenas os proprietários fundiários e fiduciários, mas os pequenos empresários e trabalhadores urbanos assalariados.
O desenvolvimento da economia capitalista, ao longo do século XIX e da primeira metade do século XX, incorporou, pela necessidade de mão de obra e de consumidores, as mulheres na cidadania.
Os ideais de justiça, igualdade, solidariedade, o surgimento do comunismo, as Bulas dos Papas Leão XIII e Pio XI, as resoluções do Concílio Vaticano II, impulsionando a inclusão de todas as pessoas nos direitos de cidadania, resultaram na ampliação deste conceito.
Hoje já não se discute a inclusão de todos os seres humanos na cidadania. Discute-se a forma de efetivar esta inclusão. O modelo mais contemporâneo distingue três fatores: a independência econômica para sobrevivência, o reconhecimento das diferenças de gênero, de raça, de cultura, no sentido mais amplo de fé e tradições, e de opções de vida, e a asseguração à vocalização das ideias e demandas.
Quanto ao primeiro fator, os programas de renda mínima, cada vez mais adotados pelas sociedades, que no Brasil é objeto da Bolsa Família, tem sido importantes para que a cidadania seja uma realidade para toda população.
O segundo fator, do acolhimento das diferenças, tinha no Ministério da Cultura, nas Secretarias para Igualdade Racial, das Mulheres e diversas outras instituições, extintas ou desativadas, formalmente ou nas condições efetivas de trabalho pelo atual governo provisório, a contribuição institucional e de política de Estado para inclusão cidadã.
Terceiro, o mais difícil, pelo monopólio das comunicações de massa no Brasil, obtinha na rede pública de comunicações, representada pela Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), uma janela para que houvesse possibilidade de alguns segmentos da sociedade já expressarem suas ideias e propostas. A EBC sofre perseguições deste governo provisório desde a malograda tentativa de desvirtuá-la com a nomeação de novos dirigentes.
Vê-se portanto que o esforço que era feito para a cidadania de todos os brasileiros encontra-se em processo de efetiva extinção. E é por isso que, não pela liderança que ele não tem, mas pelo símbolo de traição, incúria, engodo, retrocesso e entreguismo que concluímos com o Fora Temer.
Pedro Augusto Pinho, avô, administrador aposentado
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