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segunda-feira, 22 dezembro, 2025

Pátria ou Colônia nas urnas argentinas de 26 de outubro

© AP Photo / Victor R. Caivano/Sputnik Brasil

Helena Iono – Direto de Buenos Aires

Aos 80 anos do Dia da Lealdade Peronista a história parece se repetir e o povo argentino se encontra novamente diante da mesma encruzilhada. No dia 17 de outubro de 1945, centenas de milhares de cidadãos dos bairros e sindicatos deram início ao gigantesco movimento peronista dirigindo-se à Praça de Maio, exigindo e conquistando a libertação de Perón, preso na Ilha Martin Garcia. Secretário do Trabalho e da Previdência Social, afastado e preso pelo governo militar, foi libertado sob pressão popular e eleito presidente da República, quatro meses depois.

Passadas 8 décadas, após as mais significativas conquistas sindicais dos trabalhadores, e o fortalecimento do Estado de bem-estar social durante Perón – e posteriores golpes cívico-militares do neo-liberalismo, superados por governos peronistas com o nascer do kirchnerismo, a Argentina se encontra novamente sob ataque das forças extranacionais sediadas nos EUA. 

Mas, há resistência. Neste 17de outubro, mais de 50 mil se manifestaram frente à residência da ex-presidenta Cristina Kirchner em Buenos Aires para exigir sua libertação. Cristina, em prisão domiciliar, condenada e injustamente proscrita, emitiu um discurso gravado dizendo que “Há 80 anos era Braden ou Peron, hoje é Bessent ou Peron”, e saiu à varanda para saudar o povo e estender uma faixa com as cores azul e branca da bandeira nacional argentina. A multidão vibrava com cartazes de “Cristina inocente”, “Cristina Livre”, com os cânticos peronistas e “Voltaremos. Vamos voltar!”. 

Em 1946, as consignas dos manifestantes eram “Braden (embaixador norte-americano) ou Perón”. Agora, os cartazes dizem: “Scott Bessent (secretário do tesouro dos EUA) + Milei ou Pátria”. Os gritos são: “Pátria sim, colônia não!”. Na oposição há grande rechaço pela subalternidade do governo atual ao resgate-chantagem de Trump, atado com o tal do swap dos 20 bilhões de dólares, estabelecido diretamente entre o Tesouro norte-americano e o Banco Central da Argentina. Pergunta-se, se o ministro atual da economia na Argentina é Bessent, ou Luis Caputo? Além da impagável dívida externa com o FMI, iniciada com Macri, soma-se esse swap, para cobrir as baixas reservas internacionais do Banco Central, sujeito a prazo e custos de devolução, e condicionamentos inescrupulosos e publicamente expostos neste último resgate dos EUA, que são: para pagar os vencimentos da dívida argentina e reduzir a influência da China na Argentina e no continente.

A China, há anos tem participado de projetos com transferência de tecnologia como na construção do telescópio espacial (CART) em San Juan, com colaboração da universidade (UNSJ), do Conicet (Centro de Pesquisas e Tecnologia) e da Academia Chinesa de Ciências; e havia um porto de multi-propósito conjunto com a China na Tierra del Fuego (suspenso por pressão dos EUA). Agora, a Argentina deve firmar acordos com empresas norte-americanas de infra-estrutura, telecomunicações e recursos estratégicos, afastando as empresas chinesas atuais. Há tempos que os chineses têm coparticipação em projetos de infra-estrutura, mineiração (lítio em Pastos Grandes), tecnologia e energia (eólica e solar); e na reativação das hidroelétricas Nestor Kirchner e Cepernic. Os dados do acordo do anunciado swap norte-americano não são oficiais, mas há muitas evidências dos requisitos de Trump e do governo dos EUA para ter acesso ao urânio, lítio, terras raras e reservas naturais argentinas. Os seus olhos e mãos já estão na Patagônia, no petróleo de Vaca Muerta (Neuquén) e da Costa Atlântica; porto de Punta Colorada (Rio Negro), no gás de Allen; nos minerais de Chubut e no urânio de Santa Cruz.

A embaixada chinesa na Argentina respondeu à chantagem norte-americana: “Scott Bessent e os EUA devem entender que a América Latina não é o pátio traseiro de ninguém” …  retornou “a mentalidade da guerra fria”. O jornal The Wall Street destaca que o objetivo do swap de 20 bilhões de dólares (e um novo crédito do mesmo valor que está por ser negociado) é abertamente para cortar a presença da China na Argentina; inclusive militar. Trump já advertiu a Milei de que seria inaceitável qualquer acordo militar com a China. Enquanto isso, a soberania das ilhas Malvinas está sendo ameaçada pelo próprio governo, com o anúncio de uma base militar americana na Tierra del Fuego. Por decreto do Executivo, sem consultar o poder Legislativo, as Forças Armadas dos EUA estão autorizadas a entrar nos portos de Mar del Plata, Porto Belgrano e Usuahia. Tudo isso, num contexto latino-americano de invasão no Caribe contra a Venezuela.

A resposta de Trump à jornalista norte-americana girou o mundo: “A Argentina está lutando pela sua vida, senhorita. Você não sabe nada a respeito. Estão lutando para sobreviver. Não estamos beneficiando a eles mais do que aos agricultores (norte-americanos). Entende o que isso significa? Não tem dinheiro, estão lutando com todas as suas forças para sobreviver”… Se posso ajudá-los a sobreviver num mundo livre. Gosto do presidente da Argentina. Creio que está fazendo tudo o que pode. Estão morrendo. De acordo? Estão morrendo”

Trump se justifica perante a opinião pública local sobre o desvio de fundos dos EUA afundado numa crise abismal. O povo norte-americano não suporta mais pagar pelos gastos de guerra e genocídios mundo afora e adentro. Vários milhões de pessoas, nos 1600 protestos de ruas se mobilizaram em todo o país, como referidos por Bernie Sanders

Dentro do cavalo de Troia do swap de 20 bilhões de dólares dos EUA à Argentina estão: o batalhão de pressão anti-China (mais visível), e os soldados financeiros dos JP Morgan, Bank of America, Goldman Sachs e Citigroup, e investidores no país, preocupados com suas ações e consequente recuperação ou fuga monetária. Não se sabe quando entra o cavalo, mas o anúncio vem em meio à aposta eleitoral que se confirma no domingo, dia 26 de outubro para a reeleição de meia bancada da Câmara Legislativa Nacional (que se repete a cada dois anos) que não deixará de ser um termômetro do apoio ou rechaço social ao governo de Milei. Por isso, Trump diz que a ajuda financeira chegará se o partido, Libertad Avanza (LLA) vencer as eleições legislativa: “Se Milei vence, estaremos perto. Senão, tchau”.

A incógnita do benefício social do “resgate Bessent” à Argentina

O anúncio de dito crédito financeiro não melhorou, nem disfarçou uma transitória estabilidade econômica (com fins eleitorais), mas, no arco de poucos dias, fez cair as ações, disparar o dólar e o risco país; nem se falar da inflação. Portanto, é imprevisível o desastre pós-eleitoral, considerando a maioria dos prognósticos de derrota do governo.

Mesmo que Bessent oculte as condições do empréstimo, o povo argentino já sabe. É dívida para pagar dívida. E quem paga? O pequeno-médio comércio e indústria; consequentemente a classe trabalhadora. Portanto, mais reajuste aos direitos e benefícios dos trabalhadores, da classe média, dos estudantes, dos aposentados, e deficientes físicos; aceleração das privatizações e mais motoserra contra o Estado. Essas têm sido as perpétuas imposições do FMI desde o governo Macri, com suas desastrosas consequências para o povo: o cidadão e suas famílias “não chegam ao fim de mês”. Ou seja, a caixa familiar se esvazia com o pagamento de aluguel, remédios, transporte, escola e alimentos já à metade do mês. Uma pessoa tem que ter 2 ou 3 trabalhos para se manter; e a maioria sem registro ou carteira de trabalho.

Segundo estatísticas divulgadas, nunca se viu, desde 2008, tanta gente endividada; 75% das dívidas do cidadão foram geradas em 2024; 65% de inquilinos têm dívidas de aluguel; 58% das dívidas são para pagar alimentos; 9 de cada 10 famílias vivem endividadas. Em 18 meses, faliram 16 mil empresas e perderam-se 250 mil empregos. Aumentaram drasticamente os sem tetos nas ruas. Trump diz que estão morrendo na Argentina. Milei, contradizendo o seu chefe, desmente na campanha eleitoral todas as críticas da oposição e diz que “não é verdade, senão haveria cadáveres na rua”. Criticado por viajar muito ao exterior (EUA) e executar pouco, consegue organizar e atuar, com frenesi característico, num show massivo no estádio Rockstar Arena, enquanto fala com megafone e escapa de minúsculos comícios eleitorais, pró Liberdade Avança, protegidos por forte cordão policial.

Perspectivas para a defesa da Pátria

Apesar do desastre econômico-social, não é simples vislumbrar a perspectiva e prazos para uma nova alternativa dentro dos próximos dois anos. As eleições legislativas nacionais de metade da bancada, no próximo dia 26, serão um instrumento importante para levar a voz das ruas e incrementar a força popular peronista no Congresso; e continuar impondo derrotas aos decretos presidenciais (DNUS). Os cortes, que Milei tentou impor, sofreram derrotas no Parlamento, resultando em três leis: Lei de emergência para a invalidez; Lei de financiamento universitário; e Lei de atenção pediátrica. Porém, o mais recente ato inconstitucional de Milei tem sido renegar e não cumprí-las, sob pretexto de déficit orçamentário. A LLA tenta fazer de tudo para eleger parlamentares que assegurem 1/3 do Parlamento para impor mais DNUs de recortes e as tais reformas trabalhistas para alcançar o dito “déficit fiscal zero”.

A bronca de manifestantes e grevistass dos hospitais Garrahan (pediátrico) junta-se ao dos aposentados das 4ªs feiras diante do Congresso Nacional, sintetizando o descontento social enfrentando forte aparato repressivo. Isso poderá ecoar nas urnas, fortalecendo a coligação peronista-kirchnerista do Força-Pátria, e as representações dos movimentos sociais de Grabois e da esquerda contra o governo de Milei. A morosidade da Justiça (salvo algumas exceções de delegados e juízes) frente às denúncias de corrupção no governo libertário, desde o Caso da cripto-moedas; subornos de laboratórios farmacêuticos (Suizo Argentina), via Karina Milei (LLA), a irmã do presidente; até deputados acusados de narcotráfico, como Luis Espert (LLA), tudo poderá ter o juízo negativo da opinião pública nas eleições de 26 de outubro.

Não se exclui que se estenda em todo o país, com mais força, a vitória peronista alcançada nas eleições de 7 de setembro, da província de Buenos Aires, governada por Axel Kicillof; este, percorreu bairros, palmo a palmo, junto à coligação Força Pátria que recebe o apoio de uma incansável militância.  É certo que a guerra midiática da direita nas redes fake-news contra o kirchnerismo, estimulando o “apoliticismo” e a abstenção nas urnas, é a mesma que envenenou mentes juvenis e deu vitória a Milei em 2023. Junta-se a isso, a intromissão de Scott Bessent, seguida das palavras de Trump, como uma faca de dois gumes. “O pior já passou”, palavras de campanha de Milei, junto ao aparente salva-vidas do swap de Trump, podem ainda iludir uma fração pró-libertária inconsciente. A provável derrota do governo, deverá acelerar sua crise interna já expressa em contínuas renúncias no gabinete presidencial.

Em meio a tantas incertezas, a maioria do povo argentino poderá surpreender e não perder esta oportunidade para dar, através do voto, um sinal plebiscitário na defesa da soberania nacional, contra a injustiça social, a violência econômica, e a desumanidade do poder vigente, dando um Basta Milei! Desta forma, o resultado eleitoral poderá ser mais que números, uma polarização de forças, ou uma vitamina para o peronismo impulsionar a unidade das forças populares, no debate programático e nas mobilizações da próxima etapa.

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