De início se percebe que são abertas as porteiras das terras indígenas, para que, literalmente, se possa passar a boiada, mas também a produção de grãos e a exploração predatória, numa suposta cooperação ou uma composição mista para a exploração agropecuária
No momento em que o Brasil registra recordes consecutivos de mortes pela covid-19, o governo federal avança na prática das criminosas diretrizes formuladas pelo ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles na malfadada reunião ministerial que veio a público no dia 22 de maio do ano passado, com a saída do ex-ministro Sérgio Moro do governo. Propunha o ministro Salles ao presidente da República e demais ministros de estado:
“(…) Precisa ter um esforço nosso aqui, enquanto estamos em um momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só se fala de covid, e ir passando a boiada e ir mudando todo o regramento e ir simplificando normas. De IPHAN, de Ministério da Agricultura, do Ministério de Meio Ambiente, de ministério disso, de ministério daquilo. Agora é a hora de unir esforços para dar de baciada a simplificação regulam… é de regulatório que nós precisamos, em todos os aspectos (SIC).”
A reunião foi realizada em 22 de abril, em Brasília, época na qual o total de mortes no Brasil se aproximava a 6.000. Atualmente o país registra mais de 270 mil óbitos decorrentes da covid-19 e, coincidentemente ou não, diversos atos normativos vêm sendo expedidos pelo governo federal para flexibilizar direitos ambientais e de povos e comunidades tradicionais, a exemplo da Resolução nº 04/2021 expedida pela Funai em janeiro deste ano.
De toda forma, nos ateremos aqui aos aspectos de maior relevância da Instrução Normativa Conjunta (INC), de n. 01/2021, da Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que passou a vigorar no último dia 3 de março.
Longe de conferir maior transparência e segurança jurídica ao procedimento de licenciamento ambiental das atividades desenvolvidas pelos povos indígenas e atender ao Termo de Ajustamento de Conduta nº 6640527, firmado entre o Ministério Público Federal, Ibama e Funai, a INC 01/2021 busca solapar os direitos indígenas.
Imediatamente em seu artigo primeiro já sobressai uma inconstitucionalidade. A Constituição Federal determinou que o usufruto das terras de ocupação tradicional indígena é exclusiva. Assim, qualquer atividade por não índios nessas áreas é uma afronta ao texto constitucional.
Veja-se como está redigido o artigo primeiro e o parágrafo primeiro da INC nº 01/2021:
“Art. 1º Esta Instrução Normativa Conjunta se aplica ao processo de licenciamento ambiental de empreendimentos ou atividades localizados ou desenvolvidos no interior de Terras Indígenas cujo empreendedor sejam os próprios indígenas usufrutuários por meio de associações, organizações de composição mista de indígenas e não indígenas, cooperativas ou diretamente via comunidade indígena.
1º As organizações de composição mista que trata o caput devem ser de domínio majoritário indígena, obedecendo a inalienabilidade e indisponibilidade das Terras Indígenas, sendo vedado seu arrendamento.”
De início se percebe que são abertas as porteiras das terras indígenas, para que, literalmente, se possa passar a boiada, mas também a produção de grãos e a exploração predatória, numa suposta cooperação ou uma composição mista para a exploração agropecuária. Seria, noutras palavras, uma forma de burlar a legislação constitucional, de burlar o usufruto exclusivo aos povos indígenas sobre suas áreas de tradicional ocupação.
Quanto ao usufruto exclusivo, nossa Constituição é clara: dispõe expressamente o § 2º do art. 231: “As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se à sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.”
Para o jurista e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Daniel Antônio de Moraes Sarmento, a previsão constitucional é cláusula pétrea. Isso significa dizer que não é suscetível de alterações. O acordo levado a termo em 1988 é uma vontade soberana da sociedade brasileira e uma diretriz inatingível por meio de Instrução Normativa 01, como no presente caso. Nem mesmo por meio de um projeto de emenda à Constituição seria possível, já que não se flexibiliza, em hipótese nenhuma, uma cláusula pétrea.
É certo que a intenção da medida normativa é abrir caminho para a exploração das terras indígenas por setores econômicos, sem deixar fazer parecer que se trata de arrendamento ou parcerias agrícolas com não índios, desvirtuando os direitos assegurados constitucionalmente.
Não longe é o direito dos povos indígenas em explorar suas terras, mas há limitação constitucional quando se trata de um empreendimento misto, com presença de não índios.
Neste mesmo sentido há ainda a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre Povos Indígenas e Tribais, que possui força de lei no país. De acordo com a convenção, o Estado brasileiro deve garantir aos indígenas o direito à regularização de suas terras, bem como o direito de viverem, total ou parcialmente, dentro dos seus sistemas. Em consonância com o artigo 231 da Constituição Federal, a Convenção 169 determina que qualquer medida legislativa que trate do assunto deve ser submetida à consulta prévia, livre e informada dos interessados – o que não aconteceu com relação à INC 01/2021.
Vale ressaltar que a normativa, além de confusa e mal redigida, repete no artigo 4º o mesmo texto do artigo 3º, o que denota a falta de reflexão, de técnica e o atropelo como se tornou hábito nas ações do governo federal.
De ações como essa, resta evidente o projeto político levado a cabo pelo governo federal e expresso de forma muito literal pelo ministro do Meio Ambiente. De um lado a Funai, vinculada ao Ministério da Justiça, e de outro o Ibama, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente. Ambos, por meio de seus atos normativos, voltando-se contra a Constituição Federal e o direito dos povos originários. Por essas razões, urge a adoção de medidas para revogar ou sustar os efeitos da INC 01/2021, seja por parte do Ministério Público Federal (MPF), do Congresso Nacional e ou Judiciário.
Destacam-se como ações concretas de enfrentamento à “baciada” de irregularidades governamentais em curso, os projetos de decretos legislativos de nº 92 e 93 de 2021, de autoria da deputada federal indígena Joênia Wapichana, que visam sustar os efeitos de tais instruções normativas.
O MPF, por meio do Ofício de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais em Mato Grosso, no último dia 26 de fevereiro, instou a Funai e o Ibama a apresentarem explicações sobre a INC 01/2021 em razão de suas flagrantes inconstitucionalidades.
*Rafael Modesto dos Santos e Paloma Gomes são assessores jurídicos do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).