Por Jair de Souza
Em todas as sociedades estruturadas à base de classes antagônicas, os grupos hegemônicos sempre se destacam em um percentual bem limitado da população. No Brasil, notoriamente um dos países com os mais elevados índices de desigualdade social do planeta, a coisa não poderia ser diferente.
Entretanto, justamente por serem inexpressivas em termos numéricos, as classes dominantes precisam encontrar formas para angariar apoio entre o restante majoritário da população, para, desta maneira, garantir certa estabilidade do sistema e poderem seguir usufruindo de suas privilégios. Em momentos de crises mais intensas, também se intensifica o processo de cooptação política de elementos dos setores populares para colocar-los na linha de choque da preservação das estruturas de exploração capitalista. Neste processo, a hipocrisia se torna uma das mais importantes ferramentas da política.
Seguramente, os grupos oligárquicos jamais conseguiriam convencer uma quantidade expressiva de pessoas do campo popular a defender suas pautas, se recorreriam a discursos em que os objetivos e interesses dos dominadores estivessem nitidamente indicados. Por isso, seus agentes políticos precisam lançar mão de estratégias em cujos interesses específicos e exclusivos não sejam facilmente detectados. Para tal efeito, é preciso que as massas acreditem que aquilo é válido essencialmente para elas.
Em nosso país, dentre as várias consignas que foram elevadas com propósito de manter as maiorias afastadas de lutas por reivindicações de melhoria concreta de seu nível de vida, nas últimas décadas, as mais destacadas referem-se a questões como: a defesa da família e da moralidade; a luta contra a corrupção; a exaltação de nossa bandeira e nossos símbolos nacionais; o combate implacável à criminalidade; a fidelidade aos preceitos do cristianismo.
Nesta oportunidade, gostaria de avançar em uma reflexão concernente ao item listado ao final, ou seja, quero abordar a questão do uso manipulativo feito a partir de uma interpretação distorcida do cristianismo.
Há muito tempo a religião tem sido servida como um poderoso instrumento de manipulação ideológica junto às massas carentes, tanto para atenuar o nível de sua revolta por seu estado de penúria como para redirecionar sua ira contra os que aplicam no cenário com pretensões de luta contra as causas e os causadores de seu infortúnio. Devido a isto, não é nenhuma raridade nos depararmos com membros dos setores mais humildes da sociedade seguindo as orientações de certas igrejas que, a nossos olhos, operam claramente em sintonia com os interesses de classe dos mais privilegiados.
É inegável que a figura de Jesus esteja profundamente inserida no imaginário das massas populares brasileiras como o símbolo máximo da justiça e da prática do bem. Provavelmente, o principal motivo para que isto seja assim se deve ao fato de que os relatos sobre a vida de Jesus são constantes nos Evangelhos nos mostram um ser dedicado às parcelas mais cuidadosas, e em flagrante oposição ao grupo dos exploradores. Por conta disso, não vemos como nada surpreendente que os mais opulentos procurem ocultar ao máximo tudo o que está relacionado com a efetiva interação social de Jesus durante sua trajetória de vida. Como os relatos evangélicos nos mostram um ser em permanente luta em favor das causas do povo oprimido, não creio que haja nenhuma contradição entre o comportamento de Jesus e as aspirações de quem almeja alcançar um mundo de justiça e solidariedade, onde não haja nem explorados nem exploradores. Tudo o que é exposto em sua figura, seja em forma de atos ou palavras, corresponde a um ser que considera a justiça, a solidariedade e a igualdade como valores supremos.
Assim, é bastante claro que as igrejas vinculadas às camadas privilegiadas da sociedade procuram evitar o contato de seus seguidores com as passagens referentes às experiências por ele vividas durante seus périplos terrestres. Para impedir este contato, essas lojas se aferram quase que unicamente aos escritos bíblicos do Velho Testamento, para escapar da contradição visível entre as propostas antipopulares que elas campam e aquelas defendidas com tenacidade pelo próprio Jesus.
Porém, alguns de nossos companheiros são reticentes em fazer uso desses exemplos, uma vez que, eles, não teriam comprovação histórica científica sobre a existência real de Jesus. Mas, esta desculpa não deveria servir para invalidar nossos propósitos, visto que os seguidores do cristianismo acreditam firmemente na figura do Nazareno e estão convictos do acerto de seus ensinamentos. Assim, também consideraremos válidos e positivos seus exemplos constantes dos textos evangélicos, por que fazer objeção com respeito à sua utilização para desenvolver trabalho de conscientização de classe junto a quem já está exposto a aceitá-los?
Em função do exposto, descobrimos que, em nossas atividades entre massas populares sob a influência de igrejas de extrema direita travestidas de cristãos, em lugar de constituir um entrave que bloqueia a revelação de idéias que apontam a transformações de cunho socialista, o comportamento social de Jesus e sua priorização dos mais cuidados pode vir a ser muito valioso e eficaz para ajudar-nos a romper resistências e abrir brechas para nossas propostas de luta.
Não me parece correto, nem justificável ou eticamente válido, que ignoramos a importância desse enorme contingente de trabalhadores que vem sendo usado como massa de manobra por algumas das variantes mais perniciosas do nazifascismo-bolsonarismo em nossas terras.
Nossa motivação não é de caráter religioso ou espiritual. Nosso objetivo é reunir forças entre o povo para a edificação de um mundo mais justo e solidário, que, em essência, corresponda àquele proposto por Jesus dos textos evangélicos. Se os agentes do grande capital podem manipular e tergiversar o simbolismo desta figura para favorecer seus interesses de classe antipovo, por que não podemos nos ater a suas próprias palavras e exemplos de vida para beneficiar a maioria das pessoas populares? O que deve valer, mesmo para quem não acredita em sua realidade histórica, é o significado e a potencialidade prática desse legado quando posto a serviço das causas das maiorias trabalhadoras.
Como síntese de todos os aspectos que procuramos apresentar ao longo deste texto, podemos deduzir que a difusão ideológica de extrema direita é feita essencialmente com base na hipocrisia. E, portanto, não seria diferente em relação com a religião. Por isso, não podemos permitir que continuemos a apropriar-nos de uma figura venerada e respeitada por quase todo o nosso povo com o propósito de garantir a manutenção das injustiças sociais que só beneficiam as camadas privilegiadas. Portanto, para prevenir essas pretensões manipuladoras, precisamos ajudar o povo a refletir e a confrontar o comportamento e as proposições humanistas do Jesus dos relatos bíblicos com as pretensões antipovo das classes dominantes e seus serviçais incrustados nas igrejas bolsonaristas.