Concentração de vacinas criou “ilhas” de pessoas imunizadas, mas não contribuiu para frear a pandemia no mundo
A covid-19 infectou 218,5 milhões de pessoas e causou 4,5 milhões de mortes em todo mundo, ainda assim a Organização Mundial da Saúde (OMS) adverte que a pandemia está longe de terminar. Apesar do desenvolvimento de vacinas e do maior conhecimento científico sobre o vírus sars-cov2, o surgimento de novas variantes dificulta estabelecer uma previsão de fim da crise sanitária global.
Na última semana de agosto foram contabilizados 4,4 milhões de novos casos e 67 mil mortos, mantendo uma tendência de diminuição de contágios e mortes. No entanto, a concentração de imunizantes nos países ricos não colabora para frear os contágios.
Desde o início da emergência sanitária, a OMS defende a distribuição equitativa de vacinas, mas a verdade é que os países ricos concentram 70% de todos os imunizantes produzidos no mundo. Até o momento foram aplicadas 5,2 bilhões de doses em todo o planeta, cerca de 27% da população global foi imunizada, porém algumas nações ainda não tiveram acesso a nenhuma dose.
Os Estados Unidos concentram a maior quantidade de fórmulas, com mais 200 milhões de doses de reserva de mercado para 2022, e possuem 51,9% da população completamente imunizada. No primeiro semestre do ano, as autoridades estadunidenses tiveram que descartar 60 milhões de doses da fórmula da Pfizer que iriam perder a validade e não haviam sido aplicadas.
:: Por que a saúde do brasileiro depende tanto de importações? ::
Desde julho o país enfrenta um quarta onda de contágios, na qual crianças e adolescentes são os mais afetados, com uma média de 300 infectados por dia, segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC – siglas em inglês).
Os EUA também continuam liderando o ranking mundial da covid-19, com 39,3 milhões de casos confirmados e 638 mil falecidos. Em segundo lugar está o Brasil, com 20,8 milhões de casos, mais de 518 mil falecidos e cerca de 30% da população imunizada.
“Os países ricos se imunizarem e não haver imunização para os países periféricos cria sim um problema de descontrole. Algo que a OMS alerta desde o começo. Enquanto não houver controle da pandemia em todos os países, também não haverá nos países ricos”, afirma o médico e advogado sanitarista Daniel Dourado.
Na Europa a situação não é diferente. O continente vive a quarta onda de contágios desde julho, que coincide com a temporada de verão e a flexibilização do isolamento social para incentivar o turismo. Ainda que a média de imunização supere 50% da população, entre os dez países mais afetados no mundo, seis são europeus.
A Rússia é a 4º do ranking, com 6,9 milhões de casos e apenas 25% da população completamente imunizada, apesar de ter desenvolvido cinco fórmulas próprias. Em seguida, está o Reino Unido, com 6,8 milhões de contaminados e 64% da população vacinada, a França, com 6,5 milhões e 60% de imunizados, e a Turquia, com 6,4 milhões de casos e 45% de imunizados. Já a Espanha é o 9º país do ranking, com 4,8 milhões de infectados e 71% de vacinados, enquanto a Itália é o 10º, com 4,5 milhões de doentes e 60% da população com ciclo completo de vacinas.
“A circulação do vírus continua muito alta, o que dá condições para o surgimento de novas variantes. Na Europa é isso que está acontecendo com a introdução de uma nova variante altamente contagiosa, como a delta”, analisa a médica doutora em imunologia e professora da Universidade do Chile, Mercedes López Nitsche.
No continente asiático, a Índia é responsável pelo envasamento de 32% das vacinas de todo o mundo, no entanto só conseguiu imunizar cerca de 11% da sua população e permanece como o segundo país com mais infectados em todo planeta: 32, 8 milhões de doentes e o terceiro em mortes com 439 mil decessos.
O Japão viveu um boom de casos logo após a realização dos Jogos Olímpicos de Tóquio, com médias de 21 mil casos diários, um total de 1,5 milhão de infectados, 16.123 falecidos, e pouco mais de 46% de japoneses imunizados. A China voltou a adotar lockdown em regiões que tiveram o pior surto de covid-19 desde o início da pandemia, em Wuhan. Depois da suspensão de voos e a realização de 9 milhões de testes, o governo chinês conseguiu conter o avanço do vírus.
“Estamos vivendo um dos maiores níveis de incerteza desde o início da pandemia, porque ainda não sabemos como será o comportamento da variante Delta”, afirma Mercedes López.
Novas variantes
A combinação vacinação lenta, alta circulação de pessoas e convivência entre vacinados e não imunizados confere o ambiente perfeito para o surgimento de novas variantes. A OMS alerta que a variante delta não será a última a surgir. Com a alta capacidade de mutação do vírus, podem ser identificadas novas cepas, inclusive mais resistentes e contagiosas.
A taxa de reprodução das primeiras cepas identificadas do vírus sars-cov2 era de 2,5, o que significa que uma pessoa infectada poderia transmitir a doença para duas ou até três pessoas. No caso da variante delta, o número sobe para até sete.
“Essas taxas de imunização atuais não são suficientemente altas para controlar a variante. Para isso, você deveria vacinar 100% da população e ainda assim é possível não conseguir atingir essa meta de 85% de imunizados.”, comenta o médico e advogado sanitarista, Daniel Dourado.
A nova variante já é a mais presente nos Estados Unidos e no Brasil, e, segundo a OMS, deverá ser a cepa predominante no mundo até o final de 2022.
:: “Passaporte da vacina” segue valendo no Rio para cirurgias eletivas e programa Família Carioca ::
“É natural que a delta seja predominante porque é assim que o agente infeccioso se propaga: aquele que estiver melhor adaptado será o dominante e as outras variantes tendem a sumir”, comenta Dourado.
Além disso, alguns estudos apontam que algumas vacinas podem perder sua efetividade após seis meses da aplicação, levantando a hipótese da necessidade de uma terceira dose. Para os especialistas, nenhum país está livre de viver novas ondas de contágios.
Na última semana foi identificada a variante “mu”, que causou 4600 infecções e está presente em 39 países, entre eles a Colômbia. A OMS ainda estuda o comportamento da nova cepa.
“O coronavírus está mais forte e mais rápido, mas isso não muda o plano para controlá-lo, já que ele funciona. Só precisamos ser mais rápidos e distribuir as vacinas de maneira equitativa. Se não fizermos assim, estamos lutando contra nós mesmos”, declarou em coletiva de imprensa Mike Ryan, diretor executivo da OMS.
América Latina
Apesar da quarta onda na Europa, a América Latina continua sendo uma das regiões mais afetadas pela pandemia. De acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), somente uma em cada quatro pessoas na região foi vacinada, com uma média de 20% da população latino-americana recebendo ao menos uma dose. Cerca de 1/3 das mortes por covid-19 notificadas em todo o mundo estão na América Latina, sendo o Peru a nação com maior taxa de letalidade do mundo, cerca de 5,9 mil mortos a cada milhão de habitantes.
O Chile e o Uruguai são as únicas nações com quase 70% de imunizados, porém a alta circulação de pessoas no território nacional faz com que as taxas de hospitalização continuem altas. Cerca de 81% dos hospitais chilenos estão ocupados com pacientes de covid-19.
“Devemos conter rapidamente a circulação do vírus, já que caso o vírus continue se dispersando pelo mundo, sempre teremos a possibilidade do surgimento de uma nova variante que coloca o mundo em xeque outra vez”, alerta López.
A Opas fez um novo chamado por doações internacionais para reunir 540 milhões de doses para vacinar pelo menos 60% dos latino-americanos até o final de 2021.
“Convocamos todos os países com doses excedentes a compartilhar rapidamente esses imunizantes com a nossa região, onde teriam um impacto para salvar vidas”, declarou a diretora geral da Opas, Carissa Etienne.
Para os organismos multilaterais, a América Latina tem sido afetada de maneira “desproporcional” por aspectos políticos e econômicos que impedem a aceleração da imunização e da aplicação de quarentenas radicais.
Para isso, a Organização Pan-Americana da Saúde anunciou a criação de uma plataforma para fabricar imunizantes na América Latina. A primeira iniciativa seria transferir tecnologia para que os países possam replicar fórmulas existentes.
“A proposta é interessante, mas vai depender da suspensão das patentes que está em discussão na Organização Mundial do Comércio. Não só a vacina, mas toda a cadeia produtiva está protegida pela propriedade industrial. Então os países dependem disso para não sofrer sanções”, explica o advogado sanitarista Daniel Dourado.
:: Entenda como as patentes contribuem para a falta de vacinas contra covid no mundo ::
Para a médica infectologista. a proposta de criar uma plataforma regional deveria fazer parte das políticas públicas de saúde de governos latino-americanos.
“Não basta que as indústrias farmacêuticas instalem suas estruturas nos nossos países. Devemos criar um polo regional. Do ponto de vista geopolítico, essa questão é estratégica. Avançar nesse aspecto nos permite descolonizar a produção de conhecimento. Nós temos condições de fazer isso no Chile, no Brasil, no México, Colômbia, Peru e outros lugares”, ressalta.
O levantamento das patentes entrou em debate em outubro de 2020 na OMC, mas foi barrado três vezes pelo voto contrário dos Estados Unidos e da União Europeia.
Novas plataformas
A pressão exercida pelos países ricos e a concentração de mercado das vacinas também influenciou na efetividade do Consórcio Covax, lançado pela OMS com a Aliança para a Vacinação (Gavi) e a Coalizão para Inovações em Preparação para Epidemias (Cepi). O objetivo é reunir fórmulas suficientes para imunizar ao menos 20% da população de cada país que assinasse o acordo.
Segundo os últimos dados oferecidos, até julho, o Brasil e o México foram os países mais beneficiados com doses, porém outras nações, como a Venezuela, ainda esperam pelo primeiro lote.
“O consórcio Covax depende da doação de países ricos. A ideia é muito boa, inclusive é anterior à pandemia, mas a lógica de distribuição é a lógica de mercado”, destaca Dourado.
O lobby das maiores farmacêuticas afetou o mercado global. Na Finlândia, em maio de 2020, cientistas desenvolveram uma fórmula contra o novo coronavírus, apelidada de “Linux”, em alusão ao sistema operacional alternativo ao Windows, já que os pesquisadores da Universidade de Helsinki pretendiam distribuir a fórmula livremente, sem patentes.
Porém o governo optou por comprar doses da Moderna ao invés de investir na vacina própria. O governo de Vladimir Putin também acusa a União Europeia de fazer pressão política ao negar o acesso de turistas que tenham se vacinado com a Sputnik V.
No dia 1º de setembro, a Organização Mundial da Saúde inaugurou, em Berlim, um Centro de Inteligência para Prevenção de Pandemias e Epidemias, para, segundo o diretor geral, Tedros Adhanom, diminuir os problemas de “cooperação multilateral” diante de emergências sanitárias.
Enquanto alguns países continuam esperando pelas doações, outros começam a aplicar terceira dose em pacientes com mais de 60 anos. Para os especialistas a prioridade deveria ser aumentar a taxa de vacinação em todas as regiões antes de aplicar doses de reforço.
“Se devemos diminuir a dose viral no mundo, isso significa que a distribuição das vacinas deve ser equitativa. Deveríamos criar um sistema de pesquisa biomédica descentralizada, no qual Europa e EUA não sejam o centro, mas que outros países também tenham condições de desenvolver e produzir imunizantes, inclusive para pandemias futuras”, defende Mercedes López.