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sexta-feira, 29 março, 2024

Os Talibãs têm como alvo o exército secreto da CIA

Pepe Escobar [*]
O atentado ao aeroporto de Cabul mostra que há forças obscuras no Afeganistão dispostas a não permitir uma transição pacífica após a partida das tropas americanas. Mas o que se sabe do “exército na sombra” da CIA, produzido e acumulado ao longo de duas décadas de ocupação? Quem são eles e qual é a sua agenda?

No entanto, temos o diretor da CIA William Burns deslocando-se à pressa a Cabul para solicitar uma audiência com o líder talibã Abdul Ghani Baradar, o novo governante em potencial da ex-satrapia. E ele literalmente implora-lhe para alargar o prazo para a evacuação de ativos dos EUA. A resposta é um sonoro “não”. Afinal, o prazo de 31 de agosto foi estabelecido por Washington. Prorrogá-lo significaria apenas o prolongamento de uma ocupação já derrotada.

“Sr. Burns foi a Cabul”. A brincadeira agora faz parte do folclore do cemitério dos impérios. A CIA não confirma nem nega que Burns tenha conhecido Baradar. Um porta-voz dos Talibãs, deliciosamente divertido disse que “não estava ciente” de tal reunião.

Provavelmente nunca saberemos os termos exatos discutidos pelos dois improváveis participantes – presumindo que a reunião tenha ocorrido e não seja uma desinformação grosseira da CIA.

Enquanto isso, a histeria pública ocidental está acima de tudo focada na necessidade imperiosa de extrair todos os “tradutores” e outros funcionários (que eram de fato colaboradores da NATO) do aeroporto de Cabul. Ainda assim, um silêncio estrondoso envolve o que é de facto o verdadeiro negócio: o “exército na sombra” da CIA deixado para trás. Este exército são milícias afegãs criadas no início dos anos 2000 para se comprometerem na “contra-rebelião” – o eufemismo para operações de busca e destruição contra os Talibã e a Al-Qaeda.

Ao longo da sua existência, essas milícias praticaram massivamente, aquela combinação de semântica que normaliza o assassinato: “assassinatos extrajudiciais”, geralmente na sequência de “interrogatórios intensificados”. Essas operações sempre foram secretas de acordo com o clássico manual da CIA, garantindo assim que nunca houvesse qualquer prestação de contas.

Agora a CIA tem um problema. Os Talibã mantêm células adormecidas em Cabul desde maio e muito antes disso em órgãos selecionados do governo afegão. Uma fonte próxima do Ministério do Interior confirmou que os Talibã conseguiram deitar as mãos à lista completa de agentes dos dois principais esquemas da CIA: a Força de Proteção Khost (KPF) e a Direção Nacional de Segurança (NDS). Esses operacionais são os principais alvos dos Talibãs em postos de controlo que levam ao aeroporto de Cabul, não “civis afegãos” aleatórios e indefesos tentando escapar. Os Talibã montaram uma operação bastante complexa e direcionada em Cabul, com muitas nuances – permitindo, por exemplo, a passagem livre para as Forças Especiais dos membros da NATO que foram à cidade em busca de seus nacionais.

Mas o acesso ao aeroporto agora está bloqueado para todos os cidadãos afegãos. O atentado de carro-bomba suicida de duplo toque de ontem introduziu uma variável ainda mais complexa: os Talibã precisarão reunir todos os seus recursos de serviços de informações, rapidamente, para lutar contra quaisquer elementos que estejam tentando introduzir ataques terroristas no país. O

Centro Norueguês de Análises Globais RHIPTO mostrou como os Talibã têm um “sistema de informações muito avançado” aplicado ao Afeganistão urbano, especialmente Cabul. O “bater à porta das pessoas” que alimenta a histeria ocidental significa que eles sabem exatamente onde bater quando se trata de encontrar redes de colaboracionistas (do ocupante).

Não admira que os fazedores de opinião ocidentais estejam em lágrimas sobre como os seus serviços de informações serão agora prejudicados na zona de interseção da Ásia Central com a do Sul. No entanto, a reação oficial silenciosa resumiu-se aos ministros das Relações Exteriores do G7 emitindo uma mera declaração anunciando que estavam “profundamente preocupados com relatos de represálias violentas em partes do Afeganistão”.

O Blowback [NT] é realmente um problema dos diabos. Especialmente quando não o podem reconhecer totalmente.

De Phoenix à Omega

O último capítulo das operações da CIA no Afeganistão começou ainda a campanha de bombardeios de 2001 nem sequer tinha terminado. Eu mesmo vi em Tora Bora, em dezembro de 2001, quando as Forças Especiais surgiram do nada equipadas com telefones via satélite Thuraya e malas cheias de dinheiro. Mais tarde, o papel das milícias “irregulares” na derrota dos Talibã e o desmembramento da Al-Qaeda foi festejado nos EUA como um grande sucesso.

O ex-presidente afegão Hamid Karzai foi, para seu crédito, inicialmente contra as Forças Especiais dos EUA que criaram milícias locais, uma plataforma essencial da estratégia de contra-rebelião. Mas no final aquela mina de ouro tornou-se irresistível.

Um grande aproveitador foi o Ministério do Interior Afegão, com o esquema inicial consolidando-se sob os auspícios da Polícia Local do Afeganistão. No entanto, algumas milícias importantes não estavam sob o Ministério, mas respondiam diretamente à CIA e ao Comando das Forças Especiais dos EUA, mais tarde renomeado como o infame Comando de Operações Especiais Conjuntas (JSOC).

Inevitavelmente, a CIA e o JSOC começaram a brigar pelo controlo das principais milícias. Isso foi resolvido pelo Pentágono, que emprestou Forças Especiais à CIA no âmbito do Programa Omega. Sob o Omega, a CIA foi encarregada de se direcionar para os serviços de informações e as Operações Especiais assumiram o controlo musculado no terreno. O Omega fez progressos firmes sob a administração do ex-presidente, Barack Obama: era assustadoramente semelhante à Operação Phoenix no Vietname.

Há dez anos, o exército da CIA, apelidado de Counter-terrorist Pursuit Teams (CTPT), já tinha 3 000 homens, pagos e armados pela combinação CIA-JSOC. Não havia nada de “contra-rebelião” nisto: eram esquadrões da morte, muito parecidos com seus homólogos da América Latina nos anos 1970.

Em 2015, a CIA conseguiu que sua unidade irmã afegã, a Direção Nacional de Segurança (NDS), estabelecesse novos grupos paramilitares para, em teoria, combater o ISIS, que mais tarde se tornou localmente identificado como ISIS-Khorasan. Em 2017, o então chefe da CIA Mike Pompeo colocou a CIA em intensivo trabalho no Afeganistão, visando os Talibã, mas também a Al-Qaeda, que na época havia diminuído para algumas dezenas de operacionais. Pompeo prometeu que a nova exibição seria “agressiva”, “inesquecível” e “implacável”.

Aqueles sombrios “atores militares”

Indiscutivelmente, o relatório mais preciso e conciso sobre os paramilitares americanos no Afeganistão é o de Antonio de Lauri, Investigador Sénior do Chr. Michelsen Institute, e Astrid Suhrke, Pesquisadora Sénior Emérita também daquele Instituto.

O relatório mostra como o exército da CIA era uma hidra de duas cabeças. As unidades mais antigas remontavam a 2001 e estavam muito ligadas à CIA. A mais poderosa era a Força de Proteção Khost (KPF), baseada no Camp Chapman da CIA em Khost. A KPF operava totalmente fora da lei afegã, para não mencionar o orçamento. Após uma investigação de Seymour Hersh, também mostrei como a CIA financiou as suas operações secretas por meio de uma linha de fuga da heroína (rate line) de, que os Talibãs agora prometeram destruir.

A outra cabeça da hidra eram as próprias Forças Especiais Afegãs do NDS: quatro unidades principais, cada uma operando em sua própria área regional. E isso é tudo que se sabia sobre eles. O NDS foi financiado por nada menos que a CIA. Para todos os efeitos práticos, os operacionais foram treinados e armados pela CIA.

Portanto, não é de admirar que alguém no Afeganistão ou em qualquer região soubesse algo definitivo sobre estas operações e estrutura de comando. A Missão de Assistência da ONU no Afeganistão (UNAMA), um nome que enfurecia a burocracia, definiu as operações do KPF e do NDS como aparentando “ser coordenadas por atores militares internacionais”, isto é, fora da cadeia de comando normal do governo.”

Em 2018, o KPF foi estimado alocar entre 3 000 a mais de 10 000 operacionais. O que poucos afegãos realmente sabiam é que estavam devidamente armados e bem pagos; operava com pessoas que falavam inglês americano, usando vocabulário americano; envolvido em operações noturnas em áreas residenciais; em condições cruciais, eram capazes de convocar ataques aéreos, executados pelos militares dos EUA.

Um relatório da UNAMA de 2019 destacou que havia “constantemente relatórios de abusos dos direitos humanos pelo KPF, matando civis intencionalmente, detendo indivíduos ilegalmente, danificando e queimando propriedades civis intencionalmente durante as operações de busca e invasões noturnas.” Chame-se a isto de efeito Pompeo: “agressivo, “inesquecível” e “implacável” – seja por ataques de matar ou capturar, ou drones com mísseis Hellfire.

Ocidentais agora acordados, perdem o sono com a “perda das liberdades civis” no Afeganistão, podem nem mesmo estar vagamente cientes de que as “forças da coligação” comandadas pela NATO se destacaram na preparação de suas próprias listas para matar ou capturar, conhecidas pela denominação semanticamente demente: Lista Conjunta de Efeitos Priorizados.

A CIA, por sua vez, não não se preocupa minimamente. Afinal, a Agência sempre esteve totalmente fora da jurisdição das leis afegãs que regulam as operações das “forças da coligação”.

A dronificação da violência

Nos últimos anos, o exército das sombras da CIA fundiu-se no que Ian Shaw e Majed Akhter descreveram de forma memorável como The Dronification of State Violence num artigo publicado no jornal Critical Asian Studies em 2014 (para download aqui

Shaw e Akhter definem o processo alarmante e contínuo de dronificação como: “a transferência do poder soberano dos militares uniformizados para a CIA e as Forças Especiais; transformações tecnopolíticas realizadas pelo drone Predator; a burocratização da cadeia de matar; e a individualização dos alvos.”

Isto equivale, argumentam os autores, ao que Hannah Arendt definiu como “governo de ninguém”. Ou, na verdade, de alguém agindo para além de quaisquer regras.

O tóxico resultado final no Afeganistão foi o casamento entre o exército na sombra da CIA e a dronificação. Os Talibã podem estar dispostos a estender uma amnistia geral e a não exigir vingança. Mas perdoar aqueles que se envolveram numa onda de assassinatos como parte do arranjo de casamento pode ser um passo longe demais para o código Pashtunwali.

O acordo de Doha de fevereiro de 2020 entre Washington e os Talibã não diz absolutamente nada sobre o exército sombra da CIA. Então, a questão agora é como os americanos derrotados serão capazes de manter os seus ativos de espionagem no Afeganistão para suas proverbiais operações de “contra-rebelião”.

Um governo liderado pelos Talibã inevitavelmente assumirá o NDS. O que acontece com as milícias é uma questão em aberto. Eles podem ser completamente controlados pelos Talibã. Eles poderiam separar-se e eventualmente encontrar novos patrocinadores (sauditas, turcos). Eles poderiam tornar-se autónomos e servir um senhor da guerra mais bem posicionado em tesouraria.

Os Talibã podem ser essencialmente uma coleção de senhores da guerra (jang salar, em dari). Mas o que é certo é que um novo governo simplesmente não permitirá um cenário de terreno baldio com milícias semelhante ao da Líbia. Milhares de mercenários com potencial de se tornarem um substituto do ISIS-Khorasan, ameaçando a entrada do Afeganistão no processo de integração da Eurásia, precisam ser domesticados. Burns sabe disso, Baradar sabe – mas a opinião pública ocidental nada sabe.

27/Agosto/2021

[NT] Blowback:   termo da CIA para consequencias não intencionais e efeitos colaterais indesejados de uma operação secreta. Para os civis que sofrem os seus efeitos, eles normalmente manifestam-se como atos “aleatórios” de violência política sem uma causa direta e percetível para o público não informado, em nome de quem a Agência atuou.

[*] Jornalista.

O original encontra-se em The Cradle

Este artigo encontra-se em https://resistir.info

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