A desdolarização faz cada vez mais manchetes e não é preciso procurar muito para encontrar exemplos.
Novas fontes de financiamento não-dólar estão a emergir. Há novos acordos bilaterais de comércio e empréstimos em divisas para além do US dólar. Ainda mais importante, grandes compradores e vendedores de petróleo – Moscou e Riad assim como Pequim e Nova Delhi – concordam em comerciar em divisas não-dólar. Estes acordos estão a destruir um dos principais pilares da dominância do dólar desde que a OPEP quadruplicou e a seguir duplico os preços do petróleo na década de 1970, dando aos países por toda a parte do mundo uma razão para procurar e manter dólares.
Contudo, muitos analistas continuam a escrever como se a dominância do dólar permanecesse intacta. Naturalmente, seus argumentos são baseados sobre toda espécie de falsas suposições. Exemplo: eles apregoam que o dólar continuará a dominar até que a divisa de outro país o substitua ou que isto só acontecerá se outros países buscarem formas de internacionalização que imitem o US dólar de hoje.
Num certo sentido, a discussão é um pouco como aquela descrita em The Big Short, um filme acerca de um pequeno bando de banqueiros que apostam contra o mercado habitacional e os títulos (securities) que neles repousam nos anos 2000. Tendo feito suas apostas, eles esperavam pelo colapso do mercado. Isso aconteceu. Contudo, por algum tempo, enquanto os incumprimentos hipotecários aumentavam, os títulos que neles se baseavam continuaram a aumentar de valor. Os preços foram impulsionados por investidores influenciados pela famosa afirmação de Alan Greenspan de que não poderia haver uma bolha no mercado habitacional. Os títulos tão pouco foram rebaixados. As agências de classificação não só haviam dado notas elevadas ao investimento lixo como haviam passado a acreditar nas suas próprias mentiras. Só quando as perdas se acumularam e começaram realmente a filtrar-se através do sistema na forma de falhas de pagamento é que a verdade foi reconhecida.
A desdolarização também tem o seu equivalente nas perdas e falhas de pagamento. Considere-se a notícia recente do Financial Times: “Homens de negro na China intensificam seu escrutínio de detetives corporativos estrangeiros”. Ele descreve o Ministério da Segurança do Estado chinês a utilizar “métodos familiares a espiões e detetives privados” para reprimir “detetives corporativos estrangeiros” que realizam a “devida diligência” (“due diligence”) em investimentos. Eles mencionam por exemplo o processo de verificar se uma cadeia de fornecimentos envolveu “trabalho forçado do Xinjiang”, declarando que a devida diligência é crítica para atrair investimento dos EUA.
A notícia acrescenta que anteriormente “os grupos de devida diligência sentiam que tinha espaço amplo para operar e que as autoridades entendiam a sua importância”, mas agora Pequim intensificou o escrutínio destes escrutinadores por motivos de segurança nacional. Eles lamentam que “empresas de espionagem sejam as guardiãs do dinheiro”, mas agora “aquela sensação de relacionamento mutuamente benéfico já se foi”.
Agora, o governo chinês não tem escassez de motivos para intensificar o seu escrutínio da informação que está a ser recolhida por estrangeiros, particularmente por entidades dos EUA. Afinal de contas, ele é o alvo de uma guerra híbrida dos EUA cujas frentes multiplicam-se diariamente. Contudo, isto não é o único significado desta história. Ela vai mais fundo do que isso como atesta a desdolarização.
Desde 1971 o papel global da divisa estado-unidense repousa na afirmação de que o sistema financeiro denominado em dólar era o mais refinado do mundo, com as mais vastas e profundas reservas (pools) de capital nas quais o resto dos investidores do mundo poderiam abastecer-se. A expansão da atividade financeira, também conhecida como financeirização, certamente tem sido crítica. Ao aumentar a procura financeira pelo dólar, ela atuou contra o Dilema Triffin causado pelos défices dos EUA que proporcionavam liquidez ao mundo, o que significa que quanto maiores os défices estado-unidenses maior será a pressão baixista sobre o dólar.
Não é preciso dizer que as afirmações acerca dos atrativos das finanças dos EUA foram exageradas. No que se refere à maior parte do mundo, ao invés de proporcionar investimento produtivo benéfico, o sistema financeiro denominado em US dólar apenas desencadeou torrentes de dinheiro “quente”de curto prazo que só deram lucro a investidores especulativos ocidentais, enquanto regularmente arruinavam o resto das economias do mundo. Só a China e um punhado de outros destinos de investimento mais pequenos beneficiaram-se de um certo montante (habitualmente exagerada) de investimento produtivo. Ironicamente, isto fez parte do esvaziamento da manufatura nos EUA através de um pequeno investimento direto estrangeiro e um bocado de terciarização.
Agora, contudo, as contradições internas do sistema denominado em US dólar estão a crescer. Ao mesmo tempo que está a cessar de providenciar aos investidores de curto prazo dos EUA e do ocidente oportunidades para investimento especulativo e para fornecer o modesto investimento produtivo de outrora.
A mais fundamental destas contradições crescentes é o dilema (bind) em que a ascensão da inflação coloca aos sabichões do Federal Reserve. Por um lado, o único meio que têm para tratar da inflação sem corroer o poder do capital é pelo aumento das taxas de juro, mas isso promete levar ao crash as próprias estruturas financeiras da dívida improdutiva e da especulação sobre as quais a riqueza da elite financeira a que ela serve. Por outro lado, se o Fed não elevar as taxas de juro e permitir que a inflação corra de modo desenfreado, destruirá o mesmo sistema ainda mais diretamente ao minar o valor da unidade monetária, o US dólar, sobre o qual repousa todo o sistema. De que adianta acumular a sua riqueza em dólares se eles estão a perder valor a uma taxa próxima, ou mesmo mais alta, do que a taxa à qual você está a acumulá-la?
Se o sistema financeiro dos EUA está a perder o seu encanto mesmo para especuladores, a própria financiarização sobre a qual ele preside e sobre o qual repousa o sistema do US dólar tem, ao longo das últimas décadas, estrangulado a fonte alternativa de ganho, a economia produtiva dos EUA. Durante décadas ela foi privada do investimento paciente e de longo prazo, o único que pode torná-la dinâmica. Portanto, hoje nem o sistema financeiro nem a economia produtiva dos EUA manterão dólares a fluírem para o sistema do US dólar. O primeiro, que outrora gerava lucros – via juros ou especulação – pela desnatação de rendimentos da produção mantinha o capital a fluir para dentro do sistema do US dólar com base numa expectativa razoável de ganho. Essa situação foi corroída.
Não é admirar um artigo recente do Financial Times, comparando os sistemas financeiros dos EUA e europeu, explicasse que hoje a UE, com a sua base proporcionalmente mais ampla de corporações produtivas capazes de gerar rendimentos de dividendos ao invés de meramente ganhos especulativos incertos e cada vez mais arriscados, é provável que atraia mais dinheiro. E se a Europa parece boa em comparação com os EUA, a China parece ainda melhor.
Moeda de todo o mundo está a migrar para IPOs (initial public offerings) chinesas. Em contraste, IPOs nos EUA e no Reino Unido, com economias na maior parte financiarizadas e enfraquecidas, tem-se comportando de modo abissal. A simples razão é que a China ainda tem uma economia produtiva e muito mais da espécie de empresas produtivas pagadoras de dividendos firmes que os investidores agora procurarão cada vez mais.
Assim, a repressão da China aos detetives ocidentais da “devida diligência” é apenas mais um sinal de que o sistema financeiro dos EUA, e com ele o dólar, está a perder rapidamente aqueles poucos encantos que teve outrora. A China pode ter tolerado uma certa quantidade de espionagem de investidores ocidentais quando eles constituíam uma grande fonte de investimento na economia produtiva da China e as relações EUA-China eram muito melhores. Hoje, não só tem de ser mais vigilante por motivos de segurança nacional, com os EUA a travarem uma guerra híbrida sempre crescente contra a China, como também a sua economia produtiva está a ganhar o favor do próprio capital que está a apaixonar-se pelo sistema financeiro dos EUA. A China não tem incentivos para tolerar “detetives” dos EUA.
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