José Bessa Freire
“Talvez as memórias sejam o combustível que as pessoas queimam para ficarem vivas (Haruki Murakami. 2025).
Em verdade, em verdade vos digo, a história que agora vos narro é verídica e está documentada, não é literatura de terror, embora mencione fantasmas que provocam medo e suspense nos corredores da UERJ. O título é uma referência ao livro do colunista social Ibrahim Sued “000 contra Moscou” (1965), no qual ele conta ao café society sua viagem à Rússia. Trata-se de uma paródia do filme “007 contra Moscou” (1963) protagonizado por Sean Connery no papel do agente secreto James Bond.
No Brasil, os agentes secretos desidrataram no fim da ditadura, quando foram oficialmente extintas as Assessorias de Segurança e Informação (AESI) montadas pelo SNI dentro das universidades. A Uerj realocou servidores que atuavam como agentes de informação, mas há evidências de que não cessou o contato de alguns deles com os órgãos de repressão. Mantiveram o hábito de espionar seus colegas. Assim como o uso do cachimbo entorta a boca, o emprego reiterado do indicador endurece o dedo de quem cagueta.
Dedo-duro não tem amparo nas citadas “quatro linhas” da Constituição Cidadã promulgada em outubro de 1988, que deu nova feição à vida acadêmica, afinada agora com a liberdade anunciada no discurso de Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte:
– Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania aonde quer que ela desgrace homens e nações.
Dedo endurecido
Depois de oprimido pela tirania por duas décadas (1964-1985), o Brasil respirou aliviado, seguindo a direção do vento democrático que varria o mundo, incluindo a URSS, onde Mikhail Gorbachev comandava o processo de democratização política e econômica. Sintonizada com a conjuntura, a UERJ recebeu, em 2 de dezembro de 1988, uma delegação soviética para organizar evento acadêmico sobre a Perestroika (restruturação) e a Glásnost (abertura), como fizeram outras universidades.
A reunião ‘subversiva’ atraiu o olhar de delatores ‘patriotas’. Mas, em 1989, três anos após a volta dos militares aos quartéis, não era mais permitido o uso de grampos telefônicos, censura postal e gravação clandestina, o que dificultou a ação de um ex-agente de boca torta que, protegido pelo anonimato, se infiltrou no encontro com os russos na reitoria e enviou notificação aos órgãos de repressão, consciente de que, qual torcedor do Flamengo, uma vez ‘comuna’, sempre ‘comuna’.
No entanto, os registros da espionagem na UERJ desapareceram. Não é fácil comprovar a delação. A gente se agarra em fiapos de informação como a registrada, pouco antes da criação da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), na Certidão da extinta Casa Militar da Presidência da República, hoje GSI/PR. A Certidão é resposta ao “habeas data” que solicitei a título pessoal, em 1998, amparado pela lei então vigente.
A Casa Militar enviou resumo de mais de cem registros de minhas atividades, desde a primeira detenção, em 15 de setembro de 1966, na passeata do restaurante estudantil Calabouço. A partir daí, a dita “Comunidade de Informações” fichou, ano após ano, participações no movimento estudantil, falas em reuniões, atuação em vários jornais, prisões, exílio no Chile, Peru e França, o retorno ao Brasil, a atuação sindical e docente na Universidade do Amazonas e na UERJ, incluindo as disciplinas ministradas avaliadas como “doutrinação”.
A Perestroika subversiva
O que interessa aqui é a penúltima ficha sobre o evento no qual estive presente, a convite do reitor Ivo Barbieri de quem era assessor. Lá consta:
“Em 02 Dez 88, participou de um encontro da delegação soviética que esteve no Brasil a convite do CEBRADE, com o Reitor de Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj)”.
Nenhuma palavra sobre o objetivo da reunião realizada à luz do dia. Por ter sido informação enviada por um dedo-duro e acolhida pelo SNI, sugere algo clandestino. O que foi ali falado talvez conste nos arquivos, mas a Certidão se limita apenas a uma espécie de BO resumido com o registro da ocorrência. Outros “perestroikados” também “denunciados” podem obter a certidão.
O último fichamento – pasmem! – é de 20 de abril de 1989. A ‘acusação’ é a de que o requerente “participou de um debate sobre o tema Língua Geral da Amazônia, realizado no Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) em Belém do Pará”. Três meses depois, o mesmo Museu repete convite para mesa-redonda no Simpósio Internacional sobre o Bicentenário da Revolução Francesa financiado pelo CNRS/CNPq. – Eta istina bespolezna – diria Lenin com seu sotaque ribeirinho do rio Volga.
Cabe perguntar: o que há de ilegal e perigoso no trabalho de um professor no exercício de suas funções? Por que repassar esse dado a órgãos de informação? Qual a sua utilidade para os serviços de inteligência? Seria uma questão ideológica como o livro de Ibrahim Sued, cujo título original “Viagem ao País do Medo” assustava com a exibição do fantasma do comunismo? O humorista Stanislaw Ponte Preta considerou seu conteúdo tão inócuo, que sugeriu de gozação trocá-lo por “000 contra Moscou”, aceito pelo autor por razões editoriais e mercadológicas.
A Ditadura envergonhada
Os três zeros sugerem a impotência do autor e a inutilidade da informação. Será? Elio Gaspari, em A Ditadura Envergonhada, menciona a existência nos porões do SNI de avançado sistema de computadores, que armazenava fichas de opositores no arquivo denominado Levantamento de Dados Biográficos (LDBs). Ou seja, o Serviço de Inteligência tinha interesse em seguir os passos de quem tinha “nojo e ódio à ditadura”.
De qualquer forma, este obscuro escriba é grato à Casa Militar, porque com isso enriqueceu o seu CV, inserindo o dado na janela de eventos do Currículo Lattes. Com a declaração original do Museu Goeldi extraviada, o delator lhe forneceu o comprovante que precisava. No caso, o pequeno ganho foi pessoal, mas o Brasil, como nação, também se beneficiou com a ação de dedos-duros, que contribuíram para a formação do pensamento brasileiro.
Reza a lenda que o historiador Caio Prado Jr., que tanto nos ajudou a entender o Brasil, deu memorável conferência na USP, em 1967. Condenado pela 2ª Auditoria Militar de São Paulo pelo crime de pensar, ficou preso dois anos. Quando saiu do Presídio Tiradentes, pediram-lhe cópia da fala inesquecível. Mas ela não havia sido escrita. Criadas no universo da oralidade, as palavras haviam sido levadas pelo vento. No entanto, o texto completo foi encontrado anos depois no arquivo do DEOPS, graças a um dedo-duro, que havia taquigrafado a conferência na íntegra, possibilitando sua publicação. Dedo-durismo também é memória.
Quase sempre, porém, as consequências da delação foram nefastas para os denunciados, como relata o ex-aluno de Medicina da UEG Luiz Roberto Tenório, ex-presidente do Centro Acadêmico, cassado pelo AI-5. Já diplomado, foi sequestrado em seu consultório, preso e torturado. Seus passos e os dos docentes eram seguidos por delações descaradas, sem limites, enviadas à “Comunidade de Informações” formada pelo SNI – Sistema Nacional de Informações, CENIMAR (Marinha), CISA (Aeronáutica), DOI-CODI (Exército) e DOPS.
Ditadura sem-vergonha
Alguns dedos-duros da UEG-UERJ denunciaram professores que, atingidos pelo arbitrário AI-5, foram expulsos e aposentados, entre eles, Carlos Haroldo Porto Carreiro, Durmeval Bartolomeu Trigueiro Mendes e Hélio Marques da Silva, em atos assinados pelo ditador de plantão, o mal. Costa e Silva. O reitor baixou portarias, desligando-os sumariamente da Universidade e comunicou ao Superintendente Regional do INPS para efeitos de aposentadoria compulsória.
Era a época em que a universidade, através de seus gestores, não tinha vergonha de colaborar com a ditadura. Isso ficou evidente no depoimento do reitor João Lyra Filho, cujo nome batiza o Pavilhão Central da UERJ. Em 1971, ele afirmou que os processos nunca chegaram diretamente na Universidade, mas que, após a decisão do governo federal, os docentes foram imediatamente desligados da UEG.
Houve recurso. O inesquecível Porto Carreiro – de quem tive o privilégio de ser aluno na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ na disciplina Introdução à Ciência do Direito – recorreu com o argumento de que a UEG era então fundação de direito privado, situando-se, portanto, fora da jurisdição do AI-5. O Conselho Universitário, no entanto, aprovou o parecer do conselheiro Caio Tácito, confirmando o ato do reitor. Porto Carreiro foi também cassado pelo AI-5 do cargo de desembargador por delito de opinião contrária à ditadura.
Quanto ao corpo discente, a repressão aplicou o Decreto 477 para expulsar quem protestava e criou o Departamento de Alunos (DA), em 1971, nos “Anos de Terror”, cuja documentação se evaporou. Ficou reduzida apenas ao “arquivo morto” (morto mesmo) com oito pastas de ofícios burocráticos. O fio da memória é frágil. “O carrasco sempre mata duas vezes, a segunda por meio do silêncio” – escreveu Elie Wiesel, sobrevivente do campo de concentração.
Ou DA ou DCE
O silêncio rompido. O relatório “Departamento de Alunos: a que será que se destina?”, escrito em 1988, usa dados oficiais do Boletim da UEG-UERJ e entrevistas com antigos funcionários para situar o DA como aparelho de repressão ao movimento estudantil e de cooptação de suas lideranças. O ato de criação definia no art. 1º seus objetivos: “adestrar (sic) a capacidade de liderança autêntica” dos estudantes e “incentivar o cultivo cada vez mais íntimo dos estudos brasileiros, sem proselitismo político ou tendência ideológica”.
O espaço físico de adestramento estava previsto na planta original do prédio, desenhada em 1968. Reservava sete salas ao CPOR (Centro Preparatório de Oficiais da Reserva), a Cursos de Lideranças e a seus Instrutores, a fim de “facilitar aos jovens universitários a prestação do serviço militar”. É preciso “dar à juventude uma motivação, abrindo-lhe alternativas válidas para que não se incorpore aos cochichos de baixa politicagem sem emulações”.
Uma das alternativas era a prática de esporte com sentido político e fins estratégicos. A ideia era que “os desportos canalizem energias de tavolagem da politicalha para a formação sadia dos moços, que merecem o maior apreço dos educadores interessados no preparo de um povo varonil”, como sinaliza João Lyra Filho no artigo “O valor pedagógico da pelada”, no qual revela sua fonte de inspiração: “O presidente Médici realçou o sentido democrático dos desportos no seu primeiro encontro na TV”.
Estudante que bate bola não protesta – acreditava João Lyra. A proposta da administração universitária ia mais além: impedia a existência de organizações estudantis autônomas. Um Diretório Central de Estudantes independente não podia coexistir com o Departamento de Alunos. Era DA ou DCE.
Quatro zeros contra Moscou
Os líderes combativos eram expulsos, os submissos cooptados com favores e prebendas. O Diretório Acadêmico de Engenharia, sob intervenção, promoveu o VI Baile dos Golfinhos na Sociedade Hebraica para homenagear a comitiva de alunos que viajaria no dia seguinte aos Estados Unidos a fim de cumprir convênio de intercâmbio cultural. Outra nota dá conta da viagem à Califórnia de “nove líderes estudantis” e do presidente do DCE sob intervenção.
De onde veio a ideia de criar o DA? O general Bina Machado, comandante do I Exército, reivindicou a paternidade. Mas parte do planejado não saiu do papel, a começar pela construção inacabada do prédio considerado “a obra do século”. Na sua inauguração, em 1976, o governador Faria Lima não encontrou nenhum dos 22 compartimentos e nem os três restaurantes, cozinha central e cantina previstos na planta, só entulho, lixo e restos das tubulações da CEDAG rompidas por ação da Construtora Odebrecht.
O DA foi criado pelo autoritarismo, com fins perversos, baseados em concepções retrógradas, com a finalidade de arrebentar as organizações estudantis e de atrelá-las ao sistema de poder. Em 1988 foi proposta a sua extinção e a criação de outra estrutura para o contato com os alunos. O I Congresso Interno DA Uerj, realizado em 1984, quando o povo estava nas ruas exigindo eleições diretas, já havia sugerido “transformar o prédio dos alunos em um centro permanente de atividades culturais, artística e políticas, integrado a um projeto democrático”.
A proposta se tornou realidade na gestão do reitor Ivo Barbieri. Hoje o prédio abriga o Centro Cultural da UERJ e a COART – uma coordenadoria de extensão que desenvolve atividades nas áreas de artes visuais, artes cênicas, cinema, dança, literatura e música. Foi palco da mostra “Memórias Encontradas: entre a solidariedade e a perseguição” com fotos e histórias de atrocidades da Operação Condor e de resistentes do Brasil, Argentina, Chile e Uruguai, que se refugiaram em embaixadas.
Apesar dos avanços democráticos, o fantasma russo ainda assombra a UERJ. Em 2017, a professora Maria Teresa Toríbio foi interrompida e hostilizada por um grupo fascista durante o evento “Revolução Bolchevique: História e Memória”. Sua fala foi filmada acintosamente por alguém que, aos berros, acusou-a de comunista e ameaçou entregar a gravação ao Comando Militar do Leste. Os jornais, que registraram tudo, estão acessíveis.
E aqui pra nós, os russos já não são mais os de 1917. O tenente-coronel Vladimir Putin, eterno autocrata, ex-agente da KGB, assombra de outra forma e faz Lenin tremer em seu túmulo. No entanto, se o punhal verde-amarelo tivesse sido cravado no coração do Brasil e a intentona golpista de 9 de janeiro de 2023 tivesse sido bem sucedida, esse texto que você acaba de ler teria outro título: “Os quatro zeros sem fraquejada: 01, 02, 03 e 04 contra Moscou”. Seria certamente censurado.
A gente até conhece alguns desses delatores, mas ninguém aqui é dedo-duro para dedurar dedos-duros. No entanto, é necessário combater o pecado que cometeram e queimar o combustível da memória para nos mantermos vivos, como quer o escritor japonês Haruki Murakami: “Memórias importantes, memórias não tão importantes, memórias totalmente inúteis. Não há distinção – são apenas combustível”.
Capítulos publicados:
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