Hugo Dionísio [*]
Será possível pegar num livro de “Asterix – o Gaulês” e, após uma ávida leitura, chegar ao final e… Ao contrário do que vos tinham dito, ficarem profundamente convencidos de que quem invade são os gauleses e é o império romano quem está cercado?
Se consideram esta conclusão uma impossibilidade em si mesma, então, deixe-me dar-vos uma notícia: este é nosso prato do dia. Todos os dias, no “jornalismo” de taberna, na “literatura” de supermercado, na “investigação” de pacotilha e “narrativa política” de jardim de infância, somos levados a acreditar que os romanos estão cercados pelos gauleses. E, o mais grave, é que muitos parecem acreditar.
Façamos de conta que, tal como vos omitem as factualidades históricas que antecedem os factos que justificam todas as falácias; Goscinny, ao invés de apresentar Roma como um império e a aldeia de Asterix como resistente, faria o seguinte, daria uma de jorna lixo “woke” e contava a história assim:
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Omitia o caráter imperial de Roma, não falando da sua expansão territorial, a derrota gaulesa em Alésia;
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Apresentava Vercingétorix como um bárbaro tirano, não eleito em eleições “credíveis” aos olhos romanos, como resistindo à civilização, à democracia e violador de direitos humanos, como os LGBTQP+;
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Apresentava Roma como uma ampla democracia civilizadora, profundamente respeitosa dos “direitos humanos” dos escravos, a quem tratava com toda a dignidade;
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Narrava os gauleses como desorganizados, gulosos por javalis, que comiam com as mãos, bêbados e belicosos;
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Roma era caracterizada como sendo governada por um senado, por elevada gente oligarca, mas democrática, aristocrata, mas civilizada, com as suas estradas, o direito romano, a cidadania romana;
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A Gália seria retratada como ultrapassada, resistindo à modernidade, governada por um tirano chefes de clã, sem processo eleitoral e sem direito romano, ou seja, sem o “estado de direito”, o “rule of law”, o “rules based order” (ordem baseada em regras).
No final disto tudo, como ficariam a ver os gauleses? Julgo que alguns nem precisariam de tanto. Bastava Uderzo ter pintado as vestes gaulesas de vermelho, dar uma foice a Asterix (já a tem) e um martelo a Obelix e, voilá…. Acudam que vêm aí os gauleses!
Com ou sem foices e martelos, Uderzo e Goscinny contentar-nos-iam com “inspiradíssimas” narrativas, segundo as quais os desonestos, ladrões de propriedade industrial e aldrabões dos gauleses, tinham uma poção cuja receita era “roubada” aos laboratórios romanos, obtendo assim, Asterix e os seus, uma desonesta desvantagem na batalha.
Os desenhos só consagrariam para a eternidade, retumbantes imagens de Asterix e Obelix a massacrar romanos nas batalhas, a “roubar” comida das colheitas dos “pobres” latifundiários romanos, omitindo todas as factualidades romanas que pudessem apontar para um cerco, uma invasão, um massacre e sanções unilaterais para matar a aldeia gaulesa à fome.
Enquanto assolados por sanções e sem bens de subsistência, livro após livro, os Gauleses seriam desenhados como comendo o que não tinham, em devassos banquetes, com javalis comidos à mão, regados a vinho a martelo, bebido diretamente da ânfora, ao passo que dos romanos só apareceriam os discursos de Cícero, os banhos públicos e as grandes proezas tecnológicas de Roma… Grandes carroças, templos e praças… Escravos felizes e contentes.
Ou seja, basta imaginarem que Uderzo e Goscinny, tinham, através de um qualquer artifício da física quântica, sido trocados pelo Rogeiro e Milhazes. Colocariam centuriões a fazerem inflamados monólogos sobre como os gauleses, ao abrirem a porta da sua aldeia, tinham ocupado dois metros quadrados de território romano, jamais dizendo que, o que apresentavam como romano, havia, algum tempo antes, sido gaulês. Tal como contam que a URSS, ao combater os nazis, aproveitou para ocupar e controlar o leste europeu, com isso provando que, não fosse a NATO, e já teríamos Putin às portas de Lisboa.
Não contariam, claro, que, farta de ser devastada pelos impérios ocidentais, países como a Rússia, perdendo, uma vez mais, milhões de pessoas com uma invasão que não provocaram, aproveitariam a luta, que foram obrigados a fazer, para garantir que, por aquelas bandas, nunca mais! Tal como, aproveitariam para recuperar territórios perdidos, perante a agressão, que tinha sofrido 30 anos antes. O caso de parte da Ucrânia e três bálticos, que eram russos antes da invasão aliada após a revolução russa.
Claro, Uderzo e Goscinny, travestidos de Rogeiro e Milhazes, também omitiriam o papel que os bálticos tiveram na invasão da URSS, nomeadamente a Finlândia e a Suécia, mas não só. Contariam jamais que, desde tempos imemoriais, a Rússia é uma terra cobiçada pelos impérios ocidentais, tendo sido invadida, pelo menos, por:
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pilhagens sazonais dos vikings;
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Império Lituano no século XIV,
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Império Polaco no século XVII, que o voltou a fazer já no século XX, em 1918, pelo
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império Sueco no Século XVIII, pela
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França no século XIX
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invasão nazi e a invasão das
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“potências aliadas” da 1ª guerra mundial (14 nações imperiais), perdeu a Finlândia, Países Bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia), Polônia, Bielorrússia e Ucrânia (tratado Brest-Litovsk).