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quarta-feira, 9 outubro, 2024

Os futuros possíveis (1) – Um texto sobre Cuba, que se aplica a todos os povos

Centro de Imunologia Molecular, em Cuba.

Agustín Lage Dávila [*]

Vivemos um momento da nossa história que contém muitas “tomadas de decisão”, ao nível coletivo e individual e é fundamental que essas decisões sejam orientadas por uma visão do futuro que queremos e também dos futuros alternativos que não queremos. Ética é justamente isso, o compromisso com as consequências futuras de nossas decisões, muito mais do que com a conveniência ou inconveniência imediata, e para isso devemos sempre saber identificar o que é essencial, e evitar o bombardeamento de imagens e informações de cores diversas (que sabemos bem de onde vêm) e nos levam a focalizar a nossa atenção nas correntes laterais da realidade.

Num sermão proferido por Martin Luther King Jr. na difícil década de 1960 (Luther King foi assassinado em 1968), ele disse: “O progresso humano não é automático nem inevitável. O futuro já está aqui e devemos enfrentar a extrema urgência do agora. Neste constante quebra-cabeças que envolve vida e a história, a possibilidade de nos atrasarmos existe.” As tarefas de hoje valem pelo que contribuam para objetivos mais distantes e da velocidade que conseguimos para alcançá-los.

O passado é um só, porque já aconteceu e o que precisamos é interpretá-lo bem. Mas os futuros possíveis são vários e também temos que entendê-los bem, pois cada uma das posições que assumimos diante de problemas concretos, percebamos ou não, acrescenta um pequeno vetor de força na direção de um ou de outro. Os futuros alternativos e o soma de decisões aparentemente táticas diante de problemas concretos podem gerar ciclos de amplificação e variações irreversíveis.

O capitalismo não contém respostas para os problemas mais urgentes da humanidade:   a economia de mercado precisa de crescimento constante da produção e do consumo, mas não pode continuar a crescer sem ampliar as explosivas desigualdades sociais. Nem pode diminuir ou estagnar sem causar uma crise económica e social. Não há saída dentro do sistema capitalista e é urgente explorar alternativas.

Cuba constrói, a partir de suas raízes históricas e de sua cultura, uma alternativa própria de nação soberana, independente, socialista, democrática, próspera e sustentável, com uma economia voltada para a felicidade material e espiritual do povo; e defende o seu direito a continuar construindo e aprimorando o seu projeto social. Nós o defendemos com sucesso nas décadas do despertar revolucionário do Terceiro Mundo na década de 1960, depois nas décadas da Guerra Fria, e depois no mundo unipolar da década de 1990 e no Período Especial.

É um trabalho coletivo com conquistas inegáveis, reconhecidas por amigos e inimigos. Mas é uma obra ameaçada. Sempre foi ameaçada por mais de dois séculos, porque o projeto social cubano nasceu em oposição ao modelo capitalista, individualista, competitivo e predatório que surgiu quase ao mesmo tempo nos países industrializados do norte. Agora, na conjuntura histórica dos cubanos do início do século XXI, podem ver-se três caminhos possíveis que o nosso futuro poderia percorrer, os quais, aceitando a simplificação necessária para uma exposição breve e concentrada no principal, podemos qualificar como:

O caminho da ingenuidade, que nos levaria por sucessivas concessões, à república reconquistada pelos nossos adversários históricos e a novas dependências.

O caminho da estagnação, que sacrificaria os objetivos de desenvolvimento e participação em prol da rigidez dos controlos e nos levaria a nos excluirmos do sistema mundial de relações.

O caminho da cultura, que é o único que nos pode conduzir à pátria possível que desejam os cubanos.

É preciso conhecê-los bem, decidir por nós e não deixar que ninguém tente decidir por nós.

O caminho da ingenuidade:   rumo à República reconquistada pelos nossos adversários e à dependência. Nossos adversários nas batalhas de ideias de hoje (talvez para sempre) enquadram-se em duas categorias:

  1. Os inimigos conscientes que sabem que suas ações conduzem a um país fragmentado entre uma minoria de ricos, partidários da anexação do país aos Estados Unidos, e uma grande maioria de pobres. Estes, pressionados de forma perversa nessa direção, supõem que se tiverem sucesso cairão para o lado dos ricos. Nossos argumentos não são direcionados a este grupo. As atitudes políticas dessas pessoas serão resistentes a qualquer lógica, porque não partem do raciocínio, mas de interesses egoístas. Eles têm sido a base social – minúscula, mas real e perigosa – do terrorismo contra Cuba. Com este grupo não é possível haver uma “batalha de ideias”, mas simplesmente uma “batalha”, sem qualificativos.
  2. Os ingénuos, que são levados a confundir iniciativa económica com propriedade privada, a confundir direitos humanos com tolerância para agir contra os interesses do país e ao serviço de outro, a confundir debate aberto de ideias com portas abertas para a influência massiva da indústria da desinformação e ignorar o impacto da disputa histórica com os Estados Unidos e o bloqueio na análise dos assuntos cubanos. Com isso, podemos raciocinar e explicar-lhes até onde a ingenuidade nos pode levar. Esta categoria é mais numerosa e tem raízes diferentes, mas consequências semelhantes.

A Constituição da República de Cuba estabelece no artigo 27 que “A empresa estatal socialista é o principal sujeito da economia nacional”, embora reconheça a propriedade privada “que é exercida sobre determinados meios de produção por pessoas físicas ou jurídicas cubanas ou estrangeiras, com um papel complementar na economia”. E esclarece no artigo 30 que “A concentração da propriedade em pessoas singulares ou coletivas não estatais é regulada pelo Estado, o que garante também uma redistribuição cada vez mais justa da riqueza, de forma a preservar limites compatíveis com os valores socialistas da equidade e justiça social”.

Como seria o nosso futuro se permitíssemos que decisões aparentemente eficientes e racionais no curto prazo e em contextos restritos expandissem gradualmente o espaço da propriedade privada até provocar a erosão do papel central da propriedade social? Obviamente, haveria concentração de riqueza em poucas mãos. Ninguém se surpreende: é isso que as leis do mercado e a apropriação privada da riqueza socialmente construída sempre e em toda parte produziram. Além disso, uma espécie de “cultura da desigualdade” seria reinstaurada no pensamento coletivo que a legitima como algo permanente e o perpetua por meio da desigualdade educacional.

O 8º Congresso do Partido Comunista de Cuba, reforçou esta ideia ao afirmar no Relatório Central que:   “A expansão das atividades das formas de gestão não estatais não deve conduzir a um processo de privatizações, que varreria os alicerces e essências da sociedade socialista construída ao longo de mais de seis décadas […] nunca se pode esquecer que a propriedade de todo o povo sobre os meios de produção fundamentais constitui a base do real poder dos trabalhadores”.

Como seria o futuro se uma classe de proprietários privados tivesse o poder económico nas suas mãos? Não iria, em algum momento, reivindicar participações crescentes de poder político? Um eventual poder político vinculado à riqueza não agiria contra a soberania nacional? Isso é o que a história nos ensina: Cuba como capitalismo dependente nunca teve uma grande burguesia verdadeiramente nacional. Sempre foi principalmente uma burguesia de anexação. E seria de novo se déssemos uma chance.

Temos e teremos uma economia aberta, porque somos um país pequeno que deve valorizar a riqueza gerada nas transações económicas internacionais; mas os principais atores económicos no mundo capitalista externo são empresas privadas. Esses atores não privilegiariam suas relações com um setor privado interno? Foi o que disse o presidente dos Estados Unidos, Barak Obama, alto e bom som durante a sua visita a Cuba em 2016. Esta opção equivale a caminhar para uma economia privada, concentradora de riquezas, que supera e marginaliza a economia estatal socialista, que é aquela que distribui a riqueza.

Uma componente importante das pressões externas que recebe a economia cubana consiste em nos induzir a permitir o aprofundamento das desigualdades. Mas não foi exatamente isto o que aconteceu na Rússia em 1992, quando o abandono do socialismo e a avalanche de privatizações colocaram a economia nas mãos de oligarcas e mafiosos?

Como explica o camarada José Luis Rodríguez em seu livro El Derrumbe del Socialismo en Europa (Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 2014), estima-se que na Rússia 30% do capital inicial do setor privado teve origem criminosa; 122 mil empresas foram privatizadas em dois anos; entre 50 a 100 mil milhões de dólares escaparam para o exterior. O peso do setor privado no PIB passou de 5% em 1990 para 70% em 1998; O PIB diminuiu 23%; o salário real caiu 68,3%; a produção industrial caiu 54%. A expectativa de vida dos homens caiu de 65,5 para 57,3 anos. A taxa de homicídios triplicou. Esse processo teve raízes na história económica e política da URSS, mas não foi um processo totalmente endógeno. Incluiu o trabalho de conselheiros americanos e europeus e de organizações internacionais como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Na transição, sem surpresa, surgiram alguns novos ricos e super milionários e, obviamente, muitos “novos pobres” também.

Os primeiros passos para a privatização e uma economia de mercado foram dados nos países do Leste Europeu em nome da racionalidade económica e da eficiência. Mas esse é um raciocínio que visa maximizar os lucros dos proprietários e limitar-se a aumentar a produtividade da população “efetivamente empregada”, não de toda a população. Os excluídos (desempregados ou em situação de precariedade) não estão no denominador com que se calcula a produtividade das empresas.

Não pode haver garantia do direito ao trabalho, muito menos da equidade social, sem uma intervenção sistemática do Estado nas relações económicas. Os perigos da ingenuidade também estão na esfera ideológica, na educação, na cultura e nos media. Como seria nosso futuro se, no marco da diversidade essencial (e desejável) de opiniões e críticas nos media, se abrisse uma brecha para desvalorizar a nossa história, deslegitimar a nossa soberania, justificar as desigualdades sociais e promover a banalidade e o individualismo?

Seria um debate de ideias no nosso país ou seria influenciado e financiado de forma enviesada pelo imenso poder da indústria da informação americana? Como esses poderes moldariam a consciência social das futuras gerações de cubanos? Seria um debate de ideias que apela à razão ou uma guerra de imagens que apela aos reflexos primitivos do ser humano?

Tudo isso poderia acontecer em Cuba se uma imensa ingenuidade coletiva nos induzisse a caminhar nessa direção. Dessa forma, talvez atingíssemos prosperidade para alguns, mas não poderíamos manter a igualdade social ou a soberania nacional. É um dos futuros possíveis, mas os cubanos, em sua maioria, não querem esse futuro. Nós também não vamos permitir.

(continua)

[*] Director do Centro de Inmunología Molecular de Cuba, curriculum

O original encontra-se em https://agustinlage.blogspot.com/

Este artigo encontra-se em resistir.info

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